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05 fevereiro 2013

Entre as vistas de cinéfilo do blogueiro

Entrevista feita comigo por Teeh Schwarz há alguns anos para o blog Cinema & Afins e depois republicada em Cine Splendor, do qual ela é editora e este blogueiro colaborador mensal.
"Em nossa entrevista, comentamos sobre o interesse pelo cinema, movimentos marcantes na história da sétima arte, novas interações e a indústria cinematográfica.
Iniciamos a conversa questionando os motivos de interesse pelo cinema, como se deu esse envolvimento real. André afirma que a paixão surgiu cedo, quando começou a frequentar as salas de cinema, com apenas 6 anos de idade. “Naquela época, década de 50, menino de calças curtas – era o tempo das calças curtas para garotos – via muito filmes americanos e chanchadas brasileiras, melodramas mexicanos, além, claro, de desenhos animados tipo ‘Tom & Jerry‘. Minha formação cinematográfica inicial se dá, portanto, com o cinema de gênero made in Hollywood, os musicais inesquecíveis da Metro, os thrillers, os filmes de guerra, os épicos históricos, e, principalmente, o western, que, na definição do grande crítico francês André Bazin, ‘é o cinema americano por excelência’. O cinema brasileiro, com raras e honrosas exceções, produzia quase que somente chanchadas. Com o passar do tempo, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, programado por um grande ensaísta da arte cinematográfica, Walter da Silveira. Foi ele quem, no seu clube, mostrou aos baianos os filmes do expressionismo alemão, do neorrealismo italiano, do realismo poético francês, da escola soviética – Eisenstein, Pudovkhin… -, o cinema japonês etc. Tinha por volta de 15 anos quando percebi que o cinema, além de um entretenimento, um espetáculo, era também uma expressão de arte. Fiquei impressionado com ‘A Aventura’ (1960), de Michelangelo Antonioni, ‘La Dolce Vita’ (1960), de Federico Fellini, ‘Os Sete Samurais’ (1954), de Akira Kurosawa, ‘O Encouraçado Potemkin’ (1925), de Eisenstein, por exemplo. Era já um adolescente cinéfilo antes de penetrar na juventude. Vale ressaltar que me tornei um amante de cinema por meio autodidata. Via os filmes com interesse – os mais importantes mais de uma vez – e lia bibliografia especializada e críticas dos grandes suplementos, principalmente os do eixo Rio-São Paulo. Pois nasci no Rio, em 1950 (já estou me sentindo velho), mas desde tenra idade vim morar em Salvador, ainda que todo ano fosse passar, nas férias, um mês na Cidade Maravilhosa”, afirmou, complementando que seu envolvimento com o cinema se deu por uma afinidade eletiva, por uma relação de assombro e admiração, por um ato de amor à arte cinematográfica.
Sobre sua relação com a crítica de cinema, Setaro explica que esteve presente desde o início, contando que“mesmo quando criança, anotava num caderno todos os filmes que via, ficha técnica completa, cinema onde foi visto o filme, e fazia ligeiros comentários. Findo o hoje chamado segundo grau, fiz vestibular para a Faculdade de Direito, onde me formei em 1974, tornando-me um advogado sem futuro. Mas, na faculdade, fiquei responsável pela programação do seu cineclube e redigia comentários sobre os filmes exibidos que eram distribuídos na porta de entrada. Em 1974, comecei a publicar textos sobre cinema no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia e, meses depois, fui convidado para escrever uma coluna diária que se alastrou por 20 anos até que, em 1994, passei a escrever a coluna apenas uma vez por semana. Meu envolvimento com o cinema se dá, assim, pela crítica. Mas, preguiçoso, achava que fazer um filme dava muito trabalho e, naquele tempo, não havia a facilidade do digital. Era tudo muito difícil. Mas, mesmo assim, para aprender alguma coisa, trabalhei como assistente de direção de alguns filmes baianos – como ‘Voo Interrompido’, 1968, de José Umberto, filme underground, do chamado Cinema Marginal -, fui ator em ‘O Cisne Também Morre’ (1982), de Tuna Espinheira e realizei um Super 8 cujo título, esdrúxulo, é ‘Pizzaria Eisenstein’ (1984). Frustrado com a experiência como advogado, fui fazer Comunicação, especificamente Jornalismo, e depois mestrado em Artes Visuais, cuja dissertação versou sobre cinema: ‘Narrativa e fábula no discurso cinematográfico’. Em 1979, fiz concurso para ser professor da área de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde ensino até hoje disciplinas da área como Oficina em Comunicação Audiovisual, Linguagem Cinematográfica , Estética do Cinema, publiquei ‘Panorama do Cinema Baiano’ em 1976, ‘Alexandre Robatto Filho, um pioneiro do cinema baiano’ em 1992, ambos editados pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, e recentemente três livros que fazem parte de‘Escritos sobre Cinema’.
