Os dias passam, mas ainda sinto o impacto dos filmes dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani que pude rever graças ao DVD. Já pensaram se não existisse o DVD ou, mesmo, a tão mal amada fita magnética (atualmente não se encontra ninguém que queira saber de vídeo - eu conservo o meu aparelho Panasonic e minhas fitas, ainda que a possibilidade do mofo)?. Revi, como já disse aqui, Aconteceu na primavera (Fiorile), Noites com sol (Il sole anche di notte), As afinidades eletivas (Le affinità eletive), este último com a talentosa Isabelle Huppert, atriz francesa. Os três filmes me determinaram uma interrupção na visão de obras cinematográficas. Estou numa espécie assim de quarentena estética, se isso é possível. A vida, no entanto, continua, e minha rotina diária de um DVD por dia tem que continuar. Decidi que a quarentena acaba hoje e vou à locadora procurar os disquinhos que me encantam. Antes, porém, vou rever um excelente filme de Vincente Minnelli, que, baixado da internet por um amigo gentil, vi no computador e, agora, graças a uma alma caridosa que o passou do CD para o DVD, posso vê-lo com mais amplitude, já não que na tela grande do cinema é utopia e sonho impossível. Trata-se de Deus sabe quanto amei (Some came running, 1958), de Vincente Minnelli, com Frank Sinatra, Dean Martin, Shirley MacLaine, Arthur Kennedy, entre outros notáveis. O título em português é meio idiota e faz supor um melodrama banal. Traduzido seria, mais ou menos, como uma torrente.
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26 abril 2007
24 abril 2007
Arte versus Comércio
Ronaldo Leite Filho, hitchcockiano por vocação e devoção, gosta muito de cinema. Conhece como poucos a filmografia do mestre Hitch. E é um cinemeiro, que sabe apreciar um bom espetáculo cinematográfico. Escreveu o texto que vai abaixo. Que faço questão de publicar mesmo sem a autorização devida do autor. Que, além de um conhecedor de cinema, é cervejeiro, pessoa capaz de acabar com o estoque de um bar. Quando Ronaldo Leite senta para tomar uma cerveja, os proprietários de bares soteropolitanos ficam assustados, com medo de perder outros clientes, caso os estoques estejam baixo.
"Com a dificuldade de inserção dos filmes europeus e asiáticos nas salas de exibição, em função da predominância do filmes hollywoodianos, criou-se então o rótulo "cinema de arte" para essas produções marginais ao mainstream. Esse artifício – surgido graças também ao advento da Nouvelle Vague –, de caráter marcadamente mercadológico, acabou surtindo efeito em parte do público, criando um nicho de mercado; e, mais do que isso, enraizou-se no senso-comum, levando o público a acreditar que realmente existe um cinema "de arte", não contaminado por questões financeiras e comerciais, como as produções hollywoodianas.
Para ilustrar e pensar esta problemática, o trabalho vai analisar a posição de críticas de dois filmes bastante exemplares: A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat) e O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings – The Fellowship of the Ring); o primeiro é o típico filme visto, como filme de arte, porque europeu e dirigido pelo cineasta francês Claude Chabrol, egrégio da Nouvelle Vague. O segundo, por sua vez, é um filme imediatamente tido como comercial, afinal, uma caríssima superprodução, um épico de aventura, com o apoio de pesada campanha publicitária. A partir desses dois filme e as críticas correspondentes, pretende-se compreender o processo que levou à distinção entre "cinema de arte" e "cinema comercial", entre arte e entretenimento, entre a "alta cultura" e a tida como descartável.
O primeiro equívoco quando se pensa essa distinção é nitidamente conceitual: existe sim, a arte do cinema, não o cinema de arte; pode-se julgar um filme como melhor que outros, mas todos são produções cinematográficas e, portanto, frutos de uma mesma forma de expressão, o cinema.
O segundo erro é pensar a produção artística possível de forma completamente autônoma, livre de quaisquer amarras ou constrições. No campo cinematográfico, que é o foco deste estudo, especificamente, todas as produções possuem uma dimensão material – financeira, mercadológica etc – e uma dimensão artística – criativa, estética etc. O que varia de uma obra para outra é o grau de atuação de uma ou outra dimensão, não sua natureza; de fato, não há um tipo de produção artístico por excelência e outro apenas comercial (Herscovice).
Tal pensamento equivocado serviu apenas para reforçar preconceitos, de ordem ideológica - uma das formas mais descartáveis de julgamento - e estética contra Hollywood, principalmente. Diz-se, por exemplo, que um filme é dispensável por ter exigido uma produção cara, por ter um sujeito como Spielberg, Eastwood, Zemeckis ou algum americano típico na direção, por não conter mensagens ideológicas ou existencialistas, além de uma série de outras exigências tolas e infundadas.
Mesmo antes do advento da Indústria Cultural – não exatamente nos moldes adornianos e todos os seus exageros e simplificações (Adorno, 1978) – o campo artístico não poderia ser considerado livre e autônomo. Os artistas – que nem sempre tiveram o status atual – já foram dependentes dos mecenas, da Igreja, dos Senhores e Nobres e, hoje, dependem de um outro tipo de entidade: o mercado, essa esfera de troca na qual depende-se primordialmente da demanda.
O fato é que entre os séculos XVII e XIX os artistas passaram a ser vistos como atores diferenciados no corpo social. Ultrapassaram a condição de meros artesões, técnicos, que construíam objetos que tivessem valor de uso, que refletissem as idéias da Igreja ou contribuíssem para legitimar figuras sociais de destaque, como os aristocratas. Houve uma sacralização da obra artística, destruída no século XX, segundo Walter Benjamin (1978), para o qual a obra de arte perdeu a aura na época de sua reprodutibilidade técnica. Com essa sacralização, entrou em voga a concepção do artista enquanto ser iluminado, que cria por si só, alheio as contaminações mundanas, como a interferência do capital.
Com a inserção aparentemente plena da arte no campo mercantil pela Indústria Cultural, muitos – principalmente os frankfurtianos – entenderam que a arte foi maculada, deixando de ser a velha arte, estética por excelência, bela, fruto de um trabalho criativo de uma mente livre. Os artistas, no entanto, continuam fazendo uso de sua criatividade e conhecimento lingüístico para compor suas obras, mas para atingirem os possíveis apreciadores têm de seguir certas regras do jogo mercadológico, que impõem certos limites, certos tipos de formatos e conteúdos. Repetindo, o que varia é o grau de atuação de cada um desses dois lados da produção artística. Em suma, a rígida distinção entre arte e comércio é uma falácia; há sim um embate, uma negociação entre as duas esferas, mediada por artistas e produtores culturais.
A partir de tais considerações foi feita a escolha dos filmes A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat) e O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings – The Fellowship of the Ring), pois cada um é muito característico das visões simplistas acerca da produção cinematográfica e suas implicações mercadológicas.
Ainda com relação a Hollywood, um fator que sempre contribuiu para o – apenas aparente – esvaziamento estético de Hollywood é o chamado star system. A glamourização dos atores, transformando-os, na verdade, em personagens que interpretam outros personagens apenas reforça o forte caráter mercantilista das relações de produção do mundo do cinema (Hitchcock, 1998). O fato é que tal expediente é adotado em diversas outras produções de outros países, ainda que em grau, em geral, muito menor. A própria Isabelle Hupert, que atua em A Teia de Chocolate possui já o status de estrela do cinema, funcionando, conseqüentemente, como chamariz de bilheteria, mesmo não havendo na França um sistema de construção de estrelas como há nos Estados Unidos.
O Senhor dos Anéis, por sua vez, além de fazer uso intenso e claro de astros e estrelas – Ian Mackellen, Cate Blanchett, Liv Tyler, Christopher Lee e Elijah Wood, por exemplo –, tem toda uma concepção artística por trás de sua construção, aparentemente, apenas comercial, como se fosse um produto "enlatado" para o consumo da massa. Este caso, especificamente, trata-se de uma adaptação cinematográfica de um romance de moldes clássicos, seguindo a trama e a construção dos personagens o mais fielmente possível.
A relativização e o questionamento desse senso-comum se fazem de suma importância. A Indústria Cultural – cuja definição de Adorno e Horkheimer pode e deve ser problematizada – não transformou por completo a obra de arte em produto mercantil, nem tampouco os artistas já foram seres especiais, que produziam em um estado de alheamento ascético do mundo. Um filme não é necessariamente descartável pelo simples fato de ser resultado de uma empreitada cara, fruto de uma visão mercadológica para atingir um público-alvo, mas também não é garantia alguma de qualidade a suposta liberdade que tem um cineasta ao realizar filmes com pequeno orçamento e fora do esquema hollywoodiano."
Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica,
in Teoria da Cultura de Massa, LIMA, L. C., Paz e Terra, 1978.
HERSCOVICE, Alain. As Especificidades do Campo Cultural, in Autonomia do
Campo Cultural.
HITCHCOCK, Alfred. Precisamos de Estrelas?, in GOTTLIEB, Sidney. Hitchcock
por Hitchcock, Rio de Janeiro, Ed: Imago, 1998.
HORKHEIMER, M; ADORNO, T. A Indústria Cultural – O Iluminismo como
Mistificação de Massa, in Teoria da Cultura de Massa, LIMA, L. C., Paz e Terra,
1978.
Ficha técnica dos filmes:
A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat), França/Suíça/Espanha, 2000, 99min. Direção: Claude Chabrol. Roteiro: Claude Chabrol e Caroline Eliacheff, baseado no romance de Charlotte Armstrong. Música Original: Matthieu Chabrol. Fotografia: Renato Berta. Montagem: Monique Fardoulis. Cenografia: Ivan Niclass. Elenco: Isabelle Hupert (Marie-Claire), Jacques Dutronc (André Polonski), Anna Mouglalis (Jeanne Pollet), Rodolphe Pauly (Gillaume Polonski), Brigitte Catillon (Louise Pollet), Michel Robin (Dufreigne), Mathieu Simonet (Axel). Produção: Yvon Crenn, Marin Karmitz, Jean-Louis Porchet e Gérard Ruey.
Para ilustrar e pensar esta problemática, o trabalho vai analisar a posição de críticas de dois filmes bastante exemplares: A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat) e O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings – The Fellowship of the Ring); o primeiro é o típico filme visto, como filme de arte, porque europeu e dirigido pelo cineasta francês Claude Chabrol, egrégio da Nouvelle Vague. O segundo, por sua vez, é um filme imediatamente tido como comercial, afinal, uma caríssima superprodução, um épico de aventura, com o apoio de pesada campanha publicitária. A partir desses dois filme e as críticas correspondentes, pretende-se compreender o processo que levou à distinção entre "cinema de arte" e "cinema comercial", entre arte e entretenimento, entre a "alta cultura" e a tida como descartável.
O primeiro equívoco quando se pensa essa distinção é nitidamente conceitual: existe sim, a arte do cinema, não o cinema de arte; pode-se julgar um filme como melhor que outros, mas todos são produções cinematográficas e, portanto, frutos de uma mesma forma de expressão, o cinema.
O segundo erro é pensar a produção artística possível de forma completamente autônoma, livre de quaisquer amarras ou constrições. No campo cinematográfico, que é o foco deste estudo, especificamente, todas as produções possuem uma dimensão material – financeira, mercadológica etc – e uma dimensão artística – criativa, estética etc. O que varia de uma obra para outra é o grau de atuação de uma ou outra dimensão, não sua natureza; de fato, não há um tipo de produção artístico por excelência e outro apenas comercial (Herscovice).
Tal pensamento equivocado serviu apenas para reforçar preconceitos, de ordem ideológica - uma das formas mais descartáveis de julgamento - e estética contra Hollywood, principalmente. Diz-se, por exemplo, que um filme é dispensável por ter exigido uma produção cara, por ter um sujeito como Spielberg, Eastwood, Zemeckis ou algum americano típico na direção, por não conter mensagens ideológicas ou existencialistas, além de uma série de outras exigências tolas e infundadas.
Mesmo antes do advento da Indústria Cultural – não exatamente nos moldes adornianos e todos os seus exageros e simplificações (Adorno, 1978) – o campo artístico não poderia ser considerado livre e autônomo. Os artistas – que nem sempre tiveram o status atual – já foram dependentes dos mecenas, da Igreja, dos Senhores e Nobres e, hoje, dependem de um outro tipo de entidade: o mercado, essa esfera de troca na qual depende-se primordialmente da demanda.
O fato é que entre os séculos XVII e XIX os artistas passaram a ser vistos como atores diferenciados no corpo social. Ultrapassaram a condição de meros artesões, técnicos, que construíam objetos que tivessem valor de uso, que refletissem as idéias da Igreja ou contribuíssem para legitimar figuras sociais de destaque, como os aristocratas. Houve uma sacralização da obra artística, destruída no século XX, segundo Walter Benjamin (1978), para o qual a obra de arte perdeu a aura na época de sua reprodutibilidade técnica. Com essa sacralização, entrou em voga a concepção do artista enquanto ser iluminado, que cria por si só, alheio as contaminações mundanas, como a interferência do capital.
Com a inserção aparentemente plena da arte no campo mercantil pela Indústria Cultural, muitos – principalmente os frankfurtianos – entenderam que a arte foi maculada, deixando de ser a velha arte, estética por excelência, bela, fruto de um trabalho criativo de uma mente livre. Os artistas, no entanto, continuam fazendo uso de sua criatividade e conhecimento lingüístico para compor suas obras, mas para atingirem os possíveis apreciadores têm de seguir certas regras do jogo mercadológico, que impõem certos limites, certos tipos de formatos e conteúdos. Repetindo, o que varia é o grau de atuação de cada um desses dois lados da produção artística. Em suma, a rígida distinção entre arte e comércio é uma falácia; há sim um embate, uma negociação entre as duas esferas, mediada por artistas e produtores culturais.
A partir de tais considerações foi feita a escolha dos filmes A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat) e O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings – The Fellowship of the Ring), pois cada um é muito característico das visões simplistas acerca da produção cinematográfica e suas implicações mercadológicas.
Ainda com relação a Hollywood, um fator que sempre contribuiu para o – apenas aparente – esvaziamento estético de Hollywood é o chamado star system. A glamourização dos atores, transformando-os, na verdade, em personagens que interpretam outros personagens apenas reforça o forte caráter mercantilista das relações de produção do mundo do cinema (Hitchcock, 1998). O fato é que tal expediente é adotado em diversas outras produções de outros países, ainda que em grau, em geral, muito menor. A própria Isabelle Hupert, que atua em A Teia de Chocolate possui já o status de estrela do cinema, funcionando, conseqüentemente, como chamariz de bilheteria, mesmo não havendo na França um sistema de construção de estrelas como há nos Estados Unidos.
O Senhor dos Anéis, por sua vez, além de fazer uso intenso e claro de astros e estrelas – Ian Mackellen, Cate Blanchett, Liv Tyler, Christopher Lee e Elijah Wood, por exemplo –, tem toda uma concepção artística por trás de sua construção, aparentemente, apenas comercial, como se fosse um produto "enlatado" para o consumo da massa. Este caso, especificamente, trata-se de uma adaptação cinematográfica de um romance de moldes clássicos, seguindo a trama e a construção dos personagens o mais fielmente possível.
A relativização e o questionamento desse senso-comum se fazem de suma importância. A Indústria Cultural – cuja definição de Adorno e Horkheimer pode e deve ser problematizada – não transformou por completo a obra de arte em produto mercantil, nem tampouco os artistas já foram seres especiais, que produziam em um estado de alheamento ascético do mundo. Um filme não é necessariamente descartável pelo simples fato de ser resultado de uma empreitada cara, fruto de uma visão mercadológica para atingir um público-alvo, mas também não é garantia alguma de qualidade a suposta liberdade que tem um cineasta ao realizar filmes com pequeno orçamento e fora do esquema hollywoodiano."
Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica,
in Teoria da Cultura de Massa, LIMA, L. C., Paz e Terra, 1978.
HERSCOVICE, Alain. As Especificidades do Campo Cultural, in Autonomia do
Campo Cultural.
HITCHCOCK, Alfred. Precisamos de Estrelas?, in GOTTLIEB, Sidney. Hitchcock
por Hitchcock, Rio de Janeiro, Ed: Imago, 1998.
HORKHEIMER, M; ADORNO, T. A Indústria Cultural – O Iluminismo como
Mistificação de Massa, in Teoria da Cultura de Massa, LIMA, L. C., Paz e Terra,
1978.
Ficha técnica dos filmes:
A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat), França/Suíça/Espanha, 2000, 99min. Direção: Claude Chabrol. Roteiro: Claude Chabrol e Caroline Eliacheff, baseado no romance de Charlotte Armstrong. Música Original: Matthieu Chabrol. Fotografia: Renato Berta. Montagem: Monique Fardoulis. Cenografia: Ivan Niclass. Elenco: Isabelle Hupert (Marie-Claire), Jacques Dutronc (André Polonski), Anna Mouglalis (Jeanne Pollet), Rodolphe Pauly (Gillaume Polonski), Brigitte Catillon (Louise Pollet), Michel Robin (Dufreigne), Mathieu Simonet (Axel). Produção: Yvon Crenn, Marin Karmitz, Jean-Louis Porchet e Gérard Ruey.
