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30 outubro 2008

"Cascalho": a poesia da crueldade

Obra de teor realista, baseada em livro homônimo de Herberto Sales, Cascalho, no entanto, tem seu fecho numa dimensão onírica e poética, quando o garimpeiro, que morre no desabamento das minas pelo temporal imprevisto, aparece todo galante e fagueiro, a entrar num salão e a festejar uma bela garota com a qual executa uma dança. Tuna Espinheira é feliz no fecho de seu filme, neste desvio de tom, o que faz acrescentar um halo poético numa obra de tonalidades cruas e realísticas. A execução da dita seqüência se faz em câmara lenta, e a iluminação (de Luís Abramo) dá os toques necessários para estabelecer a atmosfera de sonho. Que é favorecida também pela aplicada direção de arte de Moacyr Gramacho.

Vencedor do Prêmio Fernando Cony Campos, patrocinado pelo governo do estado da Bahia, que ofereceu recursos mínimos para a feitura de um longa metragem, Cascalho já está pronto desde 2004, mas somente agora, quatro anos depois, e depois de muita luta, é que Tuna Espinheira preencheu todos os requisitos para a sua exibição em circuito comercial. Para entrar nas melhores salas do mercado exibidor, há a necessidade do som Dolby digital.

Documentarista de longo curso, Tuna Espinheira revela em Cascalho a sua influência no registro realista tão cara ao documentário. Filmado in loco, no esplendor do décor de Andaraí, o filme se desdobra para contar uma história de sofrimento e dor sob a égide da brutalidade dos coronéis, que controlam tudo e exploram os que se aventuram no garimpo. Nem os poderes constituídos, como o juiz e o promotor, podem fazer frente à sua sanha autoritária para subjugar a gente humilde.

O início de Cascalho, com os garimpeiros a andar pelas imensas pedras em fila indiana, dá a idéia da dimensão e riqueza paisagísticas da região, como se aqueles homens fossem escravos e estivessem a construir uma pirâmide. O registro cinematográfico de Tuna Espinheira, a revelar sua formação de documentarista, procura uma fabulação que faz emergir a truculência daqueles que a tudo controlam e a luta desesperada dos garimpeiros para extrair do cascalho uma porção de sobrevivência.

A reconstituição de época, considerando que a ação do filme se passa na década de 30, ainda que os parcos recursos disponíveis, é satisfatória, quer do ponto de vista cenográfico como, também, nos figurinos, principalmente na seqüência do enterro. Os planos noturnos que mostram a rotina dos garimpeiros também conseguem imprimir uma sensação de esmagamento e ao mesmo tempo de uma poesia da gente simples com sua linguajar próprio, com a sua maneira de expressar não somente o sentimento como também a sua dor.

A ação se localiza no crepúsculo de uma época de ouro, quando em Andaraí se extraia diamantes e carbonatos, a enriquecer os donos do poder da região, os coronéis, e a escravizar a população de garimpeiros, que, iludidos pela possibilidade de encontrar as pedras preciosas, e mudar de vida, tornavam-se verdadeiros escravos da ganância e da ambição daqueles que controlavam a localidade. O personagem maior do filme é, na verdade, o garimpeiro sob a ditadura dos coronéis. Herberto Sales, escritor e acadêmico, conheceu o drama dos garimpeiros e procurou registrá-lo no célebre romance do qual Tuna Espinheira, em adaptação livre, extraiu o seu filme.

Othon Bastos é o coronel que manda em tudo, insensível e cruel, assim como seus acólitos, subservientes, os personagens de Wilson Mello (que tosse o tempo todo como a expelir o demônio interior), Harildo Dêda. Irving São Paulo, promotor neófito que pensa que pode mudar alguma coisa, e, difamado, é posto a correr da cidade após um diálogo que revela o conformismo do juiz interpretado por Fernando Neves. Gildásio Leite (o grande ator dos palcos baianos de outrora - quem se lembra dele em O cão siamês de Alzira Power no Teatro Gamboa?) é um pobre garimpeiro, e Jorge Coutinho, a personagem mais carismática de Cascalho, é um cruel capataz de Bastos, homem ambíguo e capaz de tudo. Outros intérpretes: Caco Monteiro, Dody Só, Lúcio Tranchesi, Júlio Goes e, em participação especial, a filha de Tuna, a exuberante Maria Rosa Espinheira.