Mas o crítico é pontual ao dizer que de nada adianta dissertar e realizar cursos de cinema se a pessoa não se interessar plenamente. “Os cursos ajudam e podem ser proveitosos desde que o indivíduo se interesse pela coisa. O que se aplica, aliás, às demais atividades. É importante que se conheça os chamados filmes essenciais, os filmes-faróis da história do cinema, os filmes divisores de água, que contribuíram para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica!” comenta, citando alguns destes títulos, como “Ladrões de Bicicleta” (1948) de Vittorio De Sica – “para se ter uma idéia da importância do neorrealismo italiano” -,“Cidadão Kane” (1941) de Orson Welles, “Hiroshima, Mon Amour” (1959) de Alain Resnais,“Morangos Silvestres” (1957) de Ingmar Bergman, “Oito e Meio” (1963) de Federico Fellini, a trilogia de Michelangelo Antonioni composta por “A Aventura” (1960), “A Noite” (1961) e “O Eclipse” (1962),“Aurora” (1927) de Murnau, “La passion de Jeanne D’arc” (1928) de Carl Theodor Dreyer, “Acossado”(1960) e “O Desprezo” (1963), ambos de Jean-Luc Godard, entre muitos outros. “A citação se faz aqui apressada e de memória”, finaliza.
Seguindo com a conversa, perguntamos se desde o início Setaro já pretendia atuar profissionalmente na área, afinal, muitos acham isso pouco viável, excentricidade. Assim, ele nos explica que foi obra do acaso, e que se atualmente o cinema é estudado nas universidades de todo o mundo, antes, porém, a coisa era diferente. “O cinema era considerado apenas um entretenimento, um divertissement, um passatempo para os momentos de ócio. Com os estudos efetuados a partir da segunda metade do século passado, principalmente por sociólogos e comunicólogos, verificou-se que o cinema invadiu o imaginário coletivo das pessoas e, por isso, era preciso ser estudado. O cinema mudou hábitos, comportamentos, influenciou o way of life. Assim, quando comecei a escrever diariamente sobre a chamada sétima arte, a ganhar alguma coisa com isso, ainda nos anos 70, e principalmente numa velha província como Salvador, certo dia mostrei a uma tia carrancuda minha coluna impressa no jornal e ela me respondeu ‘Você não tem nada para fazer, não?’. Sim, o cinema não era levado a sério profissionalmente, considerado uma utopia, uma excentricidade como você bem frisa na pergunta. Ainda hoje, o profissional da área é marginalizado, inclusive no Brasil”.
Como cinéfilo, responsável por nossa coluna sobre Cinema Nacional, questionamos então o que acha da qualidade das obras brasileiras e sua “baixa valorização” no próprio território. Setaro explica que o nó górdio do cinema brasileiro está no tripé produção-distribuição-exibição. “O mercado exibidor brasileiro está completamente tomado pelas multinacionais – os complexos de cinemas Cinemark, Multiplex etc. -, e é muito difícil para um realizador iniciante encontrar guarida neste mercado. Se a produção de filmes nacionais passa dos 70 por ano, incentivada, principalmente pelas leis de incentivo, que gera a famigerada captação de recursos, a maioria deles, no entanto, não é exibida. O cineasta que consegue exibir seus filmes é aquele que faz parceria, na produção, com as multinacionais. O que adianta produzir um filme se ele não é exibido? A grande platéia do cinema brasileiro se encontra nos festivais que proliferam país afora. O cinema brasileiro está maduro do ponto de vista técnico, mas seus realizadores se subordinam muito ao mercado, porque precisam captar recursos e as empresas apenas se dispõem a doar recursos àqueles filmes que possuem viabilidade e exequiblidade comerciais. Os filmes brasileiros que são exibidos em boas salas são aqueles cujos produtores entram em parceria com as multinacionais, a exemplo de Luis Carlos Barreto, Daniel Filho, Walter Salles, Cacá Diegues etc. Mas não se pode negar que tecnicamente, na última década, o filme brasileiro tem padrão internacional, tecnicamente falando, devo ressaltar, pois não possui a criatividade do passado, principalmente dos anos 60, quando explodiram o Cinema Novo e o Cinema Marginal” informa, exemplificando com duas obras-primas (“Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1964, de Glauber Rocha, e “O Bandido da Luz Vermelha”, 1968, de Rogério Sganzerla) e afirmando que os cineastas não se aventuram na busca do novo por impedimento mercadológico. “Na época do Cinema Novo, não havia captação, havia mais liberdade de criação”.