O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings – The Fellowship of the Ring), Nova Zelândia/Estados Unidos. 2001, 178min. Direção: Peter Jackson. Roteiro: Frances Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson, baseado no romance homônimo de J. R. R. Tolkien. Música Original: Enya (canções Anyron e May It Be) e Howard Shore. Fotografia: Andrew Lesnie. Montagem: John Gilbert. Cenografia: Grant Major. Elenco: Elijah Wood (Frodo), Ian McKellen (Gandalf), Viggo Mortensen (Aragorn), Sean Astin (Sam), Cate Blanchett (Galadriel), Sean Bean (Boromir), Liv Tyler (Arwen), John Rhys-Davies (Gimli), Billy Boyd (Pippin), Dominic Monaghan (Merry), Orlando Bloom (Legolas Greenleaf) Christopher Lee (Saruman), Hugo Weaving (Elrond), Ian Holm (Bilbo), Andy Serkis (Gollum), Marton Csokas (Celeborn), Graig Parker (Haldir), Lawrence Makoare (Lurtz), Sala Baker (Sauron). Produção: Peter Jackson, Michael Lynne, Mark Ordesky, Barrie M. Osborne, Rick Porras, Tim Sanders, Jamiel Selkirk, Robert Shaye, Ellen Somers, Frances Walsh, Bob Weinstein e Harvey Weinstein.
23 abril 2007
Clássicos da ficção-científica
Extensão cinematográfica do gênero literário do mesmo nome, o cinema de ficção-científica conta com antecedentes tão ilustres como Viagem à lua (Le Voyage dans la lune, de Georges Méliès, 1909), Aelita (1924), do russo Yakov Protozanov, Metrópolis (1926) e Uma mulher na lua (Die frau im mond, 1929), ambos de Fritz Lang, entre outros.
Metrópolis é, até então, a mais expressiva ficção-científica do cinema. Realizada ainda na estética da arte muda, tem sua ação localizada no século 21 numa gigantesca metrópole autoritariamente governada por um industrial milionário, que vive com o filho num paradisíaco jardim suspenso. Seus operários são relegados aos subterrâneos e exortados à resignação por uma bela integrante do Exército da Salvação. De repente, um inventor louco fabrica uma mulher artificial que é igual a ela, mas que, ao contrário desta, incita os trabalhadores a uma revolta cujas principais vítimas são os filhos dos operários. No final, um operário reconcilia-se com o grande patrão, enquanto seu filho se casa com a moça resignada do Exército da Salvação Apesar da beleza de suas imagens, e do imenso sentido de cinema de Lang, o filme tem uma conclusão bastante reacionária, reformista, pregando a reconciliação entre o capital e o trabalho, demonstrando que uma revolução provocada pelos operários teria como principais vítimas eles próprios e seus descendentes. George Sadoul, historiador francês, classifica Metrópolis como um filme expressionista e medieval.
O auge do progresso científico nos últimos anos – a energia nuclear, os satélites artificiais, as viagens interplanetárias – oferece grande atualidade ao gênero, que começa a se popularizar cinematograficamente a partir do êxito de Destino à lua (Destination moon), em 1950, dirigido por Irving Pichel, e também, do mesmo ano, Da terra à lua (Rocketship MX), de Kurt Neumann, que fazem emergir uma série de filmes americanos interessantes O enigma de outro mundo ((The thing, 1951), de Christian Nyby, O dia em que a Terra parou (The day the earth stood still, 1951), de Robert Wise, Guerra dos mundos (War of the worlds, 1953), de Byron Haskin, baseado em H. G. Wells, O mundo em perigo (Them!, 1954), de Gordon Douglas, Planeta proibido (Forbidden, 1956), de Fred McLeod Wilcox, Vampiros de alma (Invasion of the bodysnatchers, 1956), de Don Siegel, entre outros.
O dia em que a Terra parou pode ser considerado como um dos mais representativos filmes do gênero. Pela primeira vez, o extraterrestre não vem à Terra como invasor e é apresentado como uma figura simpática, pois desce de seu disco voador para evitar uma catástrofe atômica. Mas o filme que, utilizando-se do gênero, propõe-se a uma análise da sociedade americana é Vampiros de almas, que mostra como numa pacata cidade dos Estados Unidos os seus habitantes são, pouco a pouco, substituídos por cópias perfeitas de si próprios (saídas, estas cópias, de enormes vagens de ervilhas). Não estaria Don Siegel, aqui neste filme, numa premonição da clonagem contemporânea? As cópias perfeitas e iguais dos habitantes são destituídas, no entanto, de sentimentos, de almas e de consciências. Alphaville, de Jean-Luc Godard, da primeira metade dos anos 60, tem influência marcante dessa ficção-científica de 1956. Há, na verdade, em Vampiros de almas, uma grande metáfora de inspiração ideológica: as vagens seriam comunistas infiltrados na sociedade americana (paranóia típica da época em que o filme é realizado, em pleno macarthismo).
Na Inglaterra, também aparecem, neste período, interessantes filmes de ficção-científica, a exemplo de Terror que mata (Quatermass experiment, 1955), de Val Guest, A aldeia dos amaldiçoados (Village of the dammed, 1960), de Wolf Rilla. O mais importante, porém, dos filmes ingleses do gênero, é O mundo os condenou (The damned), do grande cineasta Joseph Losey, realizador de uma obra-prima, O criado (The servant, 1963), entre outros filmes significativos, mas que, atualmente, se encontra esquecido. The damned é sobre crianças contaminadas pela radioatividade que são enclausuradas pelas autoridades inglesas num reduto sigiloso.
A grande maioria, entretanto, dos filmes de ficção-científica, restrito que está, este panorama, aos clássicos, incluindo todos os japoneses, se limita a explorar velhas fórmulas do cinema de terror no esquema de mostrar a aparição de monstros criados pelas explosões nucleares. Diferentemente do que acontece na literatura, que possui excelentes escritores reconhecidos como mestres no gênero e que são capazes de o transcender. Mas não se pode deixar de registrar algumas tentativas que tentam renovar os clichês do gênero, a exemplo do admirável Ikarie XB 1 (1963), do tcheco Jindrich Pollack, e Alphaville (1964), de Jean-Luc Godard, A décima vítima (La decima vittima, 1968), do italiano Elio Petri, Fahrenheit 451 (idem, 1966), de François Truffaut, Viagem fantástica (Fantastic Voyage, 1966), de Richard Fleischer. Nestes filmes, o cinema de ficção-científica deixa de ser o campo específico da série B para passar com todas as honras ao da A, revelando ambição na abordagem temática e que pretendem dar um testemunho moral e intelectual acerca da civilização do futuro.
Em Fahrenheit 451, por exemplo, filme baseado em novela de Ray Bradbury, num país indefinido, numa época indeterminada, uma decisão governamental proíbe a leitura e condena os livros sob a alegação de que eles perturbam a felicidade e provocam a inquietação. O corpo de bombeiros não mais apaga incêndios (as casas são à prova de fogo), mas é encarregado de queimar todas as obras literárias descobertas. No bosque, escondidos das autoridades, vivem os homens-livros. Cada qual memoriza uma obra-prima literária, a fim de preserva-la para o futuro. Vi recentemente o filme em DVD e o achei extremamente envelhecido.
Já em A décima vítima, de Elio Petri, a agressividade dos homens é saciada através de uma grande instituição internacional que promove uma grande caça ao homem, havendo, neste filme, uma nítida preocupação sobre o esmagamento do homem em meio a uma sociedade competitiva. A ação se passa no século XXI, este que já se está, mas A décima vítima é de 1965.
2001: Uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, é um filme que se poderia considerar divisor de águas. A partir dessa space opera, a ficção-científica no cinema não seria mais a mesma, quer do ponto de vista temática, quer do ponto de vista estilístico. A época da ficção-científica clássica, cujo apogeu se dá nos anos 50, toma uma nova direção com a utilização do gênero para propósitos de paráfrase, política e indagação filosófica. Kubrick, aliás, após a sua ópera espacial, retorna à ficção-científica de idéias em A laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), tomando como base a narrativa literária de Anthony Burguess. O ficcionista, aqui, colocando-se já no futuro, empreende uma análise cáustica do seu passado que é o nosso presente. Mas a infantilização temática toma conta do cinema americano a partir da segunda metade dos anos 70 com os filmes que se seguiram à explosão mercadológica de Guerra nas estrelas.
Metrópolis é, até então, a mais expressiva ficção-científica do cinema. Realizada ainda na estética da arte muda, tem sua ação localizada no século 21 numa gigantesca metrópole autoritariamente governada por um industrial milionário, que vive com o filho num paradisíaco jardim suspenso. Seus operários são relegados aos subterrâneos e exortados à resignação por uma bela integrante do Exército da Salvação. De repente, um inventor louco fabrica uma mulher artificial que é igual a ela, mas que, ao contrário desta, incita os trabalhadores a uma revolta cujas principais vítimas são os filhos dos operários. No final, um operário reconcilia-se com o grande patrão, enquanto seu filho se casa com a moça resignada do Exército da Salvação Apesar da beleza de suas imagens, e do imenso sentido de cinema de Lang, o filme tem uma conclusão bastante reacionária, reformista, pregando a reconciliação entre o capital e o trabalho, demonstrando que uma revolução provocada pelos operários teria como principais vítimas eles próprios e seus descendentes. George Sadoul, historiador francês, classifica Metrópolis como um filme expressionista e medieval.
O auge do progresso científico nos últimos anos – a energia nuclear, os satélites artificiais, as viagens interplanetárias – oferece grande atualidade ao gênero, que começa a se popularizar cinematograficamente a partir do êxito de Destino à lua (Destination moon), em 1950, dirigido por Irving Pichel, e também, do mesmo ano, Da terra à lua (Rocketship MX), de Kurt Neumann, que fazem emergir uma série de filmes americanos interessantes O enigma de outro mundo ((The thing, 1951), de Christian Nyby, O dia em que a Terra parou (The day the earth stood still, 1951), de Robert Wise, Guerra dos mundos (War of the worlds, 1953), de Byron Haskin, baseado em H. G. Wells, O mundo em perigo (Them!, 1954), de Gordon Douglas, Planeta proibido (Forbidden, 1956), de Fred McLeod Wilcox, Vampiros de alma (Invasion of the bodysnatchers, 1956), de Don Siegel, entre outros.
O dia em que a Terra parou pode ser considerado como um dos mais representativos filmes do gênero. Pela primeira vez, o extraterrestre não vem à Terra como invasor e é apresentado como uma figura simpática, pois desce de seu disco voador para evitar uma catástrofe atômica. Mas o filme que, utilizando-se do gênero, propõe-se a uma análise da sociedade americana é Vampiros de almas, que mostra como numa pacata cidade dos Estados Unidos os seus habitantes são, pouco a pouco, substituídos por cópias perfeitas de si próprios (saídas, estas cópias, de enormes vagens de ervilhas). Não estaria Don Siegel, aqui neste filme, numa premonição da clonagem contemporânea? As cópias perfeitas e iguais dos habitantes são destituídas, no entanto, de sentimentos, de almas e de consciências. Alphaville, de Jean-Luc Godard, da primeira metade dos anos 60, tem influência marcante dessa ficção-científica de 1956. Há, na verdade, em Vampiros de almas, uma grande metáfora de inspiração ideológica: as vagens seriam comunistas infiltrados na sociedade americana (paranóia típica da época em que o filme é realizado, em pleno macarthismo).
Na Inglaterra, também aparecem, neste período, interessantes filmes de ficção-científica, a exemplo de Terror que mata (Quatermass experiment, 1955), de Val Guest, A aldeia dos amaldiçoados (Village of the dammed, 1960), de Wolf Rilla. O mais importante, porém, dos filmes ingleses do gênero, é O mundo os condenou (The damned), do grande cineasta Joseph Losey, realizador de uma obra-prima, O criado (The servant, 1963), entre outros filmes significativos, mas que, atualmente, se encontra esquecido. The damned é sobre crianças contaminadas pela radioatividade que são enclausuradas pelas autoridades inglesas num reduto sigiloso.
A grande maioria, entretanto, dos filmes de ficção-científica, restrito que está, este panorama, aos clássicos, incluindo todos os japoneses, se limita a explorar velhas fórmulas do cinema de terror no esquema de mostrar a aparição de monstros criados pelas explosões nucleares. Diferentemente do que acontece na literatura, que possui excelentes escritores reconhecidos como mestres no gênero e que são capazes de o transcender. Mas não se pode deixar de registrar algumas tentativas que tentam renovar os clichês do gênero, a exemplo do admirável Ikarie XB 1 (1963), do tcheco Jindrich Pollack, e Alphaville (1964), de Jean-Luc Godard, A décima vítima (La decima vittima, 1968), do italiano Elio Petri, Fahrenheit 451 (idem, 1966), de François Truffaut, Viagem fantástica (Fantastic Voyage, 1966), de Richard Fleischer. Nestes filmes, o cinema de ficção-científica deixa de ser o campo específico da série B para passar com todas as honras ao da A, revelando ambição na abordagem temática e que pretendem dar um testemunho moral e intelectual acerca da civilização do futuro.
Em Fahrenheit 451, por exemplo, filme baseado em novela de Ray Bradbury, num país indefinido, numa época indeterminada, uma decisão governamental proíbe a leitura e condena os livros sob a alegação de que eles perturbam a felicidade e provocam a inquietação. O corpo de bombeiros não mais apaga incêndios (as casas são à prova de fogo), mas é encarregado de queimar todas as obras literárias descobertas. No bosque, escondidos das autoridades, vivem os homens-livros. Cada qual memoriza uma obra-prima literária, a fim de preserva-la para o futuro. Vi recentemente o filme em DVD e o achei extremamente envelhecido.
Já em A décima vítima, de Elio Petri, a agressividade dos homens é saciada através de uma grande instituição internacional que promove uma grande caça ao homem, havendo, neste filme, uma nítida preocupação sobre o esmagamento do homem em meio a uma sociedade competitiva. A ação se passa no século XXI, este que já se está, mas A décima vítima é de 1965.
2001: Uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, é um filme que se poderia considerar divisor de águas. A partir dessa space opera, a ficção-científica no cinema não seria mais a mesma, quer do ponto de vista temática, quer do ponto de vista estilístico. A época da ficção-científica clássica, cujo apogeu se dá nos anos 50, toma uma nova direção com a utilização do gênero para propósitos de paráfrase, política e indagação filosófica. Kubrick, aliás, após a sua ópera espacial, retorna à ficção-científica de idéias em A laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), tomando como base a narrativa literária de Anthony Burguess. O ficcionista, aqui, colocando-se já no futuro, empreende uma análise cáustica do seu passado que é o nosso presente. Mas a infantilização temática toma conta do cinema americano a partir da segunda metade dos anos 70 com os filmes que se seguiram à explosão mercadológica de Guerra nas estrelas.
22 abril 2007
Tuna Espinheira e sua circunstância
Tuna Espinheira, veterano cineasta baiano, concluiu, há alguns anos, o seu primeiro longa metragem, Cascalho, mas até hoje amarga a sua falta de distribuição para que possa ser visto, ainda que um dos escolhidos para a mostra competitiva do Festival de Brasília. Conheço Tuna desde o século passado, tendo participado, olha vejam só, como ator, de um filme seu datado de 1982, O cisne também morre, que gostaria de ter uma cópia em DVD. Abaixo três artigos do velho Tuna e um de Angela Vilma. Vamos lá sem mais delongas.
Velho André
Estou curioso com sua futura matéria, anunciada em seu último texto, sobre o cinema baiano. Tá na hora. A Bahia continua provinciana, como tal, com o pescoço exposto ao lobby vampiresco. Exemplo tácito foi a liberação (saiu na coluna Tempo Presente, de A TARDE, notícia colhida no Diário Oficialk do Estado, verba "heroicamente" doada pela BAHIATURSA para a pré estréia de "Ó, PAÍ, Ó", no valor de 150 mil reais). O filme é da Globo Filmes, gastou uma orgia de dinheiro no lançamento e a província doou sangue. Causa indignação porque até o momento não se fala do Edital do Estado, este com recursos existentes no orçamento. A "Classe" não se pronuncia e, triste Bahia, la nave va. Estou enviando. em anexo, conforme combinado, quatro textos de minha autoria. O recontato é "tudo vale um brinde". Grande abraço e muito axé.
Cascalho, o filme -
e uma pedra no caminho da comercialização
François Truffaut, no seu emblemático filme, “Noite Americana”, compara a aventura de uma filmagem com uma viagem de diligência no velho oeste, quando nunca se tinha certeza de se chegar ao fim.
Entretanto, para os cineastas fora do eixo Rio/São Paulo, ligados à produção independente e compulsoriamente obrigados a trabalhar com um orçamento de baixo custo, o buraco é mais embaixo. É preciso remover terríveis pedras do meio do caminho. Caso o roteiro não traga em seu bojo ingredientes novelescos, pornô, clip/MTV e outros adereços das estéticas da moda, aí então o bicho pega.
O surgimento das leis de incentivo, Lei do Audiovisual e Lei Ruanet, baseadas na renúncia fiscal do governo, trouxe um grande alento, confiava-se que esta medida pudesse, de fato, apreciar os projetos com bons ventos democráticos. Foi necessário um bom tempo para se perceber o enorme círculo vicioso. Foram griladas as oportunidades de captação ou, como diz a máxima popularizada: “todos são iguais perante a lei... só que alguns são muito mais iguais”.
Cascalho, o nosso filme em questão, por mais de sete bíblicos anos, metamorfoseou-se em uma alma penada, virou assombração, arrastando as famigeradas leis de incentivo, aquelas que excluem os periféricos e autorizam os empresários a fazer cortesia com o chapéu do governo.
