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06 julho 2012

Cine Jequié

Pioneiro do Super 8, várias vezes premiado nos festivais nacionais da pequena bitola, Robinson Roberto, sobre ser um hábil realizador de filmes, é, principalmente, um grande cinéfilo. Cine Jequié tem exibição no Instituto Goethe dia 24 de julho (veja o cartaz acima). Trata-se de um documentário feito por quem viveu e amou esta sala exibidora, pois Robinson é natural de Jequié, onde começou, por sinal, suas atividades cineclubistas.

05 julho 2012

Mulher à tarde


Vi Mulher à tarde na mostra Tiradentes em janeiro de 2011. Filme surpreendente do estreante no longa Affonso Uchoa (de Belo Horizonte), trata-se de uma obra cinematográfica inusitada pela desdramatização e pela ausência de in crescendo dramático. A câmera de Ucha, voyeurista, acompanha a pasmaceira de um trio de mulheres jovens em uma casa durante uma tarde. Ficamos, nós, espectadores, também encafurnados, como elas, entre as quatro paredes do local da inação. Nada acontece. Elas conversam, fazem coisas triviais, reinando, absoluto, o tédio. O realizador, porém, tem um aguçado sentido de composição da imagem, e nos faz estar presentes na solidão das mulheres, ressaltando a importância dos pequenos gestos, dos movimentos mínimos. Pretendo escrever algo mais detalhado assim que rever o filme, pois a visão de uma obra cinematográfica num festival é tortuosa, considerando o número excessivo de fitas que se tem a ver. 

Mulher à tarde está sendo distribuído sem nenhum suporte promocional. Uma nova maneira de fazer chegar os filmes independentes às telas dos cinemas brasileiros. Não nas grandes salas, nos complexos de cinema, mas em salas alternativas, e a comunicação de Uchoa é feita por um site (http://www.mulheresatarde.wordpress.com) e e-mails. Mulher à tarde, aqui em Salvador, vai ser lançado no CINECENA UNIJORGE (situado no segundo piso do Shopping Itaigara) entre os dias 9 e 12 de julho (na próxima segunda, portanto), mas apenas no horário das 16 horas, excetuando-se os dias 10 e 11, quando haverá, também, sessões às 20 horas, além da vespertina. O filme tem tido boa acolhida e já foi apresentado em outras capitais brasileiras. O que vai abaixo é uma transcrição de um texto recolhido no site de Mulher à tarde e escrito provavelmente pelo autor.

 Três mulheres em uma casa. Por uma tarde. Três jovens mulheres que vivem conjuntamente em uma grande cidade do Brasil. Vivem juntas, porém separadas: cada uma possui um mundo próprio. Há uma que deseja o lado de fora e novas vivências, há outra que se sente presa dentro das paredes e voltou de um passado de percalços e ainda há a terceira, que precisa sentir as coisas mais fortemente. Todas têm seu mundo, mas dividem a casa. Todas as três atravessam momentos cruciais na vida, necessitando atitudes. Todas têm de se dividir entre resolver a vida e cumprir as tarefas cotidianas. Mulher à tarde é um filme que parte dessa situação muito simples – Três jovens mulheres que dividem o mesmo espaço – para revelar a interioridade de cada personagem e suas vidas de tensão entre a existência íntima e a cidade ao redor.

O filme também investe na investigação da linguagem cinematográfica; em especial, foca na relação entre cinema e pintura. O filme trabalha o pictórico no cinema através da composição das imagens, o trabalho da cor e das formas e a alternância entre imagens em movimento e estáticas.