Aproveitando a discussão sobre cinema nacional, aproveitamos para relembrar que Walter da Silveira foi mencionado como responsável por apresentar os filmes internacionais que fogem ao estereótipo de “blockbusters” aos soteropolitanos – e inclusive ao entrevistado. Mas nossa curiosidade foi além, e nos interessamos no campo das produções nacionais, como e quando foram apreciadas (ou não) por Setaro.“Conheci o cinema brasileiro nos anos 50 e, nesta época, a maioria dos filmes nacionais era constituído de chanchadas populares, comédias com Oscarito, Zé Trindade, Grande Otelo, Ankito, Mazzarropi, entre outros… Lembro-me das filas imensas que se formavam nas portas das salas exibidoras. As chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares e, creio, foi a melhor época para o cinema brasileiro em termos de bilheteria. Mas os críticos, a maioria deles, as abominava. Foi preciso que o tempo passasse para que, décadas depois, elas viessem a ser revalorizadas, e atualmente, inclusive, são objeto até de dissertações e teses de mestrados e doutorados. Recordo-me de muitas delas, como ‘Marido de mulher Boa’ (1960), ‘Mulheres à Vista’ (1959), ‘O Massagista de Madame’ (1958), ‘O Batedor de Carteiras’(1959) e ‘Chico Fumaça’ (1956). As melhores, contudo, eram as dirigidas por Carlos Manga, satíricas e paródicas, a exemplo de ‘O Homem do Sputnick’ (1959), com Oscarito, ‘Nem Sansão nem Dalila’ (1954), também com Oscarito (um gênio!) ao lado de Grande Otelo, e ‘Matar ou Correr’ (1954), uma paródia do clássico western ‘Matar ou Morrer’ (1952) de Fred Zinnemann. Gosto particularmente de ‘De Vento em Popa’ (1957), também de Manga. Mas se a chanchada predominava, havia também os filmes da Vera Cruz, a exemplo ‘O Cangaceiro’ (1953), de Lima Barreto, que constituiu-se num grande êxito, assim como ‘Sinhá Moça’ (1953), de Tom Payne, sobre as tentativas abolicionistas no século retrasado numa cidade de Minas Gerais. E ainda podemos mencionar Nelson Pereira dos Santos, que a seguir o exemplo do neorrealismo italiano, plantava as sementes do Cinema Novo com seu pioneiro ‘Rio 40 Graus’ (1955), seguido de ‘Rio Zona Norte’ (1958). Com a decadência das chanchadas, surgiu o Cinema Novo, que acompanhei, praticamente, filme por filme, a destacar o impacto que me causou a primeira visão de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1964), de Glauber Rocha, assim como ‘Vidas Secas’ (1963), de Nelson Pereira dos Santos“.
Ao citar que as “chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares” e que a maioria dos críticos as abominava, nos interessamos em saber a opinião de André sobre essa diferença entre o profissional e o popular, ou melhor, por que algo que atinge o público com tanto sucesso acaba por causar essa repulsa nos que se propõem à falar sobre cinema. Afinal, isso tem certa continuidade quanto aos tempos atuais: as obras “meneghelianas” e os contínuos “Didi e não sei lá quem mais” atraem o espectador, mas quem realmente se considera um amante de cinema, as repudia. Parte da resposta está na qualidade, tanto das produções, como o enredo em si, mas além disso, há o preconceito. Setaro explica que a crítica, principalmente na sua fase áurea, caracterizava-se pelo elitismo, a eleger os filmes que possuíam temas nobres como as expressões máximas da arte do filme, ou então, aqueles que influíam na renovação da linguagem cinematográfica (Eisenstein, Orson Welles, Godard) e os movimentos de renovação (expressionismo alemão dos anos 10 e 20, a escola soviética da década de 20, a escola documentarista inglesa, o realismo poético francês, o neorrealismo italiano, a nouvelle vague francesa). “Os filmes mais populares, à exceção de um Chaplin, ou popularescos, eram, de imediato, colocados de escanteio. Até mesmo uma boa parte do cinema made in Hollywood – e de alto nível, como Billy Wilder, Vincente Minnelli, Nicholas Ray, Robert Aldrich, George Cukor! – não era considerada, excetuando-se um John Ford, um William Wyler, entre poucos. Foi preciso que o revisionismo crítico praticado pela revista francesa ‘Cahiers du Cinema’ descobrisse o valor de certos cineastas americanos, dando-lhes o relevo e o status que mereciam. Mas se, naquela época, as chanchadas eram ridicularizadas, o passar do tempo se encarregou de pô-las em seu devido lugar. Sérgio Augusto, por exemplo, jornalista e notável crítico de cinema, publicou um livro, ‘Este mundo é um Pandeiro’, no qual faz uma exegese da importância da chanchada para o cinema brasileiro. E há, sim, preconceito em relação ao cinema mais popular. Andrea Ormond, do site Estranho Encontro, procura, por exemplo, através de uma investigação crítica achar atributos em muitos dos filmes que foram rotulados pejorativamente de ‘pornochanchadas’. A crítica, e aqui faço uma mea culpa porque também a exerço há mais de trinta anos, é na maioria dos casos arrogante e dona da verdade, tem complexo de superioridade e de autoridade. É necessária mais humildade e generosidade. Foi o que aprendi em seu exercício. Muitos filmes dos trapalhões são toscos e simplistas, porém há alguns mais elaborados! Porém, a crítica os joga na vala comum do esquecimento sem, ao menos, ter o cuidado de observar um por um. Se, por um lado, há este preconceito, como afirmei anteriormente, é o tempo o crítico supremo que irá julgar a permanência de determinadas obras cinematográficas”.