Aqui, na terra mãe, cansamos de ouvir o repetido refrão: “nossa cota de renúncia já está comprometida com o filme tal”. Os filmes eram do sul maravilha, as empresas eram, em sua maioria, as estatais que restavam. A Bahia exercia o triste papel de colônia, afirmava sua condição de província doadora de sangue.
De repente, não mais que de repente...deu-se o estalo de Vieira na Secretaria de Cultura do estado e era declarada a temporada de caça do cinema baiano. Por decreto governamental foi instituído um concurso público para projetos de filmes de curta e longa metragem. O roteiro de Cascalho ganharia o edital Fernando Coni Campos. Desta forma pudemos, com muita alegria e disposição, embarcar na incerta carruagem citada pelo diretor de “Jules e Jim”, para viajar os perigos de rodar um filme.
Apesar da indigestão de ter comido tanta poeira, continuamos tentando qualquer espécie de resultado via captação, era um filme de época e precisávamos, em desespero, mais algum aporte. Desta vez acreditando mais, tínhamos líquido e certo, o dinheiro do prêmio estatal e, portanto, a garantia de botar o filme na lata, como se diz no nosso dialeto.
Tudo em vão. Não conseguimos captar nada e ainda ficamos de fora das verbas tradicionalmente distribuídas como apoio às produções por empresas e instituições como a Ancine, o Bndes, Petrobrás, Correios, Banco do Brasil, Furnas, etc. Felizmente, nos estertores, uma tábua de salvação – ganhamos o concurso de finalização do Ministério da Cultura.
Era uma vez um roteiro peregrino que virou filme, através de dois concursos públicos e contou com apenas com as verbas dos respectivos prêmios. Foi uma produção franciscana, pero mui digna.
No momento estamos com uma enorme pedra no caminho: e filme “Cascalho” corre o risco cruel de não chegar às salas de cinema. Neste Brasil de agora, filmes que não seguem a regra do gênero clipe, besteirol, realidade maquiada, pornô erótico etc etc, estão fadados à orfandade pelo sistema de distribuição.
Tem cada vez menos Brasil nos filmes brasileiros. A enorme pedra citada impede o acesso a qualquer espécie de circuito comercial para “Cascalho”, mesmo para o circuito sem holofotes dito alternativo. Continuamos insistindo: no momento estamos apostando no edital da Petrobrás - difusão de filmes de longa metragem – cujo resultado sairá neste dia 23 de setembro.
Os lobistas e as bruxas estarão soltos. Vai ser uma briga de foice em noite sem lua. Como a esperança teima em ser a última que morre, torcemos por “Cascalho” neste momento de angústia e suspense, a derradeira bala na agulha. E gostaríamos de pronunciar as palavras mágicas: Vai que é tua, Tafarel!
e uma pedra no caminho da comercialização
François Truffaut, no seu emblemático filme, “Noite Americana”, compara a aventura de uma filmagem com uma viagem de diligência no velho oeste, quando nunca se tinha certeza de se chegar ao fim.
Entretanto, para os cineastas fora do eixo Rio/São Paulo, ligados à produção independente e compulsoriamente obrigados a trabalhar com um orçamento de baixo custo, o buraco é mais embaixo. É preciso remover terríveis pedras do meio do caminho. Caso o roteiro não traga em seu bojo ingredientes novelescos, pornô, clip/MTV e outros adereços das estéticas da moda, aí então o bicho pega.
O surgimento das leis de incentivo, Lei do Audiovisual e Lei Ruanet, baseadas na renúncia fiscal do governo, trouxe um grande alento, confiava-se que esta medida pudesse, de fato, apreciar os projetos com bons ventos democráticos. Foi necessário um bom tempo para se perceber o enorme círculo vicioso. Foram griladas as oportunidades de captação ou, como diz a máxima popularizada: “todos são iguais perante a lei... só que alguns são muito mais iguais”.
Cascalho, o nosso filme em questão, por mais de sete bíblicos anos, metamorfoseou-se em uma alma penada, virou assombração, arrastando as famigeradas leis de incentivo, aquelas que excluem os periféricos e autorizam os empresários a fazer cortesia com o chapéu do governo.
Aqui, na terra mãe, cansamos de ouvir o repetido refrão: “nossa cota de renúncia já está comprometida com o filme tal”. Os filmes eram do sul maravilha, as empresas eram, em sua maioria, as estatais que restavam. A Bahia exercia o triste papel de colônia, afirmava sua condição de província doadora de sangue.
De repente, não mais que de repente...deu-se o estalo de Vieira na Secretaria de Cultura do estado e era declarada a temporada de caça do cinema baiano. Por decreto governamental foi instituído um concurso público para projetos de filmes de curta e longa metragem. O roteiro de Cascalho ganharia o edital Fernando Coni Campos. Desta forma pudemos, com muita alegria e disposição, embarcar na incerta carruagem citada pelo diretor de “Jules e Jim”, para viajar os perigos de rodar um filme.
Apesar da indigestão de ter comido tanta poeira, continuamos tentando qualquer espécie de resultado via captação, era um filme de época e precisávamos, em desespero, mais algum aporte. Desta vez acreditando mais, tínhamos líquido e certo, o dinheiro do prêmio estatal e, portanto, a garantia de botar o filme na lata, como se diz no nosso dialeto.
Tudo em vão. Não conseguimos captar nada e ainda ficamos de fora das verbas tradicionalmente distribuídas como apoio às produções por empresas e instituições como a Ancine, o Bndes, Petrobrás, Correios, Banco do Brasil, Furnas, etc. Felizmente, nos estertores, uma tábua de salvação – ganhamos o concurso de finalização do Ministério da Cultura.
Era uma vez um roteiro peregrino que virou filme, através de dois concursos públicos e contou com apenas com as verbas dos respectivos prêmios. Foi uma produção franciscana, pero mui digna.
No momento estamos com uma enorme pedra no caminho: e filme “Cascalho” corre o risco cruel de não chegar às salas de cinema. Neste Brasil de agora, filmes que não seguem a regra do gênero clipe, besteirol, realidade maquiada, pornô erótico etc etc, estão fadados à orfandade pelo sistema de distribuição.
Tem cada vez menos Brasil nos filmes brasileiros. A enorme pedra citada impede o acesso a qualquer espécie de circuito comercial para “Cascalho”, mesmo para o circuito sem holofotes dito alternativo. Continuamos insistindo: no momento estamos apostando no edital da Petrobrás - difusão de filmes de longa metragem – cujo resultado sairá neste dia 23 de setembro.
Os lobistas e as bruxas estarão soltos. Vai ser uma briga de foice em noite sem lua. Como a esperança teima em ser a última que morre, torcemos por “Cascalho” neste momento de angústia e suspense, a derradeira bala na agulha. E gostaríamos de pronunciar as palavras mágicas: Vai que é tua, Tafarel!
A natureza do roteiro cinematográfico
A gênese de todo projeto cinematográfico é, seguramente, o roteiro. Na condição de ferramenta máter, é através dele que se espelha o desenho do filme a ser rodado.
O cinema, neste mais de um século de existência luminosa, passou por várias conquistas técnicas, entre elas as marcantes transformações de mudo pra falado, de preto-e-branco para colorido. O roteiro também se modernizou. Deixou de ser um tratado técnico carrancudo, fazendo por merecer a alcunha de script de ferro, quando se despojou dos grilhões das suas indicações ditatoriais, tornando-se um texto mais enxuto. De toda maneira continuou trazendo no seu bojo, com mais sutileza, seus considerandos específicos, como é dado á sua natureza.
É deste texto técnico que a produção adquire régua e compasso para executar os trabalhos imprescindíveis da ANALISE TECNICA e do ORÇAMENTO. Condição para se ter um projeto pronto.
A ANALISE TECNICA é a dissecação do roteiro, seqüência por seqüência, plano por plano, uma garimpagem em regra, anotando-se tudo que está no script em todas cenas, seja no SET ou nos cenários naturais.Não podemos perder a oportunidade de dizer que é uma tarefa maçante são ossos do ofício.
O ORÇAMENTO, como é da sua natureza, espelha o custo da produção. Á luz da matemática os cálculos não devem mentir. Mas não é nada incomum às surpresas e calafrios causado pelo valor final apurado, quando se traduz o custo do filme em questão. E evidente que este particular frisson diz respeito basicamente ao roteiro visando a uma realização calcada no baixo orçamento. É sabido que mesmo os projetos concebidos para uma peregrinação franciscana, despidos de extravagâncias, apesar de modestos , são custosos. Cinema é uma arte cara.
O roteiro, no que pese a sua registrada importância, não tem luz própria, não é um fim em si mesmo, qualquer grau de valor que lhe venha a ser atribuído, de mediano a excelente, ele só terá vida se for filmado. É no escurinho do cinema, na luminosidade das telas que ele se salva de virar um objeto, no mínimo, incolor e inodoro. Porque sua natureza é pertencente a área meio. Peça motriz, mas não linguagem artística.
Também o script não possui qualquer tipo de poção mágica capaz de garantir o resultado do filme. Roteiros inexpressivos já renderam boas fitas, assim como, outros alçados a níveis ideais , decepcionaram no produto final. Mas, pelo sim e pelo não, a coisa mais inteligente é ter ás mãos um roteiro bem urdido. O script ruim atrai o mau agouro e costuma levar as filmagens para o atoleiro. É recomendável escrever, reescrever, vezes muitas, a peça que vai ser a bússola, patuá, conselheiro e guia, quando for a hora e a vez de acontecer a difícil e imprevisível viajem de toda expedição que sai por aí, no contrato de risco que marca a aventura de fazer um filme. O bom roteiro sempre pode soprar ventos favoráveis para que LA NAVE VA...
É sempre de bom alvitre, ter bem claro na mente que, entre o roteiro escrito e a realização do filme, há um fosso onde cabem todos os abismos.
É sabido que os grandes estúdios de Holywood sempre tiveram devoção mística pelos textos técnicos chamados roteiro, ao ponto de contratarem espiões para acompanhar as rodagens e relatar, para os cartolas das usinas de sonhos, que as ordens de filmar todos os itens do script foram cumpridas.
Por serem devotos das escrituras sagradas do roteiro, os americanos, que são pragmáticos por excelencia, astuciaram um método curioso para cronometrar, com margem de erro mínimo, o tempo de duração de um filme, mesmo estando ainda em estado de escritos cunhados em papel. Como o ovo de Colombo, a receita é simples: digitar em PAPEL CARTA , FONTE COURIER, 12, formatado com três centímetros subtraídos da parte superior e inferior , 4 cm na margem esquerda e 3 cm na direita. Elaborado nesta técnica especifica do roteiro moderno, por incrível que pareça, no computo geral, cada página do scipt se traduzirá em um minuto de filme, podendo-se mensurar a duração do mesmo ainda no papel.
A gênese de todo projeto cinematográfico é, seguramente, o roteiro. Na condição de ferramenta máter, é através dele que se espelha o desenho do filme a ser rodado.
O cinema, neste mais de um século de existência luminosa, passou por várias conquistas técnicas, entre elas as marcantes transformações de mudo pra falado, de preto-e-branco para colorido. O roteiro também se modernizou. Deixou de ser um tratado técnico carrancudo, fazendo por merecer a alcunha de script de ferro, quando se despojou dos grilhões das suas indicações ditatoriais, tornando-se um texto mais enxuto. De toda maneira continuou trazendo no seu bojo, com mais sutileza, seus considerandos específicos, como é dado á sua natureza.
É deste texto técnico que a produção adquire régua e compasso para executar os trabalhos imprescindíveis da ANALISE TECNICA e do ORÇAMENTO. Condição para se ter um projeto pronto.
A ANALISE TECNICA é a dissecação do roteiro, seqüência por seqüência, plano por plano, uma garimpagem em regra, anotando-se tudo que está no script em todas cenas, seja no SET ou nos cenários naturais.Não podemos perder a oportunidade de dizer que é uma tarefa maçante são ossos do ofício.
O ORÇAMENTO, como é da sua natureza, espelha o custo da produção. Á luz da matemática os cálculos não devem mentir. Mas não é nada incomum às surpresas e calafrios causado pelo valor final apurado, quando se traduz o custo do filme em questão. E evidente que este particular frisson diz respeito basicamente ao roteiro visando a uma realização calcada no baixo orçamento. É sabido que mesmo os projetos concebidos para uma peregrinação franciscana, despidos de extravagâncias, apesar de modestos , são custosos. Cinema é uma arte cara.
O roteiro, no que pese a sua registrada importância, não tem luz própria, não é um fim em si mesmo, qualquer grau de valor que lhe venha a ser atribuído, de mediano a excelente, ele só terá vida se for filmado. É no escurinho do cinema, na luminosidade das telas que ele se salva de virar um objeto, no mínimo, incolor e inodoro. Porque sua natureza é pertencente a área meio. Peça motriz, mas não linguagem artística.
Também o script não possui qualquer tipo de poção mágica capaz de garantir o resultado do filme. Roteiros inexpressivos já renderam boas fitas, assim como, outros alçados a níveis ideais , decepcionaram no produto final. Mas, pelo sim e pelo não, a coisa mais inteligente é ter ás mãos um roteiro bem urdido. O script ruim atrai o mau agouro e costuma levar as filmagens para o atoleiro. É recomendável escrever, reescrever, vezes muitas, a peça que vai ser a bússola, patuá, conselheiro e guia, quando for a hora e a vez de acontecer a difícil e imprevisível viajem de toda expedição que sai por aí, no contrato de risco que marca a aventura de fazer um filme. O bom roteiro sempre pode soprar ventos favoráveis para que LA NAVE VA...
É sempre de bom alvitre, ter bem claro na mente que, entre o roteiro escrito e a realização do filme, há um fosso onde cabem todos os abismos.
É sabido que os grandes estúdios de Holywood sempre tiveram devoção mística pelos textos técnicos chamados roteiro, ao ponto de contratarem espiões para acompanhar as rodagens e relatar, para os cartolas das usinas de sonhos, que as ordens de filmar todos os itens do script foram cumpridas.
Por serem devotos das escrituras sagradas do roteiro, os americanos, que são pragmáticos por excelencia, astuciaram um método curioso para cronometrar, com margem de erro mínimo, o tempo de duração de um filme, mesmo estando ainda em estado de escritos cunhados em papel. Como o ovo de Colombo, a receita é simples: digitar em PAPEL CARTA , FONTE COURIER, 12, formatado com três centímetros subtraídos da parte superior e inferior , 4 cm na margem esquerda e 3 cm na direita. Elaborado nesta técnica especifica do roteiro moderno, por incrível que pareça, no computo geral, cada página do scipt se traduzirá em um minuto de filme, podendo-se mensurar a duração do mesmo ainda no papel.
E por falar em roteiros não podemos perder de vista o perigo que representam quando não são filmados, eles adentrarão na mente dos seus criadores, tornando-os obsessivos, zumbis vagando sem destino, falando sozinhos. Estes scripts farão às vezes de almas penadas, azucrinando e assombrando, pela vida afora aqueles a quem de direito... Vade Retro...
Cascalho, o filme e a sua circunstancia
Já, há algum tempo, a idéia de trabalhar uma adaptação e um roteiro para filmar o romance clássico de Herberto Sales, Cascalho, formigava na nossa cabeça. Quando a Academia de Letras da Bahia promoveu os dias festivos, com a presença do autor, em comemoração aos cinqüenta anos da publicação da primeira edição de Cascalho, tivemos oportunidade de conhecer o escritor, em carne e osso. Algumas vezes estivemos juntos e participamos de grandes bates-papos, daí veio a chance de falar sobre a possibilidade de roteirizar a sua obra. A resposta foi: “escreva e me mande”. Dado o sinal, foi só arregaçar as mangas e mandar ver. A dedicação foi de tempo integral. Uma tarefa espinhosa. A adaptação foi a parte mais sofrida, tínhamos de mexer na estrutura do livro, invadir o espaço sagrado da criação literária, estávamos metamorfoseando uma linguagem para outra, mudando o reino das palavras para o cetro das imagens. Enfim, concluímos esta tarefa agônica e remetemos o que seria um primeiro tratamento de roteiro, um volume encadernado. Em mais ou menos uma semana, pelo telefone, Herberto, com alegria na voz, batia o martelo da aprovação, o livro estava à nossa disposição.
As primeiras medidas foram dirigidas aos meios que considerávamos democráticos, ou seja, as Leis de Incentivo, a Ruanet e a do Audio-Visual, baseadas em renuncias fiscais do Governo Federal. As benesses destas Leis, tivemos a infelicidade de aprender, foram, quase que totalmente, griladas por grupos ligados às grandes Empresas de publicidade e por delfins do poder financeiro e político. Labutando nesta seara, por anos a fio, em torno de sete, semeamos em terra maninha, com resultado noves-fora-zero.
O Governo da Bahia, através da Secretaria de Cultura e Turismo, instituiu um concurso público de roteiros cinematográficos, intitulado: Fernando Coni Campos. O Edital estipulava uma verba de 1.100.00, 00 (um milhão e cem mil reais) para a realização de um filme de longa-metragem. Um único projeto seria escolhido. Fomos premiados.