O pictórico se faz presente também na estrutura narrativa do filme. Mulher à tarde se divide em blocos de situações que conduzem a “quadros” – imagens estáticas que concluem esses blocos. Ao princípio de cada um deles há letreiros que se assemelham aos títulos de quadros que retratam figuras femininas na pintura ocidental: “Mulher com a cabeça entre as mãos” e “Mulher deitada enquanto a noite cai” são alguns exemplos. A cena final dos blocos é uma ilustração do escrito nesses letreiros, de modo que os escritos são como títulos dos quadros finais de cada bloco. E nesses quadros, nessas imagens de conclusão das cenas, podemos ver a imobilidade que figura o rosto e o mundo de cada uma. A imobilidade de uma vida oprimida em meio a necessidade de mudanças e a dificuldade em dar o primeiro passo de transformação.

O princípio narrativo do filme é fundado nas histórias mínimas, cotidianas. Numa espécie de anti-dramaturgia sem grandes acontecimentos e reviravoltas. Sem trama e sem drama. A pintura, em geral, vem em contraste ao banal: pintar significa elevar, dotar de dignidade. Só o que é grande o suficiente pra ser eternizado, merece ser pintado. Mulher à tarde é um filme que pinta os pequenos momentos. Um filme que traz pra imagem e se dedica a eternizar o comum e a vida cotidiana. Ao pintar a vida dessas 3 mulheres perdidas entre suas questões existenciais e as tarefas cotidianas, o filme afirma sua crença no poder de permanência do pequeno gesto e na grandeza das histórias mínimas.

Cliquem no cartaz para vê-lo maior.

04 julho 2012

"...E o vento levou", filme de produtor

Vivien Leigh como Scarlett O'Hara em ...E o vento levou (Gone with the wind, 1939), de David Selznick e Victor Fleming

.E o vento levou (Gone with the wind, 1939) está a completar 73 anos de existência. Filme emblemático como espetáculo cinematográfico, característico da escola idealista do cinema no modo de representação da realidade, marcou época e, talvez, tenha sido o mais visto em todos os tempos. As constantes listas que aferem os campeões de bilheteria já não o têm entre os seus dez maiores, porque a aferição é feita em termos dos lucros auferidos e, assim, os ingressos antigamente eram muito mais baratos.

Ainda que hoje a nova geração não o veja mais, o fato é que durante as décadas de 40, 50 e 60,...E o vento levou era uma referência constante, e não havia cinéfilo, que se quisesse prezar, que não o tivesse visto. Acredito que se, atualmente, os campeões de bilheteria, Titanic ou, já a o superar, Batman, o cavaleiro das trevas, tenham obtido as maiores bilheterias da história do cinema, por outro lado, nenhum filme como ...E o vento levou tenha ficado três décadas em cartaz (com as constantes reprises habituais daquela época) e no imaginário dos amantes do cinema. Os espetáculos cinematográficos atualmente são lançados e logo retirados de cartaz e esquecidos com muita facilidade.

Emblemático como obra cinematográfica típica da indústria hollywoodiana da época, cujos sustentáculos estavam em três pilares básicos, o star system, o studio system, e a divisão dos filmes em gêneros específicos, ...E o vento levou é um filme de autor às avessas, a contrariar em gênero, número e grau, a Política de Autores (Politique des auteurs) formulada pelos jovens turcos da revista francesa Cahiers du Cinema, para os quais o verdadeiro criador de um filme era o seu diretor (embora a admitir também que havia obras nas quais o diretor era apenas administrativo, mas, para os turcos os melhores eram aqueles que se podiam definir como de autores). Porque o verdadeiro autor de ...E o vento levou é o seu produtor supremo David Selznick e seus diretores não passam de meros diretores administrativos, coordenadores de elenco, diretores de cena.

Adaptação do romance bastante popular de Margaret Mitchell, ...E o vento levou apresenta os estertores da época esplendorosa do Sul dos Estados Unidos e sua derrocada quando da eclosão da Guerra de Secessão. Obra essencialmente intimista (idealista), que foge aos cânones do realismo cinematográfico, tem seu interesse centrado na espetacularidade e no violento choque de personalidades entre os personagens vividos por Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland e Leslie Howard. O conflito bélico que se instaura, como em todo filme característico do idealismo, serve apenas como pano de fundo. O centro de tudo é a personagem de Scarlett O"Hara (Vivien Leigh) e suas ambiguidades em relação aos mistérios do amor e sua esfuziante personalidade. Pese à acusação de excessiva espetacularização, não se pode negar que algumas sequências são antológicas e, mesmo com a tecnologia atual, difíceis de serem vistas atualmente com tal força de impacto, a exemplo do baile aristocrático e a do incêndio de Atlanta.