Falando na diferenciação das produções, aproveitamos para falar sobre o cinema como uma “expressão de arte”, e o encantamento por gênios como Kurosawa e Fellini, tentando compreender o que exatamente diferencia suas obras das dos demais profissionais. Mencionamos que muitas vezes foi dito que Kurosawa“sente seus filmes enquanto outros os vêem”, e nos permitimos encaixar alguém mais em tal posição: Truffaut, excepcionalmente por “Jules e Jim – Uma Mulher para Dois” (1962) e “Beijos Proibidos”(1968). “Existem, como diria Luigi Pirandello, três espécies de cineastas: o autor, o estilista, e o artesão. O cineasta-autor possui um universo ficcional próprio e um estilo particular, pessoal, com uma, por assim dizer, marca registrada. O veículo cinematográfico é um veículo para suas idéias e pensamentos, e nos filmes de um cineasta-autor, há constantes temáticas e constantes estilísticas, isto é, um tema que perpassa todos os filmes e uma maneira muito própria de manipular a linguagem cinematográfica. Ingmar Bergman, por exemplo, cineasta-autor, utiliza-se do cinema como um conduto para o seu pensamento e a sua visão de mundo. São autores realizadores como Federico Fellini, François Truffaut, Charles Chaplin, Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Alain Resnais – para mim, o maior cineasta vivo -, Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Howard Haws, Hitchcock, Jean Renoir, Jean-Luc Godard, Glauber Rocha, entre muitos e muitos outros! Já o cineasta-estilista não tem um universo ficcional próprio, mas possui um estilo particular de se expressar estilisticamente, a exemplo de Steven Spielberg – o que tem a ver ‘Parque dos Dinossauros’ com ‘A lista de Schindler’ (ambos de 1993)? -, John Frankenheimer, James Cameron, Sidney Lumet etc. O cineasta-artesão não tem nem universo ficcional nem estilo, mas sabe contar uma história com fluência narrativa, embora não se possa, a investigar a filmografia de um cineasta-artesão, verificar nela, constantes temáticas nem estilísticas, pois não as possui. Em relação à sua inclusão, gosto muito de François Truffaut, principalmente ‘Jules e Jim’, que considero o seu melhor filme. Em relação a‘Beijos Proibidos’, considero-o simplesmente poético e encantador. De Truffaut gosto praticamente de toda a sua obra – há filmes menores, evidentemente – principalmente os citados e ‘As duas Inglesas e o Amor’(1971), ‘Os Incompreendidos’ (1959) e ‘A noite Americana’ (1973), et caterva. Tenho particular admiração por Jean-Luc Godard e Jacques Demy (‘Os Guarda-Chuvas do Amor’ (1964), ‘Peau d’âne’ (1970), ‘Duas Garotas Românticas’ (1967))“.
Após falarmos sobre as diferenças, resolvemos então considerar as semelhanças de dois movimentos definitivos, neorrealismo italiano e o Cinema Novo, traçando um paralelo ao Cinema Marginal. “O neorrealismo italiano se caracterizou pelo despojamento estilístico e pela preocupação em retratar o drama do homem comum e as contradições da sociedade em que vivia. O brado ‘descer às ruas’ de Cesare Zavattini, um dos principais teóricos e roteiristas neorrealistas, significava que os realizadores deviam abandonar os estúdios fechados para que fossem filmar in loco, isto é, nas ruas, abandonando os artifícios dos estúdios e a apreender a realidade em sua essência vital. A problemática social é um dos pontos importantes e a maneira pela qual os realizadores a colocam cinematograficamente, inclusive com a utilização de atores não-profissionais. Ao contrário do herói tradicional do cinema americano, o homem apresentado nos filmes neorrealistas é um não-herói, a diferir, também, do anti-herói da nouvelle vague, cujo maior exemplo talvez esteja no personagem de Michel Poiccard interpretado por Jean-Paul Belmondo em ‘Acossado’. Já o Cinema Novo também tinha os mesmos pressupostos básicos do neorrealismo: abordagem do drama do homem brasileiro, as contradições de uma sociedade injusta e desigual, filmagens in loco etc. Vários dos filmes do Cinema Novo são exemplos desses pressupostos, entre eles ‘Os fuzis’(1963), de Ruy Guerra. Já o Cinema Marginal não tem tais pressupostos, é um cinema anárquico, quase autodestrutivo, que experimenta muito a linguagem cinematográfica. Um cinema que proclama o caos e pergunta pela saída de uma situação aparentemente fechada… ‘O anjo Nasceu’ (1970), de Júlio Bressane,‘Meteorango Kid, o herói Integalático’ (1969), de André Luiz Oliveira, entre outros, exemplificam bem isso”.