Com este dinheiro Sabíamos, todo o tempo, as dificuldades que iríamos encontrar. Nosso projeto passava-se na década de trinta, tratava-se pois, de uma película de época. Nossa idéia sempre foi de um filme de baixo orçamento, ao mesmo tempo que levávamos em alta conta a esperança de conseguir captar alguma coisa via Leis de Incentivo. Tudo nos desafiava, figurinos, adereços, mobiliários, etc, somado às transformações das conquistas do tempo, energia elétrica, postes, fiações, transportes motorizados, etc,etc. Iríamos “rodar” em locações de difícil acesso, parte do trabalho seria fotografado debaixo da terra, nas famosas Grunas. Todos os planos, tomada por tomada, foram acompanhados pelo processo de gravação em Som-Direto-Digital, o que não admitia qualquer ruído ou efeito sonoro não compatível com o período histórico em que se passava a narrativa filmada. Melhor explicando, a cidade de Andaraí, nas Lavras Diamantinas, funcionou como um perfeito Estúdio de Cinema. A população, como um todo, formou uma parceria completa com a equipe e, mais que isso, foram coniventes e cúmplices com o nosso sonho de realizar o filme.
É preciso não perder de vista que o fantasma das dificuldades era a verba curta disponível. As filmagens foram completadas. Deus sabe como! com um terço do dinheiro necessário para contemplar a empreitada que enfrentamos. Para tanto não fizemos nenhuma mágica, apenas assinamos um contrato de risco, de acordo com a circunstancia da dura realidade, como se dizia num jogo famoso:”pagar para ver”. Rodamos todo o filme em trinta dias úteis. Não foi nem um pouco razoável, mas tínhamos uma só opção: “ pegar ou largar.”
Chegamos à fase de montagem e finalização do filme estropiados como retirantes. Um outro concurso, instituído pelo Ministério da Cultura, deu-nos uma providencial ajuda para a reta final . Sempre numa caminhada, autenticamente, franciscana conseguimos chegar à primeira cópia. Entretanto, sem processar o Som-Dolby-Digital. A grana faltou para este importantíssimo complemento.
O filme CASCALHO, mesmo com a desvantagem de não possuir o Som-Dolby, foi inscrito no 37 Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, e, entre os trinta e seis concorrentes, ficou entre os seis, selecionados para a mostra principal. Vale registrar que, foi o único filme fora do eixo Rio-São Paulo, sendo dois de SP, três do RJ e um da BA. Daí seguimos adiante. Participamos do Primeiro Festival Macapá de Cinema e Vídeo, em 2005, conquistando o Troféu Equinócio como o Melhor filme de longa-metragem, com o nosso Cascalho.
Nos anos de 65 e 66, Cascalho participou, sempre a convite, de inúmeras mostras nacionais. Com o objetivo de não deixar o filme morrer por esquecimento, estivemos presentes nestes acontecimentos, conhecendo públicos novos, dialogando com os espectadores, colhendo opiniões que, para nossa grande alegria reverteram-se sempre favoráveis ao nosso filme. Continuamos insistindo na captação de recursos para habilitar o filme para o mercado comercial, conseguir adentrar o escurinho do cinema. A ausência do sistema Dolby é o principal entrave. Sem este dispositivo técnico as salas de projeção não o exibem. Neste momento estamos tentando, com a Petrobrás, conseguir os recursos para a aplicação desta remasterização moderna do som, o Dolby. O valor total do gasto para se obter este item técnico, por nos tão enfatizado, representa menos que 1% (um por cento) do valor dos gastos totais com a realização do filme em questão.
A arte cinematográfica jamais teve vocação para a clandestinidade. O filme tem de ser projetado para o público, seja lá qual for, o habitat natural da película filmica é a luminosidade das telas dos cinemas. Qualquer outra solução nada mais é que o atestado de óbito com a seguinte especificação: Morreu na Praia!!!
Tuna Espinheira
Tuna Espinheira é cineasta, Roteirista, Produtor e Diretor do Longa-Metragem: CASCALHO. E-mail: tunaespinheira@terra.com.br
A sintonia fina de Cascalho
*Ângela Vilma
No ano em que o clássico romance Cascalho (1944), do baiano Herberto Sales, completa sessenta anos, o cineasta Tuna Espinheira realiza um sonho de quase dez anos – filma Cascalho. A persistência venceu, assim como o romance continua vencendo, nesses silenciosos sessenta anos, o esquecimento da mídia e da academia. Agora, juntos, filme e romance se mostram a espectadores e leitores, para as mais inventivas leituras, proporcionadas pelo diálogo entre literatura e cinema.
Diante do filme, obviamente muitas discussões são retomadas. Principalmente aquela que defende a fidelidade à obra literária, quando de sua adaptação para o cinema. Ora, sabemos o quanto são diferentes e específicas as linguagens e encenações que envolvem essas duas artes. Diríamos, de uma maneira generalizadora, e quase óbvia, que no cinema há a linguagem da “extrema” visibilidade da imagem; tudo é visto (ou quase-tudo), num contraponto à leitura do livro, na qual vê-se tudo também, mas pelas fendas das imagens individualmente criadas. A fim de fundi-las, poderíamos assinalar que ambas, literatura e cinema, apesar das distinções, se encontram na comunhão da visibilidade. O que difere é o fato do filme deslocar o texto da “imobilidade” da página para a movimentação da tela, num recorte de leitura proveniente da percepção do diretor e do roteirista.
Ao assistirmos Cascalho, o filme, cenários, fotografias, personagens, sensações, que tão bem registraram a cor local (Andaraí - Chapada Diamantina, década de 30) no romance de Herberto Sales, surgem na tela e nos incitam a percorrer a leitura do livro, aberta pelo diretor e roteirista, Tuna Espinheira, e possibilitada pelas magias da película. O romance tem, como o próprio Herberto definiu, “uma ação continua e múltipla”, e, como completou Adonias Filho, tão “ampla como uma roda em pleno movimento”.
Essa simultaneidade, expressa “ebulição humana do garimpo”, é agora visualizada no filme, numa intensidade tão bem sintonizada por Tuna, transportando-nos àquele ambiente através dos recursos poéticos da imagem em luz e sombra. O universo feérico do garimpeiro, no qual diante da aventureira busca do diamante desnuda-se a exploração e a recompensa de investimento, do pouco dinheiro conquistado, nos gastos perdulários em cabarés, é recortado em meio à bela fotografia da Chapada com seus rios, serras, vales, gerais, numa confluência entre a riqueza, o sonho e a miséria.
Ambientado, pois, no lugar de origem do romance, Andaraí, terra de Herberto Sales, o filme, como declara Tuna Espinheira, é eminentemente baiano. Todos os atores são da Bahia, do possível protagonista ao provável anônimo figurante. A população andaraiense se envolveu em peso a fim de recriar o romance, célebre na região, através da encenação coletiva. Se na década de 40, quando publicado Cascalho, Herberto Sales sentiu-se obrigado a ir embora para o Rio de Janeiro, em decorrência da reação negativa de alguns conterrâneos que se viram focalizados no livro, agora a situação foi totalmente diferente. Os andaraienses queriam estar no romance, ou seja, ser personagens do filme; até aqueles que não aparecem como figurantes, vararam a noite como espectadores, assistindo às filmagens madrugadas adentro. A cidade toda parou a fim de retornar ao passado. Os postes de luz desapareceram, a padaria da esquina voltou a ser, como antes fora, Pensão Grande Líbano, e a loja A Barateira abriu de novo suas portas. O escritor e sua terra se reconciliaram num abraço afetivo, amplo, mágico. Assim, Cascalho surge na tela com, creio eu, o aplauso emocionado de Herberto, onde quer que ele possa estar.
PROTAGONISTAS - O filme reproduz “murais” do cotidiano andaraiense na década de 30, quando coronéis e garimpeiros, prostitutas e comerciantes se lançavam à sorte que traziam os augúrios dos garimpos. As quatro partes que compõem o romance, nas quais simultaneidades de vidas se encontram e se dispersam, mostram-se na película com uma fidelidade que se distingue: nelas por vezes ouvimos frases literais provenientes do livro, em cenas vigorosas como o desacato por parte do jagunço Zé de Peixoto (Jorge Coutinho) ao Coronel Germano (Othon Bastos), seguida pela morte do jagunço em tocaia armada pelos chefes locais, além do enxotamento do promotor (Irving São Paulo) a partir dos versos esculhambadores do “Mineiro-Pau”, terminando com a enchente que surpreende os garimpeiros na gruna.
Como quis e afirmou Tuna Espinheira, o filme mantém “sintonia fina com a alma do texto herbertiano”. Portanto, tal qual no romance, o que poderia ser lido como mero documento de uma época, de um contexto social, ascende ao “registro” da própria condição humana nas mais reflexivas conotações, pois que personagens se deixam ver, tocar, sentir diante da fatalidade de seus destinos.
Nos quadros que se movimentam, pessoas e cenários se fundem em relevância, permeados pelo humor que resvala de cenas memoráveis como as protagonizadas por Wilson Mello, encarnando o médico Dr. Marcolino e seus escarros inesquecíveis; a tibieza do delegado Esquivel (Caco Monteiro), e de seus comparsas, frente ao jagunço Zé de Peixoto e aos chefes locais; a luxúria inoportuna de Quelezinho (Harildo Deda) – irmão do Coronel Germano - , visto descaradamente numa cama de bordel, tomando resoluções a fim de zelar pela “ordem” do município.
Em meio a tantos personagens, o que há mesmo é uma sugestão, também percebida no romance: todos ali são protagonistas. Ou então, talvez seja protagonista a cidade, com sua gente e seus dramas. Porém, um garimpeiro se destaca dos demais: Filó Finança (Lúcio Tranchesi). Sendo o único garimpeiro alfabetizado, Filó sobressai pela consciência da situação a qual se encontra, e rouba a cena pela teatralidade, humor e bonacheirice.
O “homem”, na sua força e irracionalidade (jagunço Zé de Peixoto), na ingenuidade inconseqüente (garimpeiros em geral), na inconsciência da compaixão (coronéis e a “elite” social), tem como emblema a figura picaresca de Filó Finança. E é este fio condutor que beneficia a liberdade do diretor do filme, fazendo-nos perceber as fissuras e os desamparos de todos os homens a partir da imagem, em destaque, de um deles.
Encontrar diamantes nas serras de Andaraí, vendê-los e poder empregar todo o dinheiro nos cabarés com cachaças e mulheres-damas é o sonho do garimpeiro. Sonho que está representado muito bem nas farras de Filó Finança, Neco (Dody Só) e Joaquim Boca-de-Virgem (Berto Filho) ao bamburrarem e ao gastarem tudo na quermesse de Nossa Senhora da Glória. Esse mundo onírico, onde se pode fazer tudo que o dinheiro permite, move aquele seres pela gruna, espécie de gruta, “um rombo dentro da noite, como se fosse a própria serra escancarando a boca num grito impossível”, à cata de diamantes e carbonatos. A gruna, simbolizadora da morte nas Lavras Diamantinas, semelhante ao “interior de uma sepultura”, mostra-se, em toda a sua dimensão, como imagem, unindo o desenlace tanto do romance quanto do filme. Porém, é no pormenor da morte de Filó Finança que o filme redimensiona o livro, transcendendo tanto a palavra quanto a imagem.
VIDA E MORTE - O romance é finalizado com a agonia na gruna, pois a enchente desaba sobre ela e sobre Filó, Neco e Joaquim. Os dois últimos se salvam, porém Filó sucumbe. Mais uma vez a “cheia” levou “apenas um homem”, dirá novamente o garimpeiro Justino ao Coronel Germano. O narrador afirma, no último parágrafo, que “era de manhã, e a luz de um novo dia derramava sobre a serra, quando retiraram o corpo de dentro da areia”. Filó Finança morre e “acima do córrego, guarnecido por um corte de pedras secas, elevava-se contra a claridade do céu um monte de terra escura. Era o paiol do cascalho”.
Se a gruna simboliza a morte e a impossibilidade de sanar as misérias daquela ingênua gente, Filó Finança simboliza a esperança, o sonho, as virtualidades de ser. Como figura emblemática, garimpeiro e sonhador, o seu sonho persiste. “A luz de um novo dia derramava sobre a serra”, diz o narrador do romance, e essa frase ressoa nas entrelinhas do filme, porque, independente de qualquer coisa, a vida continua. E, melhor, a vida de Filó continua.
É essa a bela leitura de Tuna Espinheira. Filó Finança, graças ao sortilégio das imagens, das câmeras, das fotografias, ressurge. E seu rosto na tela rompe os enigmáticos elos que a chuva e a gruna estabeleceram com a morte, volvendo, assim, à nossa frente, elegantemente vestido, comandando a sua festa no “Cabaré dos Sonhos”. Dono de tudo, terá para sempre, e quando quiser, a prostituta Rosa (Maria Rosa Espinheira), as cachaças, as danças, arrematando todos os prêmios nos leilões, fazendo “figura” diante da vida e da morte.
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*Ângela Vilma é poeta e contista. Baiana de Andaraí, publicou o livro A tessitura humana da Palavra: Herberto Sales, Contista, pela Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, resultado de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Pernambuco, em 2001.
Em 2005 concluiu e defendeu tese conquistando o doutorado sobre o romance de Herberto Sales.
Já, há algum tempo, a idéia de trabalhar uma adaptação e um roteiro para filmar o romance clássico de Herberto Sales, Cascalho, formigava na nossa cabeça. Quando a Academia de Letras da Bahia promoveu os dias festivos, com a presença do autor, em comemoração aos cinqüenta anos da publicação da primeira edição de Cascalho, tivemos oportunidade de conhecer o escritor, em carne e osso. Algumas vezes estivemos juntos e participamos de grandes bates-papos, daí veio a chance de falar sobre a possibilidade de roteirizar a sua obra. A resposta foi: “escreva e me mande”. Dado o sinal, foi só arregaçar as mangas e mandar ver. A dedicação foi de tempo integral. Uma tarefa espinhosa. A adaptação foi a parte mais sofrida, tínhamos de mexer na estrutura do livro, invadir o espaço sagrado da criação literária, estávamos metamorfoseando uma linguagem para outra, mudando o reino das palavras para o cetro das imagens. Enfim, concluímos esta tarefa agônica e remetemos o que seria um primeiro tratamento de roteiro, um volume encadernado. Em mais ou menos uma semana, pelo telefone, Herberto, com alegria na voz, batia o martelo da aprovação, o livro estava à nossa disposição.
As primeiras medidas foram dirigidas aos meios que considerávamos democráticos, ou seja, as Leis de Incentivo, a Ruanet e a do Audio-Visual, baseadas em renuncias fiscais do Governo Federal. As benesses destas Leis, tivemos a infelicidade de aprender, foram, quase que totalmente, griladas por grupos ligados às grandes Empresas de publicidade e por delfins do poder financeiro e político. Labutando nesta seara, por anos a fio, em torno de sete, semeamos em terra maninha, com resultado noves-fora-zero.
O Governo da Bahia, através da Secretaria de Cultura e Turismo, instituiu um concurso público de roteiros cinematográficos, intitulado: Fernando Coni Campos. O Edital estipulava uma verba de 1.100.00, 00 (um milhão e cem mil reais) para a realização de um filme de longa-metragem. Um único projeto seria escolhido. Fomos premiados.
Com este dinheiro Sabíamos, todo o tempo, as dificuldades que iríamos encontrar. Nosso projeto passava-se na década de trinta, tratava-se pois, de uma película de época. Nossa idéia sempre foi de um filme de baixo orçamento, ao mesmo tempo que levávamos em alta conta a esperança de conseguir captar alguma coisa via Leis de Incentivo. Tudo nos desafiava, figurinos, adereços, mobiliários, etc, somado às transformações das conquistas do tempo, energia elétrica, postes, fiações, transportes motorizados, etc,etc. Iríamos “rodar” em locações de difícil acesso, parte do trabalho seria fotografado debaixo da terra, nas famosas Grunas. Todos os planos, tomada por tomada, foram acompanhados pelo processo de gravação em Som-Direto-Digital, o que não admitia qualquer ruído ou efeito sonoro não compatível com o período histórico em que se passava a narrativa filmada. Melhor explicando, a cidade de Andaraí, nas Lavras Diamantinas, funcionou como um perfeito Estúdio de Cinema. A população, como um todo, formou uma parceria completa com a equipe e, mais que isso, foram coniventes e cúmplices com o nosso sonho de realizar o filme.
É preciso não perder de vista que o fantasma das dificuldades era a verba curta disponível. As filmagens foram completadas. Deus sabe como! com um terço do dinheiro necessário para contemplar a empreitada que enfrentamos. Para tanto não fizemos nenhuma mágica, apenas assinamos um contrato de risco, de acordo com a circunstancia da dura realidade, como se dizia num jogo famoso:”pagar para ver”. Rodamos todo o filme em trinta dias úteis. Não foi nem um pouco razoável, mas tínhamos uma só opção: “ pegar ou largar.”
Chegamos à fase de montagem e finalização do filme estropiados como retirantes. Um outro concurso, instituído pelo Ministério da Cultura, deu-nos uma providencial ajuda para a reta final . Sempre numa caminhada, autenticamente, franciscana conseguimos chegar à primeira cópia. Entretanto, sem processar o Som-Dolby-Digital. A grana faltou para este importantíssimo complemento.
O filme CASCALHO, mesmo com a desvantagem de não possuir o Som-Dolby, foi inscrito no 37 Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, e, entre os trinta e seis concorrentes, ficou entre os seis, selecionados para a mostra principal. Vale registrar que, foi o único filme fora do eixo Rio-São Paulo, sendo dois de SP, três do RJ e um da BA. Daí seguimos adiante. Participamos do Primeiro Festival Macapá de Cinema e Vídeo, em 2005, conquistando o Troféu Equinócio como o Melhor filme de longa-metragem, com o nosso Cascalho.