Esta não é a primeira versão do livro de Herberto Sales. Há uma de autoria de um estrangeiro, Leo Marten, um tcheco que após realizar vários filmes em Praga veio ao Brasil para fazer cinema (Vamos cantar, 1941, Almas adversas, 1949, Jardim do pecado, 1946, entre outras insignificâncias). Seu Cascalho é de 1950, e conta no elenco com Sadi Cabral, Sérgio de Oliveira, Jackson de Souza, Modesto de Souza, José Lewgoy.

Cascalho, de Tuna Espinheira, representa uma vitória para o cinema baiano. Segundo José Umberto, cineasta (O anjo negro, Revoada...), "Cascalho é o cinema baiano da gema: lembra-me a tradição de Um dia na rampa - um cinema popular. Eis o eixo: sentimos na imagem o sotaque do povo. Não faz nada mal relembrarmos os princípios éticos e poéticos de Brecht. Brecht buscou alento sobretudo no teatro catequista da Idade Média. Uma arte edificante. Que toma partido: o partido da gente simples, ofendida e humilhada como as personagens de Dostoievski. Tuna quis ser fiel ao escritor Herberto Sales. E também fiel a si mesmo. Não é um filme cínico (tão caro à "globalização""!). Não. É uma fita simples, como a filmografia de Rossellini. Uma arte em defesa da ética. Um discurso humanista. Pense no Brasil em 1930. Vem uma geração e desconserta o parnasianismo: Cascalho de Salles, BA, Os Corumbas, Amando Fontes, SE e O Quinze de Racquel de Queirós, CE. Foi uma bomba, rapaz! E teve muitas conseqüências na cultura brasileira. Tivemos Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre e Formação Econômica do Brasil de Caio Prado Júnior. Essas obras montaram a modernidade. Deram sinais preciosos de interpretação de uma Nação que descobria a modernidade com uma ditadura tupiniquim. Aprendemos debaixo de porrete. Tuna tem visão."
Falou Zé!

29 outubro 2008

"A mulher do tenente francês"



Um dos melhores filmes da década de 80 é, sem dúvida, A mulher do tenente francês (The french lieutenant's woman, 1981), de Karel Reisz (notável realizador inglês, que dirigiu, entre outros, Tudo começou no sábado [Saturday night and sunday morning], 1960, filme que deu a conhecer o extraordinário Albert Finney, e é um dos mais expressivos do free cinema - a nouvelle vague britânica, Isadora, com Vanessa Redgrave na pele da famosa dançarina, A noite tudo encobre [Night must fall, 1964], fita de terror psicológico impressionante, com Finney e Mona Washbourne - a criada do Professor Higgins em My fair lady), obra de metalinguagem que reflete sobre o processo de criação no cinema, com interpretação inexcedível de Meryl Streep (cuja interpretação neste bate forte com a de A escolha de Sofia). Em A mulher do tenente francês, a ação tem início em 1867, numa pequena cidade inglesa, quando um marinheiro seduz e abandona uma jovem. Mais tarde, um aristocrata (Jeromy Irons) rompe o noivado com uma mulher de sua classe pela moça seduzida (Meryl Streep). E é aí que Reisz, com roteiro do célebre Harold Pinter, joga com a linguagem do cinema, o tempo, o espaço. Um século depois do ocorrido, começa a filmagem desse caso e a estrutura narrativa de A mulher do tenente francês alterna o que aconteceu no passado (o filme que está sendo feito) e o presente das filmagens. No fecho, há o final do filme dentro do filme e o que acontece com os dois protagonistas, que também se apaixonam (Jeromy Irons faz o tenente e o ator que o interpreta, assim com La Streep). Obra de um rigor extraordinário que dá prova da competência de Reisz (1926/2002) como competente realizador cinematográfico. Baseado em livro de John Fowles.