Uma rica herdeira sulista, Scarlett O'Hara, apaixona-se por seu primo (o ator inglês Leslie Howard que viria a morrer em acidente poucos anos depois de ter participado do filme), mas este dá preferência à  Melanie (Olivia de Havilland). Ao estourar a guerra, Scarlett vê-se obrigada a assumir a direção da família, e é cortejada por Rhett Butler (Clark Gable), comerciante, e bon vivant, que a salva do incêndio de Atlanta. Assediada por Rhett (no bom sentido do assédio sem as conotações perversas do estabelecido pela onda politicamente correta atual), termina por se render a seus encantos e se casa com ele. O beijo na carroça, quando ela é salva do incêndio, tendo ao fundo as chamas, que o technicolor de então oferece num tom vermelho é um assombro, para os padrões da época, entre ela e Rhett, é antológico, e figura em qualquer livro que se queira abrir sobre cinema. O caráter rebelde e instável, porém, e sua insistência no amor ao primo, e a morte de seu filho (acidente num cavalo) terminam por conduzir o matrimônio a um beco sem saída.

...E o vento levou é a mais gigantesca superprodução do cinema americano da primeira fase do sonoro. Mesmo para os padrões atuais, não se pode imaginar o êxito de seu lançamento com uma multidão de pessoas diariamente em filas quilométricas nas portas dos cinemas. Um verdadeiro fenômeno que marcou definitivamente um tempo em que o sistema de estúdios dava as cartas para o sucesso dos filmes. E, além do mais, Gone with the wind representa bem um estilo de representação não somente da realidade focada, mas um estilo de cinema que se fazia no período.

Neste particular, a obra cinematográfica mais representativa, embora excelentes filmes foram realizados neste magnífico ano de 1939, cristalização da arte clássica, segundo escreveu André Bazin: O morro dos ventos uivantes (Wuthering heights), de William Wyler, No tempo das diligências (Stagecoach), de John Ford, A mulher faz o homem (Mr. Smith goes to Washington), de Frank Capra, A regra do jogo (La règle de jeu), de Jean Renoir, O mágico de Oz (The wizard of Oz), de Victor Fleming, Jesse James, de Henry King, entre muitos outros.

...E o vento levou teve vários diretores, entre eles George Cukor (que filmou quase toda a primeira parte antes da guerra), Sam Wood, e Victor Fleming (que, afinal, ficou com os créditos). Mas apesar do controle absoluto e obsessivo de David Selznick, o filme, sempre um trabalho de equipe, não seria o mesmo sem a contribuição, mesmo que administrativa, dos diretores citados, e, principalmente, de seu diretor de arte William Cameron Menzies. Vale ressaltar que entre os roteiristas de ...E o vento levou há contribuições nos diálogos de William Faulkner e F. Scott Fitzgerald. A atriz negra Hattie McDaniel, que faz a criada de Scarlett, foi indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante (e ganhou), mas não pôde receber o prêmio, porque um negro não podia entrar, segundo as leis racistas da época, no teatro da entrega dos Oscars.

Para se ter uma idéia, ...E o vento levou, considerado uma fortuna para a época, custou aos cofres da produtora de Selznick apenas cinco milhões de dólares e rendeu trinta e dois. Atualmente o salário de uma atriz como Julia Roberts não sai por menos de vinte milhões (de dólares, de dólares!).