Nos anos de 65 e 66, Cascalho participou, sempre a convite, de inúmeras mostras nacionais. Com o objetivo de não deixar o filme morrer por esquecimento, estivemos presentes nestes acontecimentos, conhecendo públicos novos, dialogando com os espectadores, colhendo opiniões que, para nossa grande alegria reverteram-se sempre favoráveis ao nosso filme. Continuamos insistindo na captação de recursos para habilitar o filme para o mercado comercial, conseguir adentrar o escurinho do cinema. A ausência do sistema Dolby é o principal entrave. Sem este dispositivo técnico as salas de projeção não o exibem. Neste momento estamos tentando, com a Petrobrás, conseguir os recursos para a aplicação desta remasterização moderna do som, o Dolby. O valor total do gasto para se obter este item técnico, por nos tão enfatizado, representa menos que 1% (um por cento) do valor dos gastos totais com a realização do filme em questão.
A arte cinematográfica jamais teve vocação para a clandestinidade. O filme tem de ser projetado para o público, seja lá qual for, o habitat natural da película filmica é a luminosidade das telas dos cinemas. Qualquer outra solução nada mais é que o atestado de óbito com a seguinte especificação: Morreu na Praia!!!
Tuna Espinheira
Tuna Espinheira é cineasta, Roteirista, Produtor e Diretor do Longa-Metragem: CASCALHO. E-mail: tunaespinheira@terra.com.br
A sintonia fina de Cascalho
*Ângela Vilma
No ano em que o clássico romance Cascalho (1944), do baiano Herberto Sales, completa sessenta anos, o cineasta Tuna Espinheira realiza um sonho de quase dez anos – filma Cascalho. A persistência venceu, assim como o romance continua vencendo, nesses silenciosos sessenta anos, o esquecimento da mídia e da academia. Agora, juntos, filme e romance se mostram a espectadores e leitores, para as mais inventivas leituras, proporcionadas pelo diálogo entre literatura e cinema.
Diante do filme, obviamente muitas discussões são retomadas. Principalmente aquela que defende a fidelidade à obra literária, quando de sua adaptação para o cinema. Ora, sabemos o quanto são diferentes e específicas as linguagens e encenações que envolvem essas duas artes. Diríamos, de uma maneira generalizadora, e quase óbvia, que no cinema há a linguagem da “extrema” visibilidade da imagem; tudo é visto (ou quase-tudo), num contraponto à leitura do livro, na qual vê-se tudo também, mas pelas fendas das imagens individualmente criadas. A fim de fundi-las, poderíamos assinalar que ambas, literatura e cinema, apesar das distinções, se encontram na comunhão da visibilidade. O que difere é o fato do filme deslocar o texto da “imobilidade” da página para a movimentação da tela, num recorte de leitura proveniente da percepção do diretor e do roteirista.
Ao assistirmos Cascalho, o filme, cenários, fotografias, personagens, sensações, que tão bem registraram a cor local (Andaraí - Chapada Diamantina, década de 30) no romance de Herberto Sales, surgem na tela e nos incitam a percorrer a leitura do livro, aberta pelo diretor e roteirista, Tuna Espinheira, e possibilitada pelas magias da película. O romance tem, como o próprio Herberto definiu, “uma ação continua e múltipla”, e, como completou Adonias Filho, tão “ampla como uma roda em pleno movimento”.
Essa simultaneidade, expressa “ebulição humana do garimpo”, é agora visualizada no filme, numa intensidade tão bem sintonizada por Tuna, transportando-nos àquele ambiente através dos recursos poéticos da imagem em luz e sombra. O universo feérico do garimpeiro, no qual diante da aventureira busca do diamante desnuda-se a exploração e a recompensa de investimento, do pouco dinheiro conquistado, nos gastos perdulários em cabarés, é recortado em meio à bela fotografia da Chapada com seus rios, serras, vales, gerais, numa confluência entre a riqueza, o sonho e a miséria.
Ambientado, pois, no lugar de origem do romance, Andaraí, terra de Herberto Sales, o filme, como declara Tuna Espinheira, é eminentemente baiano. Todos os atores são da Bahia, do possível protagonista ao provável anônimo figurante. A população andaraiense se envolveu em peso a fim de recriar o romance, célebre na região, através da encenação coletiva. Se na década de 40, quando publicado Cascalho, Herberto Sales sentiu-se obrigado a ir embora para o Rio de Janeiro, em decorrência da reação negativa de alguns conterrâneos que se viram focalizados no livro, agora a situação foi totalmente diferente. Os andaraienses queriam estar no romance, ou seja, ser personagens do filme; até aqueles que não aparecem como figurantes, vararam a noite como espectadores, assistindo às filmagens madrugadas adentro. A cidade toda parou a fim de retornar ao passado. Os postes de luz desapareceram, a padaria da esquina voltou a ser, como antes fora, Pensão Grande Líbano, e a loja A Barateira abriu de novo suas portas. O escritor e sua terra se reconciliaram num abraço afetivo, amplo, mágico. Assim, Cascalho surge na tela com, creio eu, o aplauso emocionado de Herberto, onde quer que ele possa estar.
PROTAGONISTAS - O filme reproduz “murais” do cotidiano andaraiense na década de 30, quando coronéis e garimpeiros, prostitutas e comerciantes se lançavam à sorte que traziam os augúrios dos garimpos. As quatro partes que compõem o romance, nas quais simultaneidades de vidas se encontram e se dispersam, mostram-se na película com uma fidelidade que se distingue: nelas por vezes ouvimos frases literais provenientes do livro, em cenas vigorosas como o desacato por parte do jagunço Zé de Peixoto (Jorge Coutinho) ao Coronel Germano (Othon Bastos), seguida pela morte do jagunço em tocaia armada pelos chefes locais, além do enxotamento do promotor (Irving São Paulo) a partir dos versos esculhambadores do “Mineiro-Pau”, terminando com a enchente que surpreende os garimpeiros na gruna.
Como quis e afirmou Tuna Espinheira, o filme mantém “sintonia fina com a alma do texto herbertiano”. Portanto, tal qual no romance, o que poderia ser lido como mero documento de uma época, de um contexto social, ascende ao “registro” da própria condição humana nas mais reflexivas conotações, pois que personagens se deixam ver, tocar, sentir diante da fatalidade de seus destinos.
Nos quadros que se movimentam, pessoas e cenários se fundem em relevância, permeados pelo humor que resvala de cenas memoráveis como as protagonizadas por Wilson Mello, encarnando o médico Dr. Marcolino e seus escarros inesquecíveis; a tibieza do delegado Esquivel (Caco Monteiro), e de seus comparsas, frente ao jagunço Zé de Peixoto e aos chefes locais; a luxúria inoportuna de Quelezinho (Harildo Deda) – irmão do Coronel Germano - , visto descaradamente numa cama de bordel, tomando resoluções a fim de zelar pela “ordem” do município.
Em meio a tantos personagens, o que há mesmo é uma sugestão, também percebida no romance: todos ali são protagonistas. Ou então, talvez seja protagonista a cidade, com sua gente e seus dramas. Porém, um garimpeiro se destaca dos demais: Filó Finança (Lúcio Tranchesi). Sendo o único garimpeiro alfabetizado, Filó sobressai pela consciência da situação a qual se encontra, e rouba a cena pela teatralidade, humor e bonacheirice.
O “homem”, na sua força e irracionalidade (jagunço Zé de Peixoto), na ingenuidade inconseqüente (garimpeiros em geral), na inconsciência da compaixão (coronéis e a “elite” social), tem como emblema a figura picaresca de Filó Finança. E é este fio condutor que beneficia a liberdade do diretor do filme, fazendo-nos perceber as fissuras e os desamparos de todos os homens a partir da imagem, em destaque, de um deles.
Encontrar diamantes nas serras de Andaraí, vendê-los e poder empregar todo o dinheiro nos cabarés com cachaças e mulheres-damas é o sonho do garimpeiro. Sonho que está representado muito bem nas farras de Filó Finança, Neco (Dody Só) e Joaquim Boca-de-Virgem (Berto Filho) ao bamburrarem e ao gastarem tudo na quermesse de Nossa Senhora da Glória. Esse mundo onírico, onde se pode fazer tudo que o dinheiro permite, move aquele seres pela gruna, espécie de gruta, “um rombo dentro da noite, como se fosse a própria serra escancarando a boca num grito impossível”, à cata de diamantes e carbonatos. A gruna, simbolizadora da morte nas Lavras Diamantinas, semelhante ao “interior de uma sepultura”, mostra-se, em toda a sua dimensão, como imagem, unindo o desenlace tanto do romance quanto do filme. Porém, é no pormenor da morte de Filó Finança que o filme redimensiona o livro, transcendendo tanto a palavra quanto a imagem.
VIDA E MORTE - O romance é finalizado com a agonia na gruna, pois a enchente desaba sobre ela e sobre Filó, Neco e Joaquim. Os dois últimos se salvam, porém Filó sucumbe. Mais uma vez a “cheia” levou “apenas um homem”, dirá novamente o garimpeiro Justino ao Coronel Germano. O narrador afirma, no último parágrafo, que “era de manhã, e a luz de um novo dia derramava sobre a serra, quando retiraram o corpo de dentro da areia”. Filó Finança morre e “acima do córrego, guarnecido por um corte de pedras secas, elevava-se contra a claridade do céu um monte de terra escura. Era o paiol do cascalho”.
Se a gruna simboliza a morte e a impossibilidade de sanar as misérias daquela ingênua gente, Filó Finança simboliza a esperança, o sonho, as virtualidades de ser. Como figura emblemática, garimpeiro e sonhador, o seu sonho persiste. “A luz de um novo dia derramava sobre a serra”, diz o narrador do romance, e essa frase ressoa nas entrelinhas do filme, porque, independente de qualquer coisa, a vida continua. E, melhor, a vida de Filó continua.
É essa a bela leitura de Tuna Espinheira. Filó Finança, graças ao sortilégio das imagens, das câmeras, das fotografias, ressurge. E seu rosto na tela rompe os enigmáticos elos que a chuva e a gruna estabeleceram com a morte, volvendo, assim, à nossa frente, elegantemente vestido, comandando a sua festa no “Cabaré dos Sonhos”. Dono de tudo, terá para sempre, e quando quiser, a prostituta Rosa (Maria Rosa Espinheira), as cachaças, as danças, arrematando todos os prêmios nos leilões, fazendo “figura” diante da vida e da morte.
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*Ângela Vilma é poeta e contista. Baiana de Andaraí, publicou o livro A tessitura humana da Palavra: Herberto Sales, Contista, pela Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, resultado de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Pernambuco, em 2001.
Em 2005 concluiu e defendeu tese conquistando o doutorado sobre o romance de Herberto Sales.
Da narrativa e da fábula no discurso cinematográfico
A necessidade de ressaltar a verdadeira natureza de arte do cinema, restituindo-lhe o fundamento poético original, torna-se uma tarefa urgente do estudioso dado o cipoal vulgarizador no qual a imagem se submerge na atualidade. O fundamento poético original a que se refere precisa ser enfatizado quando se fala, hoje, de cinema, pois se faz necessário diferenciá-lo das outras técnicas mais conhecidas pela designação geral de meios de comunicação de massa. Ao contrário da prática televisiva, que se limita a reproduzir sentidos previamente organizados, o filme é dotado de uma capacidade significante que lhe permite recriar a realidade sob a forma de uma linguagem. Assim, recorrendo a uma série de processos de reelaboração poética, o cinema, transformado num gênero técnico-formal, está mais virado para a expressão do que para a comunicação. Tem uma função mitopoética bastante forte e arraigada e não se pode, sob pena de se incorrer em grave erro de apreciação e compreensão da arte, deixar de reconhecer o seu papel de grande matriz moderna da cultura.
O filme é um discurso e não, apenas, um simples espetáculo e, na realidade, desde o seu aparecimento tem acumulado títulos nobiliários que lhe valeram ser considerado como par das outras artes mais ilustres. Em sua trajetória, na sua escalada enquanto linguagem, promove a tarefa de qualquer atividade artística: a produção autônoma de sentidos;. E, desenvolvendo-se, neste século que ora se encontra ao ocaso, como linguagem, o filme é várias vezes promovido no terreno da significação, sendo que duas promoções assumiram um caráter decisivo para o seu destino expressivo: a primeira – que remonta a meados dos anos vinte – lhe permite passar do escalão servil de reprodução das realidades em movimento para o escalão mais qualificado de linguagem artística baseada na reprodução da realidade; a segunda promoção – ocorrida em época mais recente – reconhece a capacidade do filme não apenas para reproduzir a realidade, mas também, e principalmente, para reconstruir a realidade de modo inteiramente original.
O efeito da primeira promoção – já assimilado, hoje, por todo e qualquer espectador – é o de levar o cinema a deixar de ser visto apenas como espetáculo, passando a sê-lo também e sobretudo como uma experiência artística em nada inferior à das outras artes. A transição do filme entendido como mera técnica foto-reprodutora para o filme entendido como linguagem auto-suficiente – do cinematógrafo ao cinema – já não deveria escandalizar ninguém, principalmente se se tem em conta a inegável função de matriz da cultura desenvolvida pelo cinema ao longo de sua existência centenária. A segunda promoção – reconstrução da realidade de modo inteiramente original – é, no entanto, mais difícil de assimilação, considerando, aqui, a passagem da representação para a escrita. Se o filme é um discurso orgânico e solidário nas suas partes é necessário aprender a lê-lo, após tantos anos em que se esteve habituado a vê-lo simplesmente. O filme não é mais, assim, uma mera reprodução de um discurso previamente elaborado no interior de um outro sistema de signos.
A semelhança do cinema com a arte figurativa provoca um erro de apreciação, pois quem assim acha e procede não tem em conta a diferença funcional entre o enquadramento e o quadro. O que distingue de maneira radical o enquadramento do quadro é a presença, no primeiro, de uma dimensão dinâmica, porque a obra pictórica, o quadro, está encerrada em si mesma e exprime uma temporalidade subjetiva enquanto que o enquadramento fílmico só adquire sentido em relação aos enquadramentos que o antecedem e se lhe seguem na cadeia narrativa, exprimindo, portanto, uma temporalidade objetiva. A temporalidade subjetiva remete apenas para a bagagem iconográfica do observador enquanto a objetiva, própria do cinema, constitui um fragmento de sentido que, para ser contemplada, precisa ser integrada no contexto do filme. Assim, os enquadramentos estão, por conseguinte, relacionados entre si no interior da sequência, e o mesmo deve ser aplicado a esta última dentro da estrutura geral do texto fílmico sob pena de não se reconhecer o caráter orgânico da obra.
Com efeito, a obra pictórica se baseia na condensação expressiva (1), mas, por outro lado, a obra cinematográfica duplica sem mediações a realidade que o espectador vê representada na tela. A porção de realidade que é vista no cinema é equivalente à visível na natureza? Claro que não! Porque, mesmo nas obras chamadas documentais, as inúmeras deformações introduzidas pela objetiva da máquina de filmar, a câmera, determinam uma diferenciação entre a realidade e a natureza. E bastariam, para constatar a diferença, a bidimensionalidade e o caráter convencional da cor da imagem fílmica para funcionar como elementos comprovativos da diversidade entre esta e a correspondente parte da realidade.(2)
Por meio da chamada impressão de realidade (3), o cinema tem a vantagem de abarcar tanto a função foto-reprodutora da imagem fílmica como sua incurável tendência para interpretar o real. Existindo esta impressão – como de fato existe, o cinema pode, além de simultaneamente mostrar e demonstrar, testemunhar e, conjuntamente, ajuizar, e, mais importante, denotar e ao mesmo tempo conotar. E nenhuma dessas práticas é dissociável da outra. Assim, o cinema possui uma faculdade única e jamais reconhecida a qualquer outra arte: a de transformar o mundo em discurso servindo-se do próprio mundo. Do próprio mundo e não de sinais arbitrários (como faz a literatura ) ou semelhantes (como faz a pintura), empregados, estes sinais, em substituição do próprio mundo. Promovendo esta transformação – a do mundo em discurso, o cinema possui uma atitude escritural que vem somar-se ao seu caráter foto-reprodutor originário. E o filme nasce do aproveitamento consciente de tal atitude, isto quer dizer: do discurso singular individualizado dentro do sistema de linguagem representado pelo cinema.
Enquanto no sistema de comunicação verbal a pessoa que fala tem à disposição um repertório codificado ao qual vai beber (o vocabulário), o mesmo não acontece, porém, no caso da comunicação fílmica – por não existir, aqui, um repertório abstrato de imagens análogo a que se possa recorrer de vez em quando. O que pode ser debitado ao caráter não convencional do signo fílmico, pois, a rigor, o cinema fala uma única língua universal. Mas, mesmo no âmbito de uma tal língua, é possível um uso individual, que não seja nem banal nem previsível. No cinema, o modo de utilização subjetiva da língua da realidade, por assim dizer, é representado pelo estilo, pelo ponto de vista adotado pelo cineasta. As óticas sob as quais a realidade pode ser encarada são infinitas, ainda que ela seja uma só, pois, como prova, tem-se o fato de um mesmo acontecimento tratado por diferentes realizadores redundar em vários discursos diferentes que poderão nada ter em comum – a não ser, precisamente, o pretexto inicial.