Cinematografado pelo genial artista da luz Freddie Francis.

"Morangos silvestres" é o melhor Bergman


Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), de Ingmar Bergman, ganhou disparado como o melhor filme de Ingmar Bergman na enquete promovida por este blog. Dos 46 votantes, 21 (45%) escolheram esta incontestável obra-prima do cinema, deixando no caminho outras filmes notáveis como Persona (segundo lugar, com 7 votos e 15%), O sétimo selo (terceiro, com 5 e 10%), que empatou com Gritos e sussurros. A hora do lobo, A paixão de Ana e Monica e o desejo, obras também fundamentais receberam um tracinho, ou seja, nenhum voto, porque talvez filmes pouco vistos e de mais difícil acesso. Creio que A paixão de Ana não tem cópia em DVD. Vi várias vezes na ocasião de seu lançamento nos já longínquos anos 70, quando minha barba, hoje branca, era preta. E uma vez no Telecine Classic, ocasião que o gravei em VHS, que o tempo, implacável, destruiu-o com mofo e constipações de várias espécies. Paulo Francis considerava A paixão de Ana não somente o melhor Bergman como, também, o melhor filme de sua vida. Votei em Morangos silvestres, que revi recentemente, e o considero uma obra fundamental. Na imagem, a belíssima Ingrid Thulin (pela qual, platonicamente, fui apaixonado), o extraordinário Victor Sjostrom (que morreu, como numa espécie de premonição, logo após as filmagens deste filme - e era um dos grandes cineastas suecos, autor de A carroça fantasma, que Bergman possuia cópia em casa para ver sempre), e, no banco de trás, Bibi Andersson, com seus amigos de jornada.

28 outubro 2008

Tuna Espinheira exibe "Cascalho" no Multiplex



O cineasta Tuna Espinheira, que conseguiu colocar Cascalho, seu primeiro longa, baseado em romance homônimo de Herberto Sales, numa da salas do Multiplex Iguatemi a partir da próxima sexta, dia 31. Hoje, uma sessão especial para convidados, no mesmo local, às 21 horas.

27 outubro 2008

Relembrando "Spartacus"

Considero Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, o melhor épico da história do cinema, ainda que o diretor não tenha tido a oportunidade de concebê-lo na sua integridade, pois, tratando-se de uma produção da companhia de Kirk Douglas, a Byrna (nome em homenagem à sua mãe), o autor de A laranja mecânica somente foi convidado após a desistência de Anthony Mann, que entrou em conflito com o poderoso producer. Douglas, que já tinha trabalhado com Kubrick em Glória feita de sangue (Paths of glory, 1958), e admirado muito o seu trabalho, com a saída de Mann o convidou para assumir a direção, apesar dos protestos de alguns acionistas de sua empresa produtora, que consideravam Kubrick um imberbe para uma empreitada caríssima como Spartacus. O fato é que o filme, monumental, possui características kubrickianas na maneira de encenar, na composição do enquadramento (a câmera no chão com os gladiadores de corpo inteiro,etc), no sentido peculiar do ritmo, do timing, e da concepção de montagem (Laurence Olivier, como Craso, enquanto fala para sua tropa, tem, intercalando-a, Spartacus a falar para seus comandados em montagem paralela extremamente funcional). O melhor de tudo, porém, é a seqüência da batalha final, que somente poderia ter sido dirigida mesmo por um mestre como Kubrick, pois se assemelha, pelo impacto, pela força expressiva, à seqüência da batalha do gelo de Alexandre Nevsky (1938), de Serguei Eisenstein. Se, nesta, a partitura é de Prokofiev, a de Spartacus é de Alex North, músico especializado em grandes temas para cinema e que tem neste filme um de seus momentos de glória.