03 julho 2012

A dublagem: sempre maldita e criminosa

Laurence Olivier e Dustin Hoffman em Maratona da morte (Marathon man), de John Schlesinger: thriller de tirar o fôlego.
A dublagem dos filmes estrangeiros açoita a consciência dos verdadeiros amantes do bom cinema. Há algumas décadas, um deputado, Leo Simões, apresentou, ao Congresso Nacional, um projeto nesse sentido, que, para a glória dos cinéfilos, foi rejeitado. Atualmente, porém, a dublagem está a se impor sem nenhuma lei que a determine. Filmes que são lançados no circuito comercial, principalmente os blockbusters, com centenas de cópias, estão, a maioria delas, dubladas em português. Em quase todos os DVDs há, ainda, as duas opções: versão original e a dublada, mas, segundo pesquisa publicada em jornal sulino, mais de 70% dos que foram ouvidos preferem a versão dublada, muitos por causa "da preguiça de ler as legendas!" No caso dos filmes que estréiam no mercado exibidor, quando obras de nítido apelo comercial, poucas as versões originais, sendo até difícil localizá-las em que cinemas estão sendo exibidas. 

A maioria do público, na verdade, somente se interessa pelo desenvolvimento da intriga, pelo enredo, e pouco se lhe dá se o filme é dublado. O cinema como estrutura audiovisual, como mise-en-scène, não tem nenhum valor para as pessoas que frequentam atualmente as salas exibidoras concentradas nos shoppings centers. O interesse apenas recai sobre os acontecimentos narrados, pela ação ininterrupta, pelos efeitos especiais, e pelas piadinhas infames sobre sexo (como nas neo-chanchadas do cinema brasileiro, um filão que desabrochou e está crescendo para desespero daqueles que querem um cinema nacional bravo e atuante). A implantação da dublagem, já notaram os comerciantes dos filmes, diante de um público massivo, passivo, apático, é, por assim dizer, uma mão na roda.

O fato é que a dublagem se constitui num atentado à integridade da obra cinematográfica. Diria mesmo um crime que se comete contra a pureza do filme. Em primeiro lugar, deve-se considerar que a inflexão vocal tem muita importância na interpretação dos atores e atrizes. Alguns intérpretes treinam durante dias para dar o tom exato às suas falas. Já pensaram Don Corleone, interpretado por Marlon Brando, em O poderoso chefão (The godfather, 1972), falando um português uniforme e sem inflexões?

A dublagem também interfere na perfeita dosagem entre as três bandas sonoras de um filme: a de diálogos, a de ruídos, e a da partitura musical. Há que se ter uma perfeita harmonia nessas três bandas, que são reunidas numa só pelo processo da mixagem. Quando se dubla um filme, as três bandas são separadas e se privilegia a dos diálogos em detrimento da dos ruídos e da partitura musical. É absolutamente insuportável se assistir a um filme dublado. Pessoalmente, detesto-a, não admitindo a dublagem nem em desenhos animados. E poderia mesmo dizer: se a dublagem vier a se constituir regra geral, nunca mais irei ao cinema, procurando contentar-me com os DVDs que tenham a versão original dos filmes.

Há um exemplo demolidor da dublagem em Maratona da morte (Marathon man, 1975), de John Schlesinger. Sir Laurence Olivier interpreta Mengele, o perverso nazista, cirurgão dentista, que se encontra em Nova York e, numa sequência, faz um interrogatório com Dustin Hoffman na cadeira de dentista. A princípio, quando chega, Olivier diz um quase afetuoso "is it saft?". Durante a sequência inteira, ele somente faz esta interrogação a um Dustin Hoffman apavorado, mas, a cada uma delas, confere um tom diferente na dicção até que a pergunta surge raivosa e gritada. Momento seguinte, uma broca fura o céu da boca de Hoffman. Na versão dublada em português, o "is it saft?" é substituído por um "é seguro?" sem nenhuma inflexão e dito de maneira uniforme. Resultado: toda a atmosfera da sequência, que reside, na versão original, no tom de voz de Olivier, perde-se completamente na dublada. Uma espécie de anulação das intenções do realizador e de sua correta produção de sentidos. 