Aproveitando a citação à James Cameron como um “cineasta-estilista” anteriormente, aproveitamos para saber o que André acha das inovações que têm surgido no mercado através do mesmo, como pioneiro com“AVATAR” (2009), pois sua produção está fazendo escola. Após o glorioso lançamento e seu incrivel sucesso de bilheteria, a quantidade de filmes lançados na tecnologia 3D e IMAX é imensurável. Poderíamos incluir nas conquistas de Cameron a resposta para levar o público de volta para o cinema? “Sim, acredito que o cinema do futuro esteja em filmes como ‘Avatar’ ou assemelhados, dotados de terceira dimensão, muitos efeitos especiais, espetaculosidade. A indústria cinematográfica está perdendo terreno para os novos suportes, o DVD, a possibilidade de se baixar qualquer filme na internet, a pirataria desenfreada etc., e falo do ponto de vista da estratégia industrial! Mas é evidente que os filmes que não se enquadram no modelo narrativo hollywoodiano vão continuar a existir. ‘Avatar’, por exemplo, sobre ser um grande espetáculo, de impacto visual deslumbrante, é uma obra que reflete sobre o mal-estar da civilização atual e, nas suas entrelinhas, questiona o império americano em sua ânsia expansionista. Cameron é um diretor de rara competência artesanal e sabe usar a tecnologia em proveito de um espetáculo que não cai no lugar comum.‘Aliens, O Resgate’ (1986) e ‘True Lies’ (1994) são exemplares nesse sentido. No último, há uma paródia do próprio espetáculo!.
Mencionamos, então, as mudanças necessárias para o cinema se adaptar às mudanças do formato tridimensional, e André explica que quando, nos anos 40, quando a televisão foi implantada nos Estados Unidos, metade – sim, metade – dos cinemas fechou suas portas, provocando, com isso, um pânico na indústria de Hollywood. “Os estúdios então começaram a procurar novas fórmulas de conquistar o público, lançando, nos anos 50, o Cinemascope (a tela larga com som estereofônico), o Cinerama, e até mesmo o cinema com cheiro, que não deu certo… O Cinemascope, por exemplo, já tinha sido inventado desde os anos 30 pelo francês Henri Chrétien, mas os estúdios não prestaram atenção até a emergência da crise com o advento da televisão. O primeiro filme em CinemaScope (escrevia-se assim naquela época) foi ‘O Manto Sagrado’ (1953), de Henry Coster, com Richard Burton, Jean Simmons e Victor Mature. Com ele, as salas exibidoras precisaram sofrer reformas para a necessária adaptação e a inclusão, nos projetores, de uma lente anamórfica. Como mencionado, com o aparecimento dos novos suportes o cinema, apesar dos grandes êxitos dos blockbusters, entrou em crise nos anos 2000 e foi preciso a recorrência a novos processos de atração. O 3D procura, nesse ponto, conquistar um público arredio que precisa de novas emoções dentro da sala exibidora, e a tecnologia de ponta hoje existe e a isso permite. Mas o que é importante assinalar é que a 3D ainda não se transformou num elemento estético incorporado à linguagem cinematográfica. Ou, melhor dizendo, o cinema como linguagem não sofreu nenhuma transformação com o advento do 3D. Fui rever ‘Titanic’ (1997) neste processo e não gostei, prefiro vê-lo em 2D. O 3D é um penduricalho para atrair público, mas pode vir a se tornar, com o passar do tempo, um elemento estético. Na transição do cinema mudo para o sonoro, o som atrapalhava, mas, aos poucos, houve uma incorporação harmônica entre a imagem e o som. Verdade dolorosa, talvez, mas se o público aumentou com a 3D não se vai ter mais o imenso número de espectadores do cinema do pretérito. E isso não é saudosismo, mas constatação de fatos”, constata.
Encerrando, como usual, perguntamos a André como ele define cinema, o que o cinema significa para ele e em sua vida. Conciso, ele responde explicando que “‘se o filme é uma arte, o cinema é uma indústria’, escreveu o célebre historiador francês Georges Sadoul – nos seus nove volumes de ‘Histoire General du Cinema’. A indústria, porém, condicionou o filme a ser um espetáculo dentro de um modelo narrativo no qual se estabelecem as leis de progressão dramática in crescendo. Mas o cinema é uma expressão da arte, embora a maioria dos filmes que circula nas salas seja apenas meros entretenimentos anestésicos. O cinema é uma arte narrativa que se utiliza do espaço como a pintura e o espaço como a música. Francis Ford Coppola, perguntado, disse que o cinema é a maneira pela qual o realizador usa a lente e Hitchcock, indagado, respondeu ‘O cinema? Ora, uma porção de lugares a ocupar!’. Em 2005, perguntei a Costa Gavras, que estava participando de um seminário em Salvador, e ele me afirmou que o cinema sempre tem que ser um espetáculo“.