02. Linguagem órfã de língua
Linguagem órfã de língua, o cinema não necessita nem de vocabulário nem de gramáticas, mas de um repertório estilístico no que se refere aos métodos expressivos; um repertório estilístico ao nível da organização da estrutura das grandes unidades significantes – as seqüências. Assim, esta necessidade está muito mais vinculada à organização seqüencial do que, propriamente, à organização do enquadramento singular. Num filme, aquilo que a retórica antiga chamava de elocutio tem individualmente menor importância do que a dispositio justamente porque os enquadramentos singulares não possuem autonomia, mas estão relacionados entre si no interior da seqüência e esta, dentro do contexto geral da obra cinematográfica, se relaciona dentro de uma ampla estrutura.
Se se quiser reproduzir, no papel, os fotogramas de um filme – como se faz em alguns catálogos e livros de luxo publicados principalmente na Europa e Estados Unidos – não se tem uma compreensão da obra como um todo por causa da dimensão dinâmica característica da arte do filme. Assim, se é incorreto falar de uma hipotética língua cinematográfica, igualmente ilusório é confiar no realismo ontológico (4) da imagem fílmica. Estas noções provocaram diferentes formas de ditadura: a ditadura do enquadramento-signo – pela qual foram responsáveis os cineastas soviéticos dos anos 20, com Serguei Eisenstein à frente – e a ditadura do enquadramento-fato – camisa-de-força na qual se prenderam os exegetas mais acirrados do neo-realismo italiano do pós-guerra. Trata-se, aqui, de duas manifestações do imperialismo linguístico: no caso da primeira, a ditadura do enquadramento-signo, por causa de um excesso de abstração; no caso da segunda, a da ditadura do enquadramento-fato, por causa de um excesso de produção. Ambas podem ser redutíveis a uma substancial incompreensão da natureza alusiva do cinema.
O enquadramento de uma parcela da realidade não é o signo convencional nem, também, a mimese perfeita do original, mas, pelo contrário, uma interpretação discreta. Esta interpretação carrega, de fato, um significado de seu objeto, sem contudo negá-lo. É de se ver que os dois planos da denotação e da conotação coexistem, mas não se excluem alternadamente.
Há, todavia, casos nos quais existe exclusão do plano da denotação para o plano da conotação. Isso ocorre quando há a prevalência da prática intelectualista ou da prática naturalista, ou seja, perante casos em que se tem o discurso sem mundo ou o mundo sem discurso, ainda que o cinema, por sua própria natureza, possua a faculdade inédita já referida de, conjugando os momentos de racionalidade e natureza, transformar o mundo em discurso. E o vocábulo natureza, aqui, não significa naturalismo – na medida em que também no cinema, como em qualquer outra atividade que se quer artística, o verossímil é, de longe, preferível, ao verdadeiro, pois como preliminar a qualquer operação artística os elementos constituintes de realidade devem ser recriados poeticamente.
O que importa não é fazer ver as coisas, mas, e principalmente, dar uma idéia desses mesmas coisas, isto quer dizer: é muito mais provável tornar crível na tela uma cena fictícia do que uma cena verdadeira. Veja, como exemplo, o testemunho de Pudovkin – cineasta soviético dos anos 20, que, tendo de representar a explosão provocada por um tiro de canhão, se viu obrigado a construí-la. É o mesmo Pudovkin quem sublinhou a grande importância da escolha do material plástico para a eficácia dramática de uma cena (5). E este material não é de fato o simples conjunto dos pormenores visíveis capazes de sugerir atributos invisíveis como os pensamentos ocultos dos personagens ou os seus sentimentos profundos?
A conotação sugestionante do enquadramento é determinado pelo caráter ambíguo da imagem fílmica, porque corresponde, de fato, o enquadramento, não à palavra mas à frase, embora se constituindo na partícula mínima da cadeia linguística. Presta-se, portanto, o enquadramento, a ser lido em vários níveis como uma expressão verbal suscetível de diversas interpretações, apesar de não infinitas, tendo em vista que a intencionalidade significante do cineasta realiza, apenas, uma escolha limitada entre a gama de sentidos possíveis. O enquadramento não pode ter sentido equívoco nem unívoco, pois neste último caso a univocidade viria a contrariar a impressão de realidade, impressão esta que distingue o cinema, como se viu, dos signos arbitrários que constituem a língua verbal empregada com uma finalidade puramente denotativa.
03 .A natureza escritural do cinema
De cópia servil da realidade, como se considerava o cinema nos seus primórdios ou ainda mesmo nos seus primeiros decênios, o cinema, liberto da corrente que o vinculava à representação, pôde competir com a literatura na produção do imaginário, fazendo emergir a sua natureza escritural. Somando-se ao caráter alusivo e ambíguo da imagem fílmica a intervenção de outros procedimentos expressivos, como a montagem (visual e sonora), os movimentos de câmera e a utilização psicológica da cor, vê-se desmoronada a ilusão realista em favor de uma concepção antimimética do cinema. As imagens cinematográficas, assim, podem organizar-se num contexto autônomo que passa a suscitar todo um leque de hipóteses – e não mais, e apenas, uma única linha de leitura. No cinema, a rigor, não existe texto dramático e encenação – aqui entendida esta com a que se estabelece no proscênio, mas e tão-somente, escrita e estilo – como acontece, aliás, no romance. Isto significa que um filme só se representa a si próprio, que o único tempo que importa é o tempo do filme, assim como a única personagem importante é o espectador, pois é na cabeça deste que se desenvolve toda a ação que é, precisamente, imaginada por ele, segundo fala Alain Robbe-Grillet. Em outras palavras: a coisa mais importante num filme não é a história mas o discurso, ou seja, o como e não o objeto da narrativa, resultando este do primeiro – e não vice-versa.
A língua, como proclama Saussure (6) nos seus escritos, é ao mesmo tempo um produto social da capacidade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita. Assim, o fato da língua é múltiplo por definição: existe um grande número de línguas diferentes, mas não há linguagem cinematográfica específica a uma comunidade cultural. Ou, como diz Jacques Aumont (7): “Uma das grandes diferenças entre a linguagem cinematográfica e a língua consiste em que, na primeira, as diversas unidades significativas mínimas não têm significado estável e universal. As figuras cinematográficas têm um sentido: não são unidades significativas mínimas; não se pode cortar em dois ou em três um flou, um congelamento da imagem”. Assim, estas figuras das quais fala Aumont adquirem um significado preciso em cada contexto, mas, tomadas em si mesmas, não possuem valor fixo. Consideradas intrinsecamente, não se pode dizer nada sobre o seu sentido. Assim, a linguagem cinematográfica apresenta um grau de heterogeneidade uma vez que combina cinco elementos diferentes: (a) - as imagens em movimento e, pendentes destas, as notações gráficas, (b) – letreiros, legendas, inscrições diversas – a trilha sonora, que compreende o som fônico, (c) – diálogos, o som musical, (d) – e o som analógico e (e) – ruídos. Apenas um desses elementos é específico da linguagem cinematográfica : a imagem em movimento. Entre as características fundamentais da imagem fílmica apontadas por Marcel Martin (8) está aquela que a considera, antes de tudo, realista, ou melhor, dotada de todas as aparências da realidade – ou quase todas. A imagem cinematográfica também está sempre no presente, porque, fragmento da realidade exterior, ela se oferece ao presente da percepção e se inscreve no presente da consciência humana, sendo que a defasagem temporal se faz apenas pela intervenção do julgamento, o único capaz de colocar os acontecimentos como passados em relação ao espectador ou de determinar vários planos temporais na ação do filme. A imagem fílmica, por conseguinte, suscita no espectador um sentimento de realidade bastante forte para induzí-lo à crença na existência objetiva do que aparece na tela.
Mas o cinema tem uma natureza escritural. É representação, é escrita. A representação termina quando a realidade representada cede a palavra à própria representação, isto é, o importante a considerar não é o que se diz no filme, mas sim o que o filme diz. Para isso, é preciso aprender a reconhecer a linguagem no cinema e a captar qualquer mínima manifestação desta. É preciso apreender o comportamento que a câmera adota relativamente à personagem e não tanto seguir o comportamento de uma dada personagem na tela, pois, muitas vezes, a câmera não é cúmplice dos protagonistas nem solidária com eles, antes os corrigindo ou mesmo contradizendo. A câmera pode, em suma, intervir no plano da conotação sem, porém, modificar o plano da denotação. O que leva à constatação de que o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme não é o que se reporta ao comportamento dos protagonistas mas o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica.
04 .Narrativa e fábula
Se o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme é o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica – e não, como já se disse, o que se reporta ao comportamento dos protagonistas, torna-se imprescindível o discernimento, por parte daqueles que pretendem compreender e entender a arte do filme, entre o plano da fábula e o plano da narrativa.
O plano da fábula refere-se à coisa da narração – quer dizer, à história – e o plano da narrativa refere-se ao como – quer dizer, ao conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o texto narrativo. De um lado, tem-se a story e, do outro o discourse, parafraseando Seymour Chatman (9). Assim, é evidente que o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o plano da fábula-story mas, sim, o plano da narrativa-discourse, porque em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo-se por forma, esclareça-se, não a que em tempos idos foi definida como expressão da beleza, porém o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico. O que significa dizer: tanto no cinema como no romance, é o discurso que escolhe a fábula que lhe parece mais funcional.
O fundamental é compreender que o lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada, sempre na condição de o ser em sentido polívoco e não banal. A polivalência semântica se constitui na conditio sine qua non da artisticidade relativamente a qualquer sistema expressivo. A distinção entre fábula e narrativa pode parecer artificial, no entanto, quando se está diante de obras em que os dois planos caminham paralelos e em perfeita harmonia. Ocorre sempre nos filmes que seguem os cânones do naturalismo, nos quais a conotação tende para o grau zero e a coisa impõe uma espécie de ditadura sobre o como ou, melhor, a história, a fábula, exerce, uma ascendência sobre a narrativa. Isso pode ser constatado nos filmes nos quais a ação da linguagem está completamente a serviço dos personagens, sendo estes últimos apresentados como pré-existentes à obra e dotados de uma autonomia extrapoética. Nestes casos, tem-se evidente a mistificação pelo uso passivo e mentiroso da linguagem, considerando-se que a função precípua das linguagens artísticas é a de recriar o mundo e não copiá-lo nas suas aparências.
Por outro lado, a distinção entre fábula e narrativa se encontra plenamente legitimada nos filmes em que os dois planos se dissociam para refutar-se – ou, pelo menos, controlar-se – alternadamente. Pode acontecer, de fato, que no decorrer do filme a mensagem expressa pela fábula seja contrariada pela mensagem expressa pela narrativa. Nesta caso, a narrativa provoca sutilmente a erosão da fábula a ponto, inclusive, de produzir um significado real oposto ou divergente do que se extrairia de uma leitura fílmica limitada exclusivamente aos valores da história – ou da fábula.
Em A laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), de Stanley Kubrick, filme que permaneceu nove anos proibido de exibição no Brasil – justamente por causa da acidez de sua fábula, a ironia da narrativa encarrega-se de neutralizar a violência da fábula. À guisa de ilustração: Alex e seus amigos, rebeldes sem causa, adeptos da ultraviolência, invadem a casa de um famoso escritor, espancando este e sua esposa com requinte de perversidade. Mas enquanto Kubrick mostra a violência do ataque a trilha sonora apresenta a voz de Gene Kelly cantando na chuva. Em outro filme, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, o personagem vivido por Paulo Autran, um político arrivista e demagogo, é visto sob a ótica de várias tomadas (ou planos) enquanto uma voz em off, radiofônica e séria contrasta com o tom de deboche do personagem que ri às gargalhadas. Já em Mouchette (1967), de Robert Bresson, a verdadeira crueldade não reside tanto na matéria da história como no rigor formal que caracteriza o plano do discurso.
Donde se pode concluir: o verdadeiro significado de um filme situa-se, portanto, numa área marginal relativamente ao seu centro aparente. Há que se ter a consciência da distinção narrativa-fábula porque essencial para compreender a poética de um filme. Na filmografia do cineasta Alfred Hitchcock, segundo análise de Eric Rohmer e Claude Chabrol (10), o conteúdo é a forma, o que, a rigor, não se aplica apenas a esse autor de filmes mas a todas as obras de autênticos autores da história do cinema, obras cujo distintivo consiste numa carga de sentido que só se esgota mediante uma leitura em profundidade. É o discurso, nesse sentido, que, nas obras plenas de artisticidade, por assim dizer, escolhe a fábula que lhe pareça mais funcional.
05 . Enfocando o bipolarismo
Na apreciação da obra cinematográfica existe ainda um certo bipolarismo metodológico que não passa de uma reencarnação da antiga oposição entre formalismo e conteudismo – questão bizantina que já se pensara superada mas que está revestida, hoje, de técnicas recognitivas bastante aperfeiçoadas na sua modernidade, tornando esta questão, ainda que bizantina de origem, mais sofisticada.
Os partidários opostos continuam a se defrontar em relação à coisa (leia-se fábula) ou ao como (leia-se narrativa) do discurso fílmico. Cada qual empenhado em reivindicar as qualidades de sua causa contra as mistificações operadas pela adversária. O fato é que tanto a story – considerada, aqui, nas suas implicações fílmicas ou extrafílmicas – como o discurso - considerado, quer no seu valor estético, quer no seu aspecto funcional que assume no filme, e leia-se, aqui, discurso como narrativa, continuam a ser analisados em separado, como se fossem duas realidades independentes entre si, perpetuando-se, com isso, o equívoco segundo o qual a fábula seria a substância da expressão, enquanto a narrativa – ou o discurso – a forma mediante a qual a substância seria esteticamente expressa.
Como sair, então, dessa arapuca teorética na qual se afundam os mais acirrados radicais de um partidarismo que serve somente para espoliar o filme à força? Esse dilema está mais ou menos expresso quando o crítico paulista Paulo Emílio Sales Gomes, apaixonado pelo filme de Jean Renoir A grande ilusão, vê-se na iminência de assumir seu papel de analista: (11)
“O exame crítico é um processo de aproximações sucessivas, implicando num grau de distanciamento cuja redução constante, sem nunca chegar à anulação. O comentário a respeito da La Grande Illusion me obrigaria a inverter o processo e a desencadeá-lo artificialmente. Não se trata, apenas, de uma fita que existe em mim conservada pela memória auditiva, visual e afetiva. Para fixar a natureza dessa identificação é necessário dizer ainda que certamente me sinto dentro da fita muito mais à vontade do que o próprio autor. Este estranho sentimento de fusão é pura vivência e bloqueia o espírito crítico. Procurando exercê-lo, violo e destruo minha intimidade com a fita. Quando escrevo ou falo sobre La Grande Illusion tenho a impressão desagradável de que ambos, a fita e eu, somos outros.”
Esse sentimento do crítico paulista aplica-se, contudo, à chamada crítica impressionista considerada deficiente no plano cientifico, porque destituída de metodologia específica e baseada na impressão do comentarista/crítico, mas que tem a vantagem de não recorrer a esquemas exclusivos, que em vez de abrir, muitas vezes, um caminho no texto fílmico servem frequentemente apenas para o esmagar com certa brutalidade metodológica. A viagem através do universo fílmico, todavia, para que se torne uma descoberta do significado poético da obra cinematográfica, tem de ser feita por meio da distinção entre a narrativa e a fábula, entre o discurso e a história, entre o como e a coisa. Tarefa árdua se se considerar as numerosas sereias espetaculares, psicológicas e sociológicas que povoam o itinerário de procura da tradução do filme em termos lógicos-discursivos do sentido poético que ele exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios, o que incide sobre a sucessiva racionalização e ao caráter de polivalência que caracteriza o filme como sistema orgânico de sinais suscetível de múltiplas leituras, favorecendo, por conseguinte, à pluralidade interpretativa.
Seria possível encontrar um itinerário que caminhe ao abrigo dos citados riscos? Há dois pontos fundamentais na discussão da distinção referida entre narrativa e fábula. O primeiro afirma que, no filme, como em qualquer outra prática escritural, não existe a fábula, mas, apenas, a narrativa, a qual se serve da primeira como mero pretexto narrativo; e o segundo que diz não existir, no filme, outra história para além da que passa inteiramente através das malhas da narrativa estruturada em torno da story.
Trocando em miúdos: para que o filme se possa revelar na sua recôndita alma secreta não é por meio da língua que se deve inquiri-lo, mas, sim, numa língua que não é a da realidade nem a da encenação da realidade, a língua da transformação do filme em figura através dos procedimentos adequados à produção de sentidos inéditos de que a linguagem fílmica dispõe. É na língua do cinema que se deve procurar a sua significação como obra de arte, é no específico fílmico que se tem o ponto de partida para desatar o nó górdio de seu mistério como expressão da arte e do pensamento.
Na ausência desses pensamentos adequados à produção de sentidos de que a linguagem fílmica dispõe, uma transvalorização poética que se plasma na escrita, não há por que falar em formas nem conteúdos, reinando, apenas e absoluto, o vazio da banalidade cotidiana. Se o cineasta não tem a capacidade de transformar o mundo em linguagem – nunca esquecendo de que o cinema tem o poder de transformar o mundo em discurso servindo-se do próprio mundo, está destinado a permanecer uma larva informe e muda, não obstante, a impressão da realidade que emana do cinema e em virtude da qual os filmes podem mentir sem receio dando a impressão de que estão dizendo a verdade.