Nessa questão da dublagem, sou radical: não vejo filme dublado. A televisão por assinatura, que passa seriados, está dublando os filmes e, por isso, nos dublados, não posso me sentir cúmplice do espetáculo, demitindo-me logo deste. A dublagem televisiva é pavorosa (aliás, a bem da verdade, toda e qualquer dublagem é pavorosa). 

É de causar espanto que em países civilizados como a França, a Itália, a Espanha e a Alemanha, entre outros, a dublagem já é um fato consumado há mais de meio século. Mas há a opção pelas versões originais. Acontece, porém, que um filme é lançado, nesses países, com a maioria das cópias vertidas para o idioma pátrio, restando as originais em salas mais caras. O Pariscope, revista cultural que oferece todos os programas culturais franceses, por exemplo, depois do nome do filme vêm as duas letras: v.o. para as originais (não dubladas) e v.f. versão francesa. Como se sabe, o cinema americano não domina apenas o mercado exibidor brasileiro (aqui, 99,9% dos cinemas são de empresas multinacionais), mas quase todo o mundo - excetuando-se a Índia, os países árabes, entre poucos outros, que não aceitam nem compreendem o filme americano e, por isso, desenvolveram poderosas indústrias cinematográficas (Bollywood, como é chamada a indústria indiana é maior que Hollywood em número de fitas). Por outro lado, na Europa, existem os Cinemas de Arte e Ensaios (salas alternativas) que passam filmem selecionados de grandes cineastas nas suas versões originais com legendas próprias.

Nos anos 70, os xenófobos do cinema brasileiro tentaram apoiar - na época da vigência da Embrafilme - a implantação da dublagem obrigatória no Brasil. Entre os seus principais argumentos, estava a defesa da ampliação do mercado de trabalho para dubladores e a instalação de novos equipamentos. Por uma questão de mercado, queria se matar a estética cinematográfica. Mas, felizmente, a idéia não foi adiante. 

Atualmente, com os filmes destinados ao DVD, que possuem versões originais e dubladas, o mercado de dubladores se encontra em franca expansão. Em alguns DVDs, inclusive, ao término dos filmes, aparecem os créditos dos dubladores dos atores e atrizes. Na Europa, há dubladores especialmente selecionados para determinados atores, que são conhecidos do grande público. Fulano de tal é o dublador de Brad Pitt, por exemplo. Quem dubla, mata, quem dubla interfere no processo de criação da obra cinematográfica, quem dubla afeta a sua integridade.

Fujo de filmes dublados como o diabo foge da cruz.

01 julho 2012

Ruídos estéticos

Jack Palance como o pistoleiro Wilson em Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens




Quando do advento do cinema falado, em fins dos anos 20, a verborragia tomou conta dos filmes e se destruiu por completo a estética da arte muda. A linguagem cinematográfica alcançara uma perfeição quase absoluta, mas pedia o som. Este veio de forma desordenada e os filmes perderam, por assim dizer, a sua arte, para se transformarem em avalanches de diálogos. Foi preciso esperar a década de 30 para que houvesse uma compreensão da exata estrutura audiovisual do cinema e, então, alguns cineastas conseguiram dosar a imagem e o som, que entraram em conjugação harmônica. O surgimento do cinema falado também veio a estabelecer uma série de problemas, como bem mostra, de maneira satírica, aquele que é considerado o maior musical de todos os tempos: Cantando na chuva (Singin'in the rain, 1952), de Stanley Donen e Gene Kelly. 

  Há, na parte sonora, três bandas: a banda dos diálogos, a banda da partitura musical, e a banda dos ruídos. Esta última, por incrível que pareça, ainda se encontra pouco utilizada como elemento estético. Um filme argentino, extraordinário, O pântano, de Lucrecia Martel, é um exemplo perfeito da sábia utilização dos ruídos. Martel esteve ano passado no Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual e falou sobre a estética dos ruídos. 