03 fevereiro 2013

"Ed elli avea del cul fatto trombetta" (Dante)


Bom, este artigo, que já saiu neste blog há alguns anos, resolvo republicá-lo, é de autoria do saudoso escritor Moacyr Scliar registrado em domingo, dia 9 de março de 2008, no Mais! da Folha de S.Paulo. Não resisto em transcrevê-lo. Em homenagem ao talento de Scliar. Aqui vai:

"A notícia, na Folha do último dia 28, era pequena, mas chamativa: uma funcionária, demitida por "exceder-se em flatulência" no local de trabalho, venceu demanda judicial interposta na 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Os magistrados decidiram pela readmissão da empregada e pelo pagamento de R$ 10 mil por danos morais.

Atrás desse curioso episódio está longa história, que se baseia numa função fisiológica absolutamente normal, mas nem por isso menos perturbadora. Flatulência é a emissão de gases intestinais, uma coisa que poderia passar despercebida, como é a expiração.

Mas essa, em geral, não é ruidosa -a não ser quando a pessoa ronca, o que não raro é fonte de conflito entre marido e mulher- e é sem odor, a não ser quando há mau hálito, o que sempre resulta em constrangimento. Já no flato, existe uma complexa mistura de gases, alguns dos quais, os compostos sulfurosos, principalmente, produzem aquele característico odor, que há milênios ofende narinas.

Ah, sim, e o ruído. A última linha de "O Inferno", de Dante, parte da "Divina Comédia" [editora 34], diz "Ed elli avea del cul fatto trombetta"/ "E ele usou o traseiro como trombeta", o que pode parecer um exagero, mas traduz a indignação das pessoas.

