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05 janeiro 2011

"Tocaia no asfalto", de Roberto Pires (Bahia, 1962)

Petrus Carneiro Pires, filho do grande cineasta baiano, é o responsável pelo resgate da memória do pai.

A cópia de Tocaia no asfalto, de Roberto Pires, que se encontrava em vias de extinção no seu negativo original, conseguiu ser totalmente restaurada. É um feito e tanto para a preservação da memória do cinema baiano. Considero este o melhor filme, até hoje, entre as mais de duas dezenas de longas metragens realizados na Bahia. Depois dele, na minha opinião, vem A grande feira, do mesmo Pires, que foi homenageado no ano em curso pela passagem dos 50 anos de seu primeiro longa e primeiro do cinema baiano: 'Redenção', de 1959.
Thriller genuinamente baiano realizado em 1962, que aborda o relacionamento dos políticos com a criminalidade e as idiossincrasias da personalidade de um pistoleiro de aluguel, Tocaia no asfalto, de Roberto Pires, produzido logo após 'A grande feira', é um filme que pode ser visto em dois planos: no plano de sua narrativa e no plano de sua fábula (história). No primeiro, destaca-se sobremaneira a artesania de Pires, o domínio pelo qual articula os elementos da linguagem cinematográfica em função da explicitação temática. Seu trabalho, nesse particular, é de ourivesaria e, aqui, em Tocaia no asfalto, tem-se um exemplo onde a narrativa suplanta a fábula, ainda que os dois planos sempre devam ser observados em processo de simbiose.
Realizado em plena efervescência do chamado Ciclo Baiano de Cinema - 1959-1963, Tocaia no asfalto, atesta o seu vigor e a sua atualidade temática. Duas seqüências podem ser consideradas antológicas e das melhores do cinema brasileiro: a tentativa de assassinato frustrada na Igreja de São Francisco, e a do cemitério do Campo Santo. Pires demonstra o seu apuro, o seu sentido de cinema, o 'timing' raro, um faro, por assim dizer, para 'pensar' cinematograficamente o estabelecimento da 'mise-en-scène' como fator de impacto e de emoção.
Ainda que uma obra formatada nos moldes de uma linguagem clássica -o que não lhe tira de modo nenhum a qualidade, que se fundamenta na chave narrativa da progressão dramática griffithiana, há, no entanto, uma sequência que, sem se ter medo de errar, poder-se-ia chamá-la de eisensteiniana. É aquela na qual Roberto Ferreira tenta se ver livre dos presos num caminhão e tenta intimidá-los com um revólver, ocasionando uma fuga em pleno movimento do veículo, quando vem a morrer o irmão do personagem interpretado por Agildo Ribeiro. A rapidez, com que são expostos os rostos embrutecidos dos pobres diabos que estão no caminhão, tem um ritmo que se assemelha a um 'touch' buscado na concepção de montagem de Sergei Eisenstein. Esta sequência é um 'flash-back', quando Agildo Ribeiro, dançando, sente-se mal e começa a ter pesadelos retroativos.
Assim, Tocaia no asfalto se sobressai pela narrativa impactante que está a serviço do argumento, mas que predomina sobre este. Que versa sobre um pistoleiro contratado para matar um político corrupto (Milton Gaúcho), que, chegando do interior, vai morar num prostíbulo e se apaixona por uma mulher (Arassary de Oliveira). Enquanto isso, um jovem político bem intencionado (Geraldo D'El Rey) pretende instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as falcatruas do grupo do político que está na mira do assassino. Mas as reviravoltas do argumento determinam uma contra-ordem e o pistoleiro, na iminência de matar, é avisado que não mais precisa cumprir o trabalho. Apesar de um matador profissional, tem, porém, seus códigos de honra e prefere ir até o fim naquilo para o qual fora incumbido. Não lembra 'Sargento Getúlio', de João Ubaldo Ribeiro?
Tocaia no asfalto se desenrola em dois ambientes: o ambiente burguês da casa do político, abrangendo as festas, os colóquios e o namoro de sua filha (Angela Bonatti) com o jovem e promissor parlamentar, e o ambiente pobre do prostíbulo comandado com mão de ferro por Jurema Penna e, no qual, o pistoleiro é hospedado, vindo a conhecer uma prostituta pela qual se apaixona. A latere, alguns personagens, como o policial interpretado por Adriano Lisboa, que circula entre os dois ambientes, Antonio Pitanga, outro matador, contratado, desta vez, para matar o outro. Pires, em alguns momentos, através da montagem paralela, tenta mostrar os acontecimentos em perspectiva de simultaneísmo, quando, por exemplo, Agildo e Arassary conversam no Farol de Itapoã.
Notável realizador, Roberto Pires, responsável pelo primeiro longa feito aqui, Redenção (1956-59), pelo seu extremado domínio formal da linguagem, poderia ter ido longe se trabalhasse no exterior, mas as injunções mercadológicas de um cinema caótico, como o brasileiro, determinaram-lhe, por vezes, um recesso forçado. Mas filmes como A grande feira e Tocaia no asfalto bastam para se ter um cineasta.
Não se pode deixar de registrar a funcionalidade da partitura de Remo Usai - que soa como um grito trágico na seqüência final do trem, o bom argumento de Rex Schindler - também produtor, associado a David Singer, e a fotografia de Hélio Silva. E uma pergunta que não se quer calar: por que, com todos os recursos existentes hoje, o cinema baiano não consegue fazer algo parecido com Tocaia no asfalto?