Filme de produtor, assim como ...E o vento levou é de David Selznick, Spartacus, ainda que comandado administrativamente por Kirk Douglas, este confiou na capacidade daquele rapaz e lhe deu carta branca para a concepção das grandes seqüências. Este imenso espetáculo, singular na história do cinema, saiu (há alguns anos) em edição especial cheio de extras em DVD, e pode ser considerada a superprodução hollywoodiana que melhor se conservou com o passar do tempo e, vista hoje, é como se o filme tivesse sido feito agora. A sensação que se tinha, quando do seu lançamento em 1961, aqui em Salvador, era de um filme avançado para a sua época em termos da sua concepção de mise-en-scène, deixando em segundo plano Ben-Hur e Os dez mandamentos, embora estes possam, também, serem considerados espetáculos primorosos dentro das fronteiras de seu gênero. Spartacus, no entanto, ganha de todos eles por sua magnificência, sentido de cinema pulsante, elenco inexcedível. E Laurence Olivier, como Craso, tem, aqui, um de suas performances mais eloqüentes.

Vi Spartacus, pela primeira vez, no velho cine Tupy antes da reforma de 1968. No já distante ano de 1961, quando, com 11 anos, quase que não conseguia entrar, pois, na época, o filme era proibido para menores de 14 anos. Assim, talvez meu entusiasmo pelo filme tenha vindo pelo impacto que provocou no adolescente que estava se formando como cinéfilo impertinente. Mas continuei, pela vida inteira, a ver Spartacus, indo assisti-lo onde estivesse passando. A última vez que foi exibido em cinema, creio, se a memória não falha, foi nos anos 70, no Tupy, em cópia esplendorosa na bitola de 70mm. Depois passou para a fita magnética, em horrendo full screen, e, agora, vem restaurado em edição que respeita a integridade de seu enquadramento, isto é, preservando o cinemascope original.

O fascínio que permanece em Spartacus se deve muito à contribuição de Stanley Kubrick como metteur-en-scène e, também, pela confiança que Kirk Douglas depositou nele. Produtor de visão, este dispensou a Kubrick a necessária liberdade para conceber o espetáculo, embora com algumas discussões e atritos por causa do temperamento do realizador de Lolita. Spartacus é um filme permanente que, se for ser sincero, o colocaria entre os 10 melhores filmes que já vi. Há, nestas listas de melhores, as listas afetivas e as protocolares, que procuram aferir a importância dos filmes no processo histórico da sétima arte. Posso dizer que após os 11 anos de idade, quando o vi pela primeira vez, naquele Tupy com o teto cheio de teias de aranhas negras, Spartacus permaneceu comigo, fazendo parte, portanto, de minha história de cinéfilo.

O cinema como expressão artística, vim a compreendê-lo após ver, imbuído de certa estupefação, O eclipse (L’eclise), de Michelangelo Antonioni, assistido num domingo pela manhã no Tamoio recém inaugurado (que substituiu o Glória após reforma infraestrutural). Naquela época, os filmes eram lançados às segundas e aos domingos, dez da manhã, havia as famosas pré-estréias. Foi numa delas que vim a conhecer o grande Antonioni, autor de uma trilogia indispensável e imprescindível: A aventura, A noite, e o citado O eclipse.
Mas estava falando de Spartacus...

26 outubro 2008

Como nasce o cinema baiano (2)