Não só Dante se entregou ao exercício dessa forma de escatologia literária. Na clássica comédia "As Nuvens" [ed. 34], de Aristófanes [comediógrafo grego do século 5º a.C. que se celebrizou pela irreverência], há um diálogo no qual Sócrates sustenta que, quando as nuvens colidem, se produz um forte ruído, ou seja, o trovão.Para explicar o fenômeno, compara-as com o homem que, tendo comido muito, produz gases. E pergunta: "Se o ventre humano, que é relativamente pequeno, faz tanto barulho, como não o farão as nuvens, que são muito maiores?"

Nas "Mil e uma Noites" [ed. Globo], lemos a história de um homem que, tendo soltado gases durante a cerimônia de seu próprio casamento, não vê outra solução senão fugir para o exterior. Em "Gargântua e Pantagruel" [ed. Itatiaia], Rabelais assim descreve a ressurreição de Epistémon: "De repente Epistémon começou a respirar, depois abriu os olhos, depois bocejou, depois espirrou, depois soltou um grande peido. Ao que disse Panurge: "Agora está certamente curado'".

Em "Contos de Cantuária" [T.A. Queiroz], de Geoffrey Chaucer, autor inglês do século 14, o flato é usado como agressão. O conquistador Absolom está tentando roubar um beijo da trêfega Alison, mulher do carpinteiro Nicholas. Na escura noite, sem quase nada enxergar, aproxima-se da janela da casa e, sussurrando, pede que a mulher diga onde está. Mas é Nicholas que responde -soltando, pela janela, um agressivo flato.Em "Molloy" [ed. Globo], de Samuel Backett, há uma certa condescendência para com os gases: "Trezentos e quinze peidos em 19 horas, uma média de 16 peidos por hora. Não é demais. Quatro peidos a cada 15 minutos. É nada". A mesma tolerância mostrou o imperador romano Claudius, que assinou lei permitindo a emissão de gases em banquetes, mas fê-lo movido por supostas razões de saúde: acreditava-se à época que reter os gases era prejudicial para o organismo.

De maneira geral, soltar um flato era falta grave. Edward de Vere, duque de Oxford, teve o azar de fazê-lo (coisa que Freud explicaria) no exato momento em que prestava juramento de lealdade à depois cinematográfica rainha Elizabeth 1ª.

Tão envergonhado ficou que se impôs um exílio de sete anos. Quando de seu retorno à corte, Elizabeth teria dito, para consolá-lo: "Meu senhor, para dizer a verdade, já esqueci aquele flato".Aliás, em termos da associação nobreza-flatulência, o duque não ficaria sozinho. Segundo nos conta Jô Soares, em "O Xangô de Baker Street" [Cia. das Letras], dom Pedro 2º soltava gases em pleno palácio, o que, aliás, no julgamento mencionado, foi usado como argumento pelo juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros.

A pessoa pode reter os gases, mas será que consegue emiti-los voluntariamente?Em "A Terra", de Émile Zola, há um personagem que consegue fazê-lo e ganha apostas com sua habilidade. Houve um contemporâneo do escritor que conseguia fazê-lo e se tornou famoso por isso: Joseph Pujol (1857-1945), autodenominado Le Pétomane (O Peidômano).

O marselhês Pujol tinha um extraordinário controle de seus músculos abdominais e do esfíncter anal, o que lhe permitia façanhas assombrosas. Exibindo-se no célebre Moulin Rouge, para audiências que incluíam Edward, príncipe de Gales, e Sigmund Freud, conseguia tocar flauta por meio de um tubo de borracha inserido em seu ânus, emitindo também os sons do hino nacional e de melodias por ele compostas.

A história de Pujol inspirou pelo menos dois filmes -o britânico "Le Petomane", de 1979, com Leonard Rossiter, e o italiano "Il Petomane", de 1983, com Ugo Tognazzi-, o musical "The Fartiste" -premiado como melhor do ano em 2006, no festival internacional Fringe, em Nova York-, vários artigos e livros, incluindo o best-seller "Quem Comeu meu Queijo?", de Jim Dawson, uma abrangente história da flatulência.Uma história que, como se constata, mostra aspectos curiosos e surpreendentes da relação humana com o corpo, particularmente no que se refere ao componente gasoso deste."