04 janeiro 2011

"Wall Street" onde Oliver Stone dorme


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O Professor Jorge Vital de Brito Moreira, baiano que atualmente mora nos Estados Unidos, e ministra aulas em universidades americanas, analista dos fatos contemporâneos, também é um eficiente exegeta de filmes. Quando morou na Bahia, no século passado, chegou inclusive a participar dos primeiros filmes em Super 8 de Edgar Navarro. Ele me mandou, especialmente para o Setaro's Blog, uma crítica a Wall Street: o dinheiro nunca dorme, de Oliver Stone. Abrindo as devidas e necessárias aspas, ei-la abaixo:

"Depois de assistir “Wall Street: o dinheiro nunca dorme”, do diretor Oliver Stone e ficar insatisfeito com o que vi, comecei a fazer perguntas sobre o sentido, o valor e a relevância de realizar mais um filme  melodramático sobre Wall Street em 2010.

Ainda que reconheça a importância artístico/cultural de filmes como Platoon (1986), Wall Street (1987) e JFK (1991), não posso deixar de perceber que os filmes Nixon (1995), Alexandre (2004) e Wall Street: o dinheiro nunca dorme, não apresentam a mesma importância que os três primeiros do diretor.

Não faz muito sentido ir ao cinema  (ou alugar um DVD)  para  assistir  aos mais recentes filmes de ficção de Stone e logo perceber que ele não parece ter avançado no entendimento da função ideológica do cinema estadunidense no marco da crise nacional e internacional da globalização capitalista; ao contrário, parece que está regredindo com o decorrer dos anos.
Custa acreditar que Stone (que é considerado um cineasta da esquerda política), continue tratando de representar a história social do império norte-americano (ou do império grego) em crise, através da forma melodrama e das características psicológicas do sujeito individual (presidente ou imperador), quando sabemos que esta fórmula ficcional foi produzida por uma visão de mundo decorrente da mitologia e da doutrina do individualismo liberal.

O novo  “Wall Street: o dinheiro nunca dorme” é um bom exemplo para ilustrar o que eu quero dizer: o filme trata de representar a crise geral do capitalismo imperial mas o resultado concreto decepciona. Depois de assistir aos documentários de Michael Moore e observar os avanços cinematográficos e ideológicos que ele fez para denunciar a dinâmica destrutiva do sistema capitalista, resulta supérfluo seguir assistindo às narrativas ficcionais do tipo “Wall Street: o dinheiro nunca dorme”.
Aqui, Stone procura, mais uma vez, repetir a fórmula individualista com que Orson Wells realizou brilhantemente o “Cidadão Kane”, mas as inovações na estrutura narrativa, na música e na cinematografia do filme, não puderam anular as limitações ideológicas do cidadão Wells. Elas se originam (como observou Glauber Rocha no livro O século do cinema) no querer representar a história social de USA concentrando-se na psicologia individual de C. F. Kane, ignorando a participação dos  trabalhadores na dinâmica da luta de classes do país. O mesmo erro histórico e conceitual domina (sem a genialidade criativa de Wells) o novo filme de Oliver Stone.