Domingo passado, dando início à série Como nasce o cinema baiano, prometi para o próximo capítulo (este) falar sobre a diferença entre o Ciclo Baiano de Cinema e a Escola Bahiana de Cinema. É muito simples. Nesta, enquadram-se aquele filmes idealizados pelo grupo de Rex Schindler, que tinha Glauber Rocha como mentor intelectual, Roberto Pires, Braga Neto, David Singer, entre muitos outros. O grupo queria estabelecer, em Salvador, uma infra-estrutura capaz de dotar a Bahia de uma produção cinematográfica constante, com continuidade de produção. São filmes da Escola Bahiana de Cinema: Barravento, A grande feira, Tocaia no asfalto, além de alguns curtas. Mas a idéia que norteou Schindler e seus colegas não deu certo, porque o capital investido não retornou por boicote dos próprios brasileiros, como alguns distribuidores do sul do país. O êxito cinematográfico, que se sustenta no tripé produção/distribuição/exibição, depende muito da circulação do filme para que possa se pagar. O lucro obtido seria, na opinião dos idealizadores da Escola Bahiana de Cinema (que estabelecia, inclusive, um esquema de rodízio para os diretores), investido no filme seguinte.

Fora da Escola Bahiana de Cinema, vários outros produtores, que não Schindler, se aventuraram na produção de filmes genuinamente baianos (O caipora, de Oscar Santana, O grito da terra, de Olney São Paulo, Sol sobre a lama, de Alex Viany/Palma Neto...).

Ja o Ciclo Baiano de Cinema reúne todos os filmes que, entre 1959 e 1964, durante a efervescência que se verificou na Bahia, foram aqui filmados, quer sulinos, quer estrangeiros. Para ficar em poucos exemplos, O tropeiro, de Aécio Andrade, A montanha dos sete ecos, do português Armando Miranda, Três cabras de Lampião, de Aurélio Teixeira, Mandacarú vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, entre outros.

Mas hoje, domingo, dia de eleição, vamos falar de Sol sobre a lama.

João Palma Neto, antigo feirante da Água de Meninos, sindicalista, marinheiro de longo curso, quando vê A grande feira (1961), de Roberto Pires, não gosta da maneira pela qual o filme aborda a questão da gigantesca feira e decide bancar um outro filme como resposta ou réplica. Com o dinheiro de sua poupança (naquela época não há a famigerada captação de recursos), alia-se a Walter Fernandes e Álvaro Queiroz para a produção de Sol sobre a lama. Com eles, funda a Guapira Filmes (Schindller se associa a Iglú, empresa que também faz um cine-jornal, A Bahia na Tela, para poder realizar os filmes da Escola Bahiana de Cinema e há o surgimento, nesta época, de outras empresas - mas assunto para outro tópico). Corre o ano de 1962 e a idéia de Palma é que a fita seja colorida, e com recursos mais sofisticados. Escreve a história, baseada em suas experiências (diz-se que o personagem Valente, interpretado por Geraldo D’El Rey é ele próprio), e confia o roteiro ao carioca Alinor Azevedo (que tem a assinatura nos roteiros de alguns excelentes filmes como Assalto ao trem pagador, e Cidade ameaçada, ambos de Roberto Farias, Um ramo para Luísa, de J.B.Tanko, entre outros. Alinor faz o screenplay de Sol sobre a lama com outro talentoso roteirista, Miguel Torres, que o cinema brasileiro perde, pois morre num desastre automobilístico. Ambicioso, pretensioso, João Palma Neto quer fazer o filme definitivo sobre a Feira de Água de Meninos (que, como numa premonição, é incendiada, um verdadeiro inferno na baixada, em 1964, e seus feirantes se mudam para a Feira de São Joaquim, acanhada, embora hoje imensa, se comparada à de Meninos). Não vê, Palma Neto, nenhum diretor em Salvador capaz de desenvolver as imagens em movimento pré-visualizadas no roteiro de Alinor e Miguel. Também, neste ano, Roberto Pires está a lançar Tocaia no asfalto, e Glauber Rocha está já no Rio, a lançar o Cinema Novo e a preparar a produção de Deus e o diabo na terra do sol.

Palma chama o conceituado crítico carioca, e também cineasta (Rua sem sol, Agulha no palheiro) mediano, Alex Viany, que é, nos anos 40, correspondente da revista O Cruzeiro em Hollywood. De volta ao Brasil, adere de corpo e alma ao cinema nacional, a fazer filmes e a escrever nas páginas dos jornais. Um crítico, inclusive, chega a taxá-lo de "inimigo número 1 do cinema made in Hollywood", apesar de, nesta meca, ter permanecido por muito tempo a gozar de suas delícias.