06. E a máquina fabuladora se instala
Vista a distinção entre o plano da narrativa e o plano da fábula, fundamental para o entendimento da linguagem sem língua que é o cinema, não se pode deixar de reconhecer que a chamada sétima arte, por grande máquina fabuladora, é chamada a desempenhar na atualidade a mesma função mitopoética das canções de gesta da Idade Média e do romance realista do século XIX. O cinema se propõe a satisfazer, à semelhança desses dois gêneros citados, aquela fome de narrativas tão antiga como o homem e que constitui a manifestação mais elementar da sua insuprimível necessidade de imaginário. E o cinema obteve sucesso nesse campo por causa do caráter universal da linguagem fílmica assim como sua irrefutável característica de arte moderna – típica, aliás, do cinema. Arte mediana porque distante, por constituição, tanto da esfera artística cortesã como das práticas de barracão decididamente plebéias. É óbvio que se está a referir ao comportamento usual a que o cinema – que antes mesmo de ser uma arte é uma indústria – se conforma na maior parte dos casos – e os filmes programadas no circuito comercial podem muito bem dar uma idéia desta arte mediana. Assim, os raros pontos altos atingidos pela produção cinematográfica não são, efetivamente, suficientes para modificar o supracitado estatuto, o mesmo acontecendo com os bastante mais frequentes pontos baixos. É o caso de se dizer: um filme, por pior que seja, dificilmente desilude por completo a expectativa de narrativa do espectador, sendo que na origem da popularidade do cinema está, portanto, nada mais do que esta promessa sempre renovada de narratividade, uma promessa cuja manutenção é garantida pelos históricos destinados à tela.
Lida-se, no filme, não com palavras mas com imagens capazes de provocar esta tão falada impressão de realidade, que é, diga-se de passagem, completamente desconhecida nos signos verbais. Assim, na medida em que as imagens, diferentemente do que se passa com os verbos, não se podem conjugar, o único tempo que o cinema tem à sua disposição é o presente. Um presente, observe-se, que é vivido como tal pelo espectador mesmo quando na tela se volta ao passado ou se dão saltos no futuro – conforme já se aludiu. Tais procedimentos apenas se referem, de fato, ao plano da dispositio e em nada alteram o da alocutio, considerando que o que interessa é sempre o onde e não o como da esfera significante. Para não repetir, mas repetindo: o lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada.
Quanto ao espaço fílmico, percebe-se-o globalmente – ao contrário ao espaço do romance cujo objeto de percepção é analítico e setorial. É possível, no cinema, também isolar um aspecto particular e dirigir a atenção exclusivamente sobre ele, recorrendo, para isso, ao grande plano ou, então, à máscaras que isolam um objeto do contexto visual da imagem. Esta possibilidade, contudo, corresponde mais a uma exigência estilística do autor – equivalente ao procedimento verbal conhecido pelo nome de sinédoque, que se caracteriza pelo tropo fundado na relação de compreensão e pelo qual se emprega o todo pela parte, o plural pelo singular, o gênero pela espécie – do que a uma característica ontológica da linguagem fílmica. A categoria do espaço-tempo cinematográfico é, portanto, plenamente autônoma comparativamente à que intervém na narração escrita, salvo no caso, acentue-se, em que o filme se mantenha tributário da obra literária e renuncie, assim, a exprimir-se com a sua linguagem. Ao contrário da linguagem fílmica, o espaço na linguagem dos signos verbais é um lugar puramente abstrato ligado, apenas, à capacidade evocadora das palavras utilizadas e ao grau de sensibilidade linguística que o leitor possui.
O romance filmado é uma utopia. Havendo, como há, duas linguagens autônomas e especificas, como se pode efetuar a transferência da linguagem literária – signos verbais – para a linguagem cinematográfica – signos icônicos? De fato, quando ocorre a adaptação de uma obra literária para o cinema há, apenas, o aproveitamento da fábula, dos personagens, das situações, desaparecendo, com isso, a narrativa, considerando que o que faz o estilo de um escritor é sua capacidade de reger as palavras numa determinada sintaxe, e o estilo de um cineasta está na sua capacidade de manejar os elementos da linguagem fílmica – os planos, os movimentos de câmera, as angulações, a montagem etc.
Por outro lado, alguns cineastas se valem de sub-literatura para, aproveitando a eventual engenhosidade da fábula, transformá-la em filme. Neste caso, a narrativa, se tende para o grau zero a nível de conotação no plano literário, pode se transformar numa narrativa convincente, e plena de poeticidade, no aproveitamento da fábula da sub-literatura. É o que faz, por exemplo, Alfred Hitchcock, cujos filmes, com raras exceções, foram sempre baseados em fábulas da chamada pulp fiction (literatura barata), investindo o cineasta nelas como mero pretexto narrativo, o conteúdo estando sempre a serviço da forma/discurso/narrativa.
Temerário é a adaptação de um monumento da literatura universal. King Vidor empreendeu a conquista de Guerra e Paz para o cinema. Com um resultado desanimador se comparado o filme à obra que lhe deu origem, pois Vidor aproveitou somente os personagens, a intriga e as situações. Em uma palavra: a fábula. A narrativa de Leon Tolstoi foi diluída pela narrativa do cineasta, despersonalizando o fluxo do texto específico e da linguagem do escritor em função de um outro fluxo linguístico.
O cineasta, portanto, ao adaptar uma obra literária empreende uma transferência de linguagem que se poderia situar no terreno da utopia. Em O processo, baseado em Franz Kafka, Orson Welles, com sua narrativa barroca, faz desaparecer a narrativa kafkiana (baseada em signos verbais) em função de uma narrativa wellesiana. Restam, é verdade, a fábula, os personagens, as situações. O filme, entretanto, é mais Welles do que Kafka. Também em Madame Bovary, de Claude Chabrol, apesar deste cineasta não possuir a exuberância estilística de Welles e ter querido uma fidelidade exemplar ao texto literário de Gustave Flaubert, a despersonalização se faz presente, porque em Madame Bovary, o filme, não se localiza o estilo flaubertiano e, pela fidelidade extremada, também se evapora o estilo chabrolniano. Neste caso, duas as despersonalizações: a do escritor e a do cineasta. Há ainda a considerar que o leitor do livro imagina a sua Bovary, existindo tantas Emas quantos os leitores da obra literária. No filme, Ema é Isabelle Huppert.
Em suma: o princípio que rege a adaptação de um romance ou de uma peça teatral ao cinema é absurdo em essência, na medida em que supõe que os valores significados existem independentemente do meio de expressão que os veicula. Se o cinema, a literatura, o teatro, pertencessem a um mesmo sistema de signo (isto é: se possuíssem uma língua ou uma linguagem comum) não haveria problema. Mas os valores mudam quando se passa de um sistema para outro: os mesmo elementos adquirem sentido diverso. Os signos utilizados em um determinado meio de expressão, quando adaptados a outro, não só não possuem o mesmo poder expressivo (significante) como também não agem da mesma forma sobre a consciência do receptor. Sua percepção muda, sua organização mental se processa de modo diferente.
O que é descrito num romance se harmoniza gradualmente: as coisas aparecem pouco a pouco através de frases. No cinema elas são apresentadas imediatamente num ritmo de desenvolvimento radicalmente opostos. O que na literatura é um resultado, no cinema é um ponto de partida. O romance filmado é uma utopia e, quando executado, um non sense. O que se adapta é uma paráfrase da obra original, a sua matéria. O romance perde a sua organicidade e, apenas, tem transportados para a tela personagens e incidentes, livres da linguagem que antes os tornara virtualmente reais.
O fundamental é saber se o filme, como dizia André Bazin, “non pas des histoires mises en scéne mais des oeuvres ecrités avec la caméra et les acteurs”, é bom ou ruim e não mera visualização paraliterária ad usum delfhini – digesto corrompido pelo preconceito culturalista segundo o qual a câmera é um olho com pretensões à caneta.
07. Das estruturas da narrativa
A construção de uma narrativa cinematografia obedece a diversos critérios assim como um projeto arquitetônico corresponde a determinadas opções. Há uma construção narrativa que se pode considerar simples e outra que se desenha como complexa. Dois tipos de estruturas, portanto, mas que se deve ter em conta e ressaltar que a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa. Isto quer dizer: pode haver histórias intrincadíssimas mas de estrutura simples, elementar, e, pelo contrário histórias lineares, com começo, meio e fim e progressão dramática tradicional mas que se tornam intrincadas por uma disposição particular dos segmentos narrativos.
Dentre as narrativas de estruturas simples estão: a linear, a binária e a circular.
1. Narrativa linear. Este tipo de narrativa é percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema que se obedece é aproximadamente o seguinte: a) introdução ambiental; b) apresentação das personagens; c) nascimento do conflito; d) conseqüências do conflito; e) golpe de teatro resolutório. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story), excetuando-se os eventuais casos de erosão dentro do referido esquema – que se constituem uma exceção à regra.
2. Narrativa binária. Este tipo de narrativa é percorrida por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação – thrillers, westerns, etc – porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo, fornecendo, assim, amplas possibilidades de impacto. Exemplo clássico da narrativa binária está em David Wark Griffith (Intolerância, 1916, O lírio partido, 1918, Broken blossoms no original). A linguagem cinematográfica tomou impulso com a descoberta da ação paralela e da inserção de um plano de detalhe no plano de conjunto.
3. Narrativa circular. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: “as mesmas coisas repetem-se”. Em A faca na água (Noz W Wodzie, Polônia, 62), o primeiro longa metragem de Roman Polansky, assim como também em O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, 74) de Luis Buñuel, e Estranho Acidente (Accident, 68), de Joseph Losey, para ficar em três exemplos, as coisas que se observam no início voltam a surgir no final, a despeito das tentativas registradas pela narrativa para se libertar delas e da sua influencia nefasta. A construção das obras citadas obedece e exprime a visão do mundo de seus autores do que, propriamente, à matéria da fábula, que pode se apresentar tranquila e jocosa e destituída de relevância maior.
Dentre as narrativas de estrutura complexa estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.
(a) Narrativa de inserção. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso. A contínua intervenção do flash-back pode provocar um entrelaçamento temporal que esvazia a noção do tempo cronológico em favor do conceito de duração. Por outro lado, as frequentes deslocações espaciais conferem aos lugares uma unidade de caráter psicológico mas não de caráter geográfico. Na narrativa de inserção, a realidade é vista de modo mediatizado, isto é, a realidade é refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. Seguem esta narrativa de inserção filmes como 8 ½ (Otto e mezzo, 64), de Federico Fellini, A guerra acabou (La guerre est finie, 66), Providence, entre outros trabalhos de Alain Resnais, Morangos Silvestres (Smulstronstallet, 57) de Ingmar Bergman, etc. Nestes exemplos, o receptor/espectador é posto diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental: o velho Professor Isaac contempla a própria infância (Bergman), o cineasta Guido (Marcello Mastroianni) no cemitério conversa com seus pais já falecidos (Fellini), a projeção do desejo de um escritor moribundo (John Gielgud) imaginando situações (Resnais). O desenvolvimento puramente mental determina, por sua vez, um jogo de associações visuais e emotivas que cria um universo fictício exclusivamente psicológico.
(b) Narrativa fragmentária. Estrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa. A expectativa de fábulas, no entanto, encontra-se presente no homem desde seus primórdios e o cinema, portanto, desde seu nascedouro possui uma irresistível vocação narrativa. Poder-se-ia, então, ainda que esta irrefreável expectativa do receptor diante de um filme, falar de um cinema-ensaio ao lado de um cinema-narrativo. O exemplo de, novamente Alain Resnais, Meu tio da América (Mon oncle d’Amerique) vem a propósito, assim como Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux ou trois choses que je sais d’elle, 66) de Jean-Luc Godard – um minitratado sobre a reificação que ameaça o homem na sociedade de consumo, La hora de los hornos (68), de Fernando Solanas – obra nascida como ato político que utiliza documentos, entrevistas, cenas documentais e trechos com o objetivo de proporcionar a tomada de consciência revolucionária por parte do espectador.
(c) Narrativa polifônica. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d’oiseau. Utilizando-se desse tipo de narrativa complexa, o cineasta capta de maneira sensível, se capacidade houver, o clima social de uma determinada época, como fez Robert Altman em Nashville (1975). Neste filme, vinte e quatro histórias se entrecruzam para compor um mosaico revelador da realidade dos Estados Unidos durante a década de 70. Outro exemplo do mesmo Altman é Short cuts. (Short cuts, EUA, 91)
As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado, segundo as coordenadas estabelecidas por René Caillois (12). Porque, assim fechadas, estas estruturas servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador. Em Apocalypse now (1978), de Francis Ford Coppola, o cineasta apresenta três finais todos igualmente legítimos e solidários com o contexto narrativo. Já em Dalla nube nulla ressitenza (81), de Jean-Marie Straub, formado por blocos de sequências fixas, a solução final é deixada ao subsequente trabalho de reflexão do espectador/receptor. Trata-se de uma obra que faz uma reflexão, por meio de representações dialogais, sobre a passagem da idade feliz do Mito para a idade infeliz da História.
O caráter aberto da narração, todavia, em nada desfalca a contextualidade orgânica do discurso, contextualidade que se mantém íntegra apesar da suspensão da fábula. A solidariedade estrutural, ressalte-se, constitui a conditio sine qua non de qualquer discurso cinematográfico que pretenda considerar-se artístico.
08. Os lugares narrativos da fábula
Se a narrativa possui as suas estruturas-tipo, a fábula também se apresenta sob a forma de lugares narrativos bem reconhecíveis. As estruturas da narrativa têm a ver com a organização do discurso enquanto que os lugares narrativos da fábula se referem às modalidades em que a história está representada dentro das coordenadas espácio-temporais do texto fílmico. Aparentemente, na multiplicidade das construções narrativas, esconde se apenas um número limitado e repetido de situações dramáticas. À primeira vista, e a grosso modo, pensa-se que todo filme conta uma história diferente. Daí vem a necessidade de se aplacar esta impressão de multiplicidade – uma ilusão! – através de um mecanismo redutor que faça esclarecer os arquétipos do gênero fabulístico. Com maior frequência, quatro são os mais utilizados lugares narrativos na fábula: a viagem, a educação sentimental, a investigação, e o elemento deflagrador.
(1) A viagem. É o topos – configurações que o material narrável adota no plano da dispositio – que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia, de Homero, até On the road, de Jack Kerouac. É também o mais congenial ao cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final. É isso que se vê, por exemplo, em O Sétimo selo (Det sjunde inseglet, 57), de Ingmar Bergman, onde os encontros reveladores efetuados pelo cavaleiro Antonius Block durante a sua viagem de regresso da cruzada levam-no, gradualmente, a descobrir o valor da solidariedade humana e, com isso, a superar a condição de crise que o afeta. Os dois meninos que procuram o pai na Alemanha em Paisagem sob a neblina, do grego Theo Angelopoulos, percorrem, na viagem de busca, estações e, com elas, descobrem o mundo com a presenciação da dor e do sofrimento e da solidão. Do mesmo modo, em O soldado azul (Quando é preciso ser homem/The soldier blue, 71), de Ralph Nelson, a necessidade de atravessar o território índio em companhia de uma mulher branca permite ao protagonista descobrir os valores de uma civilização antes considerada inferior e compreender que os verdadeiros selvagens são, afinal, os soldados do seu regimento enviados para arrasar a aldeia dos peles-vermelhas.
Variante do topos é o motivo da fuga que, sendo semelhante ao precedente, se distingue dele por uma maior funcionalidade crítica. A fuga pode ser devida a razões externas (necessidade de afastar-se de uma situação de perigo ou, então, de perseguir de modo aventuroso aquilo que é proibido pela legalidade) ou a razões interiores de natureza existencial (intolerância de uma dada condição humana e procura de uma vida melhor). Em O viajante (Voyager, 93), de Volker Scholoendorff, o protagonista interpretado por Sam Shepard foge da vida por meio de viagens aéreas tomadas ao acaso, vivendo uma trajetória permeada de aeroportos.
O exemplo bem típico do primeiro caso – fuga devida a razões externas – é o de O fugitivo (I’m a fugitive from a chain gang, 1932), de Mervyn Le Roy, que mostra um inocente que foge e é encarcerado numa prisão e que, fugindo desta novamente, tem de continuar errando pela noite como um perseguido sem nenhuma perspectiva de retorno a uma vida normal. Também em A Louca escapada (The sugarland express, 74), de Steven Speilberg, um casal tem de afrontar as perseguições da polícia para recuperar a criança que lhe foi tirada por infâmia.
No segundo caso – fuga devido a razões internas – insere-se a fuga para um mítico Alasca tentada pelo protagonista inquieto de Five easy pieces (Cada um vive como quer, 1970), de Bob Rafelson, que espera encontrar um modelo de vida alternativa àquele obrigado a seguir e que não considera autêntico. Jack Nicholson é o intérprete que personifica o personagem andarilho em busca de uma identificação bem típica dos anos 60 e corolária do movimento paz e amor.
Existe também, dentro dos assim chamados lugares narrativos da fábula, um outro tipo de fuga chamado de gratuita cuja característica principal está num desejo de afirmação do eu e do desafio às normas sociais. Ainda: a fuga metafísica de causas reais desconhecidas e interpretável como metáfora do destino humano. Na fuga gratuita, o exemplo marcante é encontrado em Corrida contra o destino (Vanishing point, 1970), de Richard Sarafian, uma louca corrida através dos Estados Unidos feita de automóvel pelo personagem, uma fuga que termina pela autodestruição espetacular do homem. Já em No limiar da liberdade (Figures in a landscape, 70), de Joseph Losey, e em Encurralado (Duel, 73), de Steven Spielberg, há, no primeiro, uma fuga planetária – os protagonistas estão envolvidos, sem uma razão visível, e sob a ameaça de um estranho helicóptero numa corrida desenfreada – e, no segundo, uma fuga absurda – um homem foge desesperadamente de um gigantesco caminhão que o persegue pelas estradas.