Para aqueles que não tiveram a oportunidade de assistir ao filme de Stone, darei em seguida umas informações básicas (além de um resumo do  argumento)  para o leitor deste texto.

 “Wall Street: o dinheiro nunca dorme”(2010) é um drama (escrito e dirigido por Oliver Stone) que pretende dar continuidade a história do primeiro “Wall Street” (1987). No segundo, também podemos assistir a  Michael Douglas repetindo o papel do protagonista Gordon Gekko “greed is good” e a Charlie Sheen repetindo o personagem Bud Fox. O filme também conta com a participação de novos atores: Shia LaBeouf, no papel Jacob “Jack” Moore,(um jovem especulador financeiro que é noivo da filha de Gekko) e Carrey Mulligan que representa o papel de  Winnie,  a única filha do especulador Gekko. Ainda podemos assistir ao ator Josh Brolin no papel do o diretor executivo (Chief executive officer, CEO) Bretton James que é o oponente e competidor (alem de ser o principal vilão do filme) de Louis Zabel (Frank Langella), de Jacob e  de Gordon Gekko.
 
Vamos ao argumento do filme: alguns anos depois de estar na cadeia, Gordon Gekko é colocado em liberdade mas se encontra por fora do mundo das grandes finanças (e dos grandes especuladores financeiros) que ele dominou no passado.

Procurando reconquistar sua fortuna e sua posição em Wall Street (alem de tratar de refazer a arruinada relação com a filha Winnie), Gordon Gekko estabelece uma aliança de poder com Jacob Moore.

Jacob (que necessitava de um pai substituto para preencher o lugar vazio deixado por Louis Zabel, o presidente da companhia  que tinha se suicidado), começa a confiar em Gekko como se este fosse um verdadeiro pai (assim como fez Budd Fox no Wall Street,1987) mas Gekko, como todo especulador financeiro, engana e manipula a Jacob (e a filha) para poder reaver os milhões de dólares que se encontravam depositados secretamente num banco da Suíça...Vou parar por aqui. Deixo o leitor livre para decidir se deve (ou não)  assistir e julgar o filme  com seus próprios critérios.
Quanto ao meus critérios, creio que Oliver Stone tinha quase tudo para fazer um filme capacitado para denunciar as abomináveis manipulações dos representantes do capital financeiro, assim como para ilustrar a responsabilidade deles na produção da crise econômica/social a nível nacional e mundial.

As primeiras cenas, prometem uma representação da especulação financeira ainda mais contundente, acurada e veraz, que a que foi realizada no primeiro Wall Street. Existem, no segundo, duas seqüências de cenas (provavelmente as melhores do filme) que mostram duas reuniões no Banco da Reserva Federal (USA Federal Reserve System, FED) com o presidente do Tesouro americano (chairmen of the US Treasury).
Na primeira reunião, Zabel luta para conseguir um resgate financeiro (bailout) do presidente do Tesouro americano para salvar a sua companhia, mas é bloqueado pelo Bretton James (o especulador rival) e por seus competidores. Esta seqüência, revela também como a máfia financeira que consegue arruinar a companhia do chefe de Jacob (o paralelismo com a falência e a ruína real do banco Lehman Brothers é bastante acentuado), permanece impune para continuar produzindo e reproduzindo os malefícios da crise global do sistema.

 Na segunda reunião, Bretton James e os representantes das maiores instituições financeiras de USA, amedrontam ao Presidente do Tesouro americano, manipulando-lhe para que lhes entreguem os bilhões de dólares (de dinheiro público) para tapar o gigantesco rombo/roubo ocasionado pela especulação deles com as hipotecas podres (subprimes).

A partir deste ponto o roteiro do filme começa a mudar de direção: em vez do filme continuar denunciando o sistema que engendrou a máfia de Wall Street para roubar a classe media e classe trabalhadora de USA, Stone desvia o foco narrativo para se concentrar nas elucubrações de um melodrama familiar banal onde uma radiografia do feto da filha Winnie será capaz (pasmem!) de  produzir a regeneração e a definitiva redenção de Gordon Gekko, um dos maiores  especuladores  financeiros da historia de Wall Street.