A maior obra de Alex Viany é, sem dúvida, a sua extenuante pesquisa que se transforma, em 1959, no livro Introdução ao Cinema Brasileiro, editado pelo Instituto Nacional do Livro (várias vezes reeditada, uma delas pela Alhambra). Mas como cineasta, apesar de Rua sem sol e Agulha no palheiro estejam sob a influência do neo-realismo italiano, possuindo um certo pioneirismo na abordagem da problemática social brasileira, é fraco, não sustenta bem uma narrativa. O fiasco total, e canto de cisne desesperado, está, muitos anos depois, em A noiva da cidade, cujo roteiro original é de autoria de Humberto Mauro. O filme, no entanto, um anti-musical, é indefensável.

Palma vê Rua sem sol e Agulha no palheiro e acha que Alex Viany é o realizador ideal para o desenvolvimento imagético de Sol sobre a lama. Quando chega a Salvador, Viany, homem genioso, está fascinado pelo cinema japonês, e tenta, no comando direcional, dar um tom nipônico do ponto de vista cinematográfico à baianidade que se requer de Sol sobre a lama. Realizado em 1963, mas somente lançado (em noite de festa) em novembro de 1964 no cine Guarany, o resultado final, contudo, não agrada Palma. A briga com Viany acaba na Justiça. Assim, há duas versões de Sol sobre a lama. A versão do diretor e a versão do produtor.

O argumento gira em torno da tentativa feita por burgueses gananciosos para acabar com a Feira de Água de Meninos. A complicar a situação, e, com isso, apressar o fim da feira, uma draga fecha o seu ancoradouro, a impedir qualquer abastecimento. Os feirantes, desesperados, lutam pela abertura do ancoradouro para fazer voltar o abastecimento. Dois líderes se apresentam para solucionar o problema. Um açougueiro (Roberto Ferreira/Zé Coió, em grande interpretação) propõe a ação violenta (uma espécie de Chico Diabo de A grande feira) dos feirantes para que invadam, na raça, o ancoradouro, reabrindo-o. Outro líder, no entanto, Valente (Geraldo D'El Rey, Rony, o marinheiro sueco de A grande feira, e o Manoel de Deus e o diabo na terra do sol), que vende material de construção, é a favor de acertos conciliatórios com poderosos políticos e a uma campanha na imprensa local em favor da volta à normalidade. Uma ação, portanto, junto aos poderes constituídos para a resolução do conflito.

Jean-Claude Bernardet, em seu clássico estudo sociológico sobre cinema brasileiro intitulado Brasil em tempo de cinema, ensaio que procura entender a sociedade através de alguns filmes nacionais representativos, dá importância na sua análise a Sol sobre a lama e escreve: “Em vez de malhado superficialmente, o filme deveria ter sido discutido mais abertamente, pois condensa toda uma tática errada, premissas sociológicas falsas e idealistas que caracterizam um longo período da vida da sociedade brasileira. Sol sobre a lama pode ser considerado como um dos mais significativos testemunhos de toda uma política que fracassou.”

A fotografia é de Ruy Santos (que dois anos depois viria filmar, em Buraquinho, praia perto de Itapoã, Onde a terra começa, baseado em conto de Máximo Gorki, com Irmã Alvarez). No cast, Othon Bastos, Geraldo D’El Rey, Roberto Ferreira, Dilma Cunha, Milton Gaúcho, Gessy Gesse, Maria Lígia, Alair Liguori, Carlos Lima, Garibaldo Matos, Doris Monteiro (a cantora que trabalha com Viany em Agulha no palheira e, na certa, chamada por ele), Jurema Penna, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Tereza Racquel, Glauce Rocha, Lídio Silva. Com música de Pixinguina e Vinicius de Morais. O teatrólogo João Augusto funciona como diretor da segunda unidade.