Há, ainda, outros tipos de fugas como as de Geena Davis e Susan Saradon em Thelma & Louise (idem, 90), de Ridley Scott, ou a empreendida pelo protagonista de Com o passar do tempo (Im lauf der zeit, 76) de Wim Wenders, que, destituído de passado e futuro, percorre a Alemanha exclusivamente imerso na, por assim dizer, dimensão existencial do dasein heideggeriano. Neste caso, a narrativa renuncia a qualquer conotação dramática e limita-se a registrar com um gosto fenomenológico o comportamento do herói seguido nas suas incessantes deslocações espaciais. A fuga, aqui, apresenta a vagabundagem como uma condição normal do protagonista, como resultado de uma opção de vida coerente e consciente. Uma característica, aliás, do cinema wendersiano: Alice nas cidades (Alice in den stadten, 73), Movimento em falso (Falscher bewegung, 75), entre outros.
Um outro lugar narrativo – topos – é o que se pode definir por educação sentimental. Se nos topos da viagem o desenvolvimento narrativo se faz no espaço, tem-se, na educação sentimental, um desenrolar-se no tempo.
(2) A educação sentimental. A tomada de consciência opera-se graças a um itinerário que já não é mais horizontal mas vertical, considerando-se que neste topos se se reporta aos fenômenos psicológicos ligados à passagem de uma idade do homem para outra. O arco de tempo analisado pode ser mais ou menos longo consoante a quantidade e a qualidade das experiências narradas pela fábula. Além disso, a educação dos sentimentos pode ser apresentada segundo o seu desenvolvimento real ou, então, ser objeto de reinvocação por parte de quem a protagonizou. Em ambos os casos é contemplada pelo autor numa perspectiva mais ou menos autobiográfica, com a diferença de que, enquanto na primeira hipótese – a do seu desenvolvimento real – há uma pretensa objetividade que tende a fazer desaparecer esta característica autobiográfica, na segunda, a identificação entre o cineasta/autor e o protagonista da ação fica a descoberto. Em Os incompreendidos (Les quatre-cents coups, 59), de François Truffaut, existe uma melancolia eivada de um sentimento patente de nostalgia pela idade das ilusões anterior ao princípio do realismo ligado à dimensão adulta, qualquer que seja o período da vida em que tal princípio se afirma. Já em O mensageiro (The go-between, 71), de Joseph Losey, a reinvocação da passagem traumática do mundo das ilusões para o da realidade é confiada ao protagonista direto dessa dolorosa transição.
Este topos – arquétipo no qual se assentam muitos filmes – tem sua origem em Gustave Flaubert. Na primeira versão de A educação sentimental (1845), ainda sob o impacto da experiência amorosa que tivera na adolescência, o jovem Flaubert confere um desenlace feliz à sua paixão, acreditando ainda que, para conquistar a felicidade, bastaria desejá-la com toda a força. Anos mais tarde, ao redigir a segunda versão da obra (1869), já na idade da razão, reconhece o engano de sua mocidade e inicia o livro com uma saudosa evocação de Elisa Schlesinger (a Sra. Arnoux do romance), lembrando, com ternura, até os pormenores de seu vestuário para finalizar com a melancólica despedida de Frédéric Moreau (nome que atribui a si próprio no enredo) à amada impossível.
(3) A investigação. Baseia-se na reconstrução a posteriori de um acontecimento obscuro sobre o qual há que fazer luz. Os instrumentos utilizados podem ser os clássicos da investigação policial ou os mais recentes do inquérito jornalístico ou, se se quiser, cinematográficos. O móbil comum revelador é apreendido por meio de fragmentos soltos que, organizados, propõem o denominador comum. A fábula apresenta-se, aqui, como o lugar da desordem que tende a encontrar a sua explicação unitária para além da aparente casualidade dos acontecimentos descritos. É ao esquema do inquérito policial que obedecem filmes como A marca da maldade (Touch of evil, 58), de Orson Welles e A Besta deve morrer (Que la bête meure, 70), de Claude Chabrol. No filme de Welles, a procura do assassino está animada por um sentimento de legalidade oficial: numa cidade de fronteiras entre os Estados Unidos e o México, instaura-se uma rivalidade entre dois policiais, o americano Quinlan (Welles) e o Vargas (Charlton Heston) num caso de drogas e crimes. No filme de Chabrol, a procura do assassino é movida por um desejo de vingança privada. Inspirados no inquérito jornalístico e no filmado se encontram, respectivamente, O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 61), de Francesco Rosi e o Homem de mármore (Czlowiek z marmur, 79), de Andrzej Wajda, o primeiro procurando fazer luz sobre a morte do bandido siciliano, enquanto o outro se preocupa na reconstituição da verdadeira história de um “herói do trabalho” do período stalinista desaparecido imprevistamente das crônicas do regime. Ainda há um derradeiro lugar narrativo da fábula: aquele a que se recorre com maior frequência a ponto de não ser quase percebido como tal. O esquema em que o Bem e o Mal são eternamente contrapostos numa estrutura narrativa o mais elementar possível. Tal conflito, na realidade, para além de poder assumir um dos aspectos exteriores até aqui examinados, também pode ser representado de modo linear e segundo uma progressão dramática facilmente previsível pelo espectador. Em tal caso, o bom pode vestir as roupas de uma personagem histórica que tenha realmente existido como Aleksandr Nevsky no filme homônimo (Aleksandr Nevsky, 38), de Serguei Eisenstein, ou ser personificado por um herói lendário como Shane (Os Brutos também amam/Shane, 53), de George Stevens. Em ambas as circunstâncias, os códigos fílmicos procuram exaltar a figura empenhada na benemérita tarefa de destruir o Mal nas suas repetidas encarnações históricas e meta-históricas: a música, os fatos e até a cor fazem uma simpática apologia ao herói e, em contrapartida, exprimem toda a sua reprovação pelo malvado mau.
(4) O elemento deflagrador. Talvez não se possa definir o elemento deflagrador como um lugar narrativo da fábula mas é uma constante e uma presença marcante nos arquétipos da narrativa. Trata-se do elemento que vem de longe e deflagra, com sua aparição, um processo de transformação no meio social no qual se intromete. A chegada de Shane, cavaleiro misterioso, cujo passado é desconhecido, provoca uma metamorfose na localidade, revelando para os seus habitantes e, principalmente, para o menino Joe, sua mãe e seu pai, a família na qual Shane pousa por um tempo, uma força estranha e poderosa capaz de mudar o statu quo.
O anjo de Teorema (idem, 67), de Pier Paolo Pasolini, também é, na fábula, um elemento deflagrador da transformação de uma família burguesa italiana que, depois de sua misteriosa aparição, toma rumos inesperados após o contato sexual do anjo com todos os familiares e inclusive a empregada: o pai, desesperado, doa a fábrica aos operários; a mãe, ensandecida, procura, como prostituta em desespero, homens pela rua; o filho se torna um pintor abstrato; a filha entra em estado catatônico, e, por fim, a empregada, saindo da casa onde trabalha, volta às origens numa localidade interiorana onde levita, ascendendo ao céu e transformada em santa.
O elemento deflagrador é um arquétipo do qual se valem muitos filmes. Em Férias de amor (Picnic, 54), de Joshua Logan, o personagem interpretado por William Holden, um forasteiro, um estranho, chega a um vilarejo interiorano dos Estados Unidos e provoca, no dia da Festa do Trabalho, quando tem lugar um piquenique, um verdadeiro cataclisma. É a força que vem de fora e causa transtornos na aparente tranquilidade de uma sociedade onde os preconceitos, recônditos, eclodem à menor faísca.
fabulístico reduzem a maioria a um número limitado.
09. A ótica narrativa
O ponto de vista adotado pela narrativa fílmica é sempre – e simultaneamente – objetivo e subjetivo, nunca redutível a uma única perspectiva por causa da dupla e concomitante ação realista e irrealista do cinema. O que não exclui, em todo caso, a hipótese de a narrativa abraçar uma ótica em detrimento de outra em relação ao desenvolvimento global da narração. Um filme, portanto, nunca pode narrar um acontecimento inteiramente visto de dentro – a coisa que o romance pode fazer, mas tem a necessidade de recorrer a um ângulo de observação que permita unificar a matéria representada a fim de não gerar confusões de perspectiva. No filme-ensaio (vide Meu tio da América/Mon oncle d’Amerique, 1979), de Alain Resnais, esta ótica se identifica com a do autor que seleciona e ajuíza. No filme de ficção, esta ótica segue o olhar de um dos protagonistas, procurando, no entanto, não se confundir completamente com ele. A perspectiva da câmera é diferente da do olho humano e, como demonstram inúmeros filmes, a lente pode ocupar o olhar de um gato (Um dia, um gato, filme tcheco no qual, em alguns momentos, tem-se a perspectiva do olhar do gato que vê as pessoas de uma localidade segundo o seu caráter, dando-lhes as cores correspondentes). O objeto focalizado também pode ser totalmente deformado – e, nesse particular, o expressionismo alemão é farto de exemplos – O Gabinete do Dr. Caligari, 1919, de Robert Wiene, Nosferatu, o vampiro, 1922, de Friedrich Murnau, etc. Em Cidadão Kane, 1941, de Orson Welles, filme com forte influência expressionista, o cineasta usa tetos baixos para dar uma dimensão insólita aos personagens e, na sequência do palácio de Xanadu, Susan Alexander, a mulher de Kane, é vista em pequena silhueta diante de uma gigantesca lareira. Dentro da mesma obra, um jogo tipo quebra-cabeça – um puzzle que, no final das contas, é a própria chave para a compreensão da obra – tem suas peças em dimensão enorme. Welles, nestes casos, deforma os objetos com a lente com um propósito estético contextual.
Henri Angel (13), ensaísta francês, acha que o ponto de vista de um filme deve ser sempre o que é adotado pelo cineasta, quer este decida ver o mundo através dos olhos de um dos protagonistas, quer decida manter-se o mais possível exterior à ação narrada. Um caso de identificação autor-personagem é representado por O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), de Antonioni, onde a realidade é vista pela câmera não como efetivamente é mas como se apresenta aos olhos do protagonista.
Outro caso de identificação autor-personagem está representado em Repulsa ao sexo (Repulsion, 65), de Roman Polansky, onde os pesadelos da protagonista (Catherine Deneuve), apresentados como objetivos, não são mais que o fruto da personagem psicopata, uma manicure sexualmente reprimida que se isola em seu apartamento e vai enlouquecendo.
No polo oposto situam-se, pela sua objetividade extrema, filmes como Nashville, de Altman, uma crônica de cinco dias da vida de uma cidade no Tennessee, Nashville, na hora do show business e de uma campanha eleitoral que serve como um testemunho à beira do desespero sobre os Estados Unidos contemporâneos. Também Lancelot, de Robert Bresson, e Nicht Versohnt, 65, de Jean-Marie Straub, obras centradas numa radical objetividade e construídas de modo a esvaziar qualquer identificação personagem-espectador e, também, redutíveis ao ponto de vista exclusivo do realizador onisciente.
Existem também filmes nos quais os pontos de vista são contraditórios ou contrastantes entre si. Rashomon, 1950, de Akira Kurosawa, filme que projetou o cinema japonês no mercado internacional, é um exemplo bem marcante. A fábula se passa no século XV numa floresta perto de Tóquio, quando um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher, porém, diz que foi ela quem matou seu próprio marido. Surge, então, a alma do morto que conta a todos, estupefatos, como se suicidou. Mas um açougueiro que a tudo ouvia, dá uma quarta versão. Em Rashomon, portanto, são fornecidos três pontos de vista diferentes do mesmo fato, todos igualmente espectáveis, até emergir deles um quarto que é o verdadeiro.
Há o caso de a ação ser contada por um morto que relata do além a sua história trágica – não existem nem realizador oculto nem personagem visível. É o que acontece em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, no qual o encenador protagonista conta da sua situação de defunto, o como e porque de sua morte devida à atriz famosa da qual tinha sido hóspede. A ex-estrela é Glória Swanson que, vivendo esquecida num suntuoso palácio antiquado de Hollywood, acompanhada de seu fiel criado (Erich von Stroheim), contrata um roteirista fracassado que se torna seu amante e que ela mata quando ele se recusa a continuar a relação.
10. Das obras não narrativas e meta-narrativas
A presença da fábula é verdadeiramente indispensável à narrativa fílmica? O enredo, a story, a fábula, funcionam, habitualmente, como elemento motor das aventuras da linguagem – e a maioria dos espectadores/receptores apenas procuram no cinema a intriga. Há casos, entretanto, nos quais as aventuras da linguagem podem desenrolar-se na tela sem necessidade de uma fábula, de uma story, que lhe sirvam de pretexto. Existem, pois, obras de fantasia em que a presença da fábula se apresenta reduzida à expressão mínima, sendo o desenvolvimento dramático, nelas, quase nulo, consistindo a matéria tratada num único tema relativo ao infinito com variações quase imperceptíveis. Obras nas quais, na verdade, “nada se passa, não acontece nada”, não obstante as imagens se sucedam de um extremo a outro de uma ação inexistente.
O exemplo está em A ilha nua (Hadaka no shima , 6l), filme japonês de Kaneto Shingo, ou em Glissements Progressifs du Plaisir, l973, de Alain Robbe-Grillet, ambos baseados na repetição obsessiva de um único motivo sujeito a sutis mutações relativas ao ritmo temporal ou ao aspecto figurativo – mas não seguramente ao conteúdo da história. Nestes filmes, vale ressaltar, a narração existe e se comporta de modo enleante, contemplando não a fábula mas a própria narrativa. A narrativa, aqui, se contempla a si própria, isto é: contempla exclusivamente o desenvolvimento do discurso cinematográfico em detrimento do desenvolvimento da fábula – que quase não se presentifica .
É interessante observar que uma história sem narrativa – uma fábula sem narrativa – pode resultar entediante e vazia de autênticos golpes resolutórios no clímax ainda que a agitação frenética dos intérpretes, ao passo que uma narrativa sem fábula – ou sem história – pode ser rica de ação. A alternância de diversos enquadramentos na tela cria por si só uma expectativa de narrativa, qualquer que seja a matéria da fábula. Os cineastas que trabalham nas fitas publicitárias muito bem conhecem o princípio, pois hábeis em humanizar objetos quotidianos e em torná-los protagonistas de emocionantes aventuras.
O que acontece se uma narração fílmica tiver por objeto não uma história passada na realidade mas uma história narrada pelo cinema? É a metalinguagem: um filme que fala de outro filme. Cinema metanarrativo, portanto e, neste caso, faz-se necessária atenção para distinguir a narrativa relativa ao filme a que se está a assistir da narrativa relativa ao filme contado pelo primeiro. Trata-se, aqui, de uma espécie, por assim dizer, de narração ao quadrado, procurando não confundir nela o que é ficção do primeiro grau e o que é ficção do segundo grau.
Esta narrativa ao quadrado ocorre em filmes nos quais falam de um cineasta que, através da obra que está a filmar, pretende contar uma outra coisa. O exemplo mais significativo é o de Oito e meio (Otto e mezzo), de Fellini, e, também A Noite americana (La nuit americaine, 75), de François Truffaut, ou ainda Memórias (Stardust memories, 80), de Woody Allen, ou mais ainda, A mulher do tenente francês (The french lieutnant woman, 81), de Karel Reisz.
Em Otto e mezzo, um cineasta estafado revê a sua infância, encontra a amante, a esposa e uma criatura ideal, enquanto se preocupa com a realização de um filme. Em Stardust memories, Woody Allen repete Fellini, preocupado, num filme metalinguístico, com seus fantasmas interiores na tentativa de exorcizá-los.
11. O filme e sua aura
Segundo Walter da Silveira, ensaísta de cinema baiano, (14), “Arte narrativa, o filme se origina e termina no tema em decurso: ao contrário das artes plásticas, em que se parte do geral para o particular, no cinema é deste que se parte para aquele. Nenhum fotograma dá uma idéia longínqua, embora, do todo fílmico. E, ainda que nos livros se reproduzissem todas as sequências, continuaríamos a ignorar o filme, porque não teríamos o fundamento do cinema: a sucessão rítmica das imagens, o movimento coordenado que se baseia na montagem.”
A distinção entre narrativa e fábula é a chave da compreensão do cinema e o ingresso para se entrar na sua especificidade, na sua linguagem. O objetivo da dissertação é, exposto este esboço teórico, encontrar na análise do discurso cinematográfico de A grande feira, filme baiano de Roberto Pires/Rex Schindler, até onde os dois planos – o da narrativa e o da fábula – se controlam alternadamente, servindo-se, para isso, de alguns instrumentos retirados da semiologia na esperança de compreender o segredo nele oculto por meio da desmontagem e da reconstituição da estrutura fílmica. A análise se empenha no sentido de fazer luz sobre a lógica combinatória que regula as relações entre as unidades singulares significantes do discurso de A G rande Feira. Considerando a narrativa observada sob a forma de uma máquina que produz sentido somente mediante o recurso a uma série de procedimentos cujo domínio é exclusivamente limitado ao universo da linguagem utilizada.
Apesar de Walter Benjamin (15) ter afirmado que na época das técnicas de reprodução o que é atingido na obra de arte é a sua aura pela liquidação do elemento tradicional dentro da herança cultural, não se pode deixar de sentir uma espécie de aura no cinema. Arte coletiva por excelência, o cinema, mais do que qualquer outra forma de comunicação, dirige-se à pessoa singular