Não é necessário seguir comentando a narrativa de Stone para entender que seu filme conclui sugerindo (de forma ridícula e patética) que  o capital financeiro de USA pode ser reformado; que o capital  pode ser resgatado do seu modo destrutivo de existência.
Para lograr este desconcertante final feliz, o filme de Stone trata de nos convencer que o monstruoso especulador de Wall Street, poderá renunciar ao poder da sua ganância, para contribuir à redenção de seres humanos, porem sem ter de mudar ou destruir o sistema capitalista.

Assim, o filme (como num oxímoro) é capaz de contradizer a si mesmo produzindo o absurdo de procurar salvar o capital financeiro do próprio sistema capitalista.

Como não poderia deixar de acontecer, sai do cinema irritado, com aquela sensação de que tinha sido enganado; de que o novo Wall Street de Oliver Stone (tal como tem feito Barak Obama e seu partido democrata) promete mas não é capaz de cumprir.

Desta forma, o filme resulta completamente incapaz para produzir algum conhecimento útil para ajudar o espectador a compreender algumas das características do capital financeiro; nem para ajudar a entender o papel que jogou Wall Street na produção e reprodução da crise do sistema capitalista na sua totalidade.

Em vez de ajudar na luta contra a hegemonia burguesa numa sociedade dividida em classes sociais, o filme (consciente o inconscientemente) termina funcionando ideologicamente como uma  falsa consciência a serviço da ignorância e da mistificação política; termina funcionando como mais um instrumento para legitimar a dominação e a exploração social dos oprimidos e excluídos pelo sistema."

02 janeiro 2011

Cassavetes e os fluxos que rodeiam o ser

Faces, um filme de John Cassavetes



Reproduzo aqui alguns trechos de um livro de Thierry Jousse sobre John Cassavetes, um dos mais importantes cineastas do cinema americano:

"O objeto do cinema de Cassavetes é o fluxo, ou melhor, os fluxos que rodeiam o ser; aquilo que flutua em torno e excede o eu; o ritmo que circula, inatingível, entre as coisas, entre os seres. Fluxo de amor, bem entendido (Love Streams ["As Amantes"]), mas também fluxo lingüístico ou fluxos sob o efeito do álcool. Este último é intimamente ligado ao corpo; atravessa-o com feixes de energia, provoca vibrações de alto a baixo, mas só escapa raramente, permanecendo fixo no corpo."
"O álcool está no centro do cinema de Cassavetes. Não apenas porque o próprio Cassavetes bebia (provavelmente até morrer), mas sobretudo porque ele foi um dos raros cineastas que souberam apreender por dentro os efeitos do álcool e fazer do fluxo da bebedeira motor do cinema."

"O álcool é um clima, um estado, uma sensibilidade, uma percepção, intimamente ligado a alguns lugares privilegiados. Cafés, bares, pubs, boates povoam os filmes de Cassavetes. Nesses espaços cheios, o calor, a decoração e a luz participam integralmente da embriaguez. Tudo se passa como se o bar se unisse à embriaguez, com sua fumaça, seus halos, suas linhas imprecisas, suas conversas entrecortadas, seus pedações de palavras que apanhamos no ar, seus freqüentadores que se entrechocam e se tocam, seus nevoeiros de espaço-tempo, sua percepção oscilante."

"Cassavetes não tem um olhar moralizador em relação ao álcool. A embriaguez nunca é apontada como doença, mas sim como força de liberação, com múltiplos efeitos. Deprimente ou excitante, paranóica ou afetiva, a embriaguez tem sempre dois pólos, negativo e positivo. Em Faces, o álcool desenvolve a paranóia, aumenta a agressividade e sublinha a decadência catastrófica de cada momento..."

"O álcool é como uma compensação ao vazio existencial que a invade, a única maneira de fugir ao tormento do ser."
"Talvez mais profundo que o fluxo do álcool, o fluxo do amor - força impessoal, invisível, quase mediúnica - ultrapassa os limites do corpo."