  Lars von Trier, cineasta dinamarquês, soube usar o ruído com propriedade nas cenas da floresta em O anticristo, assim como a própria Martel os utiliza com eficiência estética e dramática em O pântano (os ruídos das cadeiras no pátio onde se encontra uma piscina, os raios etc). Os fratelli Coen sabem usá-los em seus filmes, notadamente no oscarizado Onde os fracos não têm vez.
  Foi apresentado no Cannes Classic, evento do festival do mesmo nome, a cópia remasterizada de Psicose, causando, ainda hoje, 50 anos depois, um grande impacto na platéia, principalmente por causa da partitura impactual de Bernard Herrmann que, na remasterização do filme consegue ser ouvida em todos os seus detalhes. Aliás, a narrativa para Psycho é executada, hoje, em concertos da maior expressão no cenário internacional. O grande Herrmann, que assinou as trilhas dos principais momentos hitchcockianos, morreu em 1975, após compor a partitura de Taxi Driver, de Martin Scorsese, na qual, pela primeira vez, se utiliza de instrumentos eletrônicos. 

  Nunca se pode deixar de esquecer e verificar que o cinema é uma estrutura audiovisual. Mas as pessoas insistem em dar valor a um filme por causa do seu elo semântico, isto é, o conteúdo, a mensagem. O que é um erro, pois o valor cinematográfico de um filme se encontra na sua linguagem, na maneira de o cineasta a articular por meio dos planos, dos movimentos de câmera, da angulação, da montagem etc. 

O advento do som provocou uma reviravolta completa na já estabelecida estética da arte muda que alguns realizadores, a exemplo de Charles Chaplin, se recusaram a aderir ao cinema falado. Chaplin realizou Luzes das cidades (City lights, 1930), quando o som já era moeda corrente nas salas exibidoras. E ficou agarrado a uma estrutura narrativa da era muda em 1936 em Tempos modernos, e somente veio a falar em 1941 quando fez um discurso bombástico em O grande ditador (embora neste filme a estrutura narrativa continuasse a ser do cinema mudo). 

Mas muita água rolou debaixo da ponte em 116 anos de cinema, arte jovem, como se pode ver, se comparada às outras. Lucrecia Martel fez O pântano com a consciência de uma cineasta ciente das possibilidades estéticas do cinema contemporâneo. Argentina, é considerada pelos críticos, uma das diretoras mais originais da atualidade. Basta dizer que A menina santa, de sua autoria, é um dos filmes preferidos de Pedro Almodóvar.

Em Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens, quando Paredão (Elisha Cook Jr), tirando onda de valentão, tenta, no lamaçal diante da taberna onde se encontra o temível pistoleiro Wilson (Jack Palance), dizer-lhe algumas poucas e boas, Wilson, com seu olhar frio, fita o pobre Paredão enquanto coloca, maneirosamente, as suas luvas pretas (sinal que vai sacar da arma). O tiro que Wilson dispara tem um ruído tão intenso, que causa grande impacto. George Stevens, numa entrevista antológica a Paulo Perdigão publicada na revista Filme/Cultura, disse ao crítico carioca que o som do tiro foi, na verdade, o som de um tiro de canhão. Há, por outro lado, ruídos que servem como sinal de pontuação, como a mala que cai no final de Frenesi, de Alfred Hitchcock para sinalizar, com impacto e mise-en-scène, o término do filme. 

E a palavra como elemento estético, um fim em si mesma, aconteceu com o extraordinário, e imprescindível, Hiroshima, mon amour (1959), de Alain Resnais, que provocou, na época, comoção diante de sua originalidade. Originalidade que seria reforçada dois anos depois pelo próprio Resnais em O ano passado em Marienbad. E, impressionante, este realizador, com quase 90 anos de idade, continua em atividade, tendo nos brindado, ano retrasado, com um filme que foi, de longe, o melhor, As ervas daninhas (Les herbes folles). Outro longevo é o português Manoel de Oliveira, que já passou dos 100 e continua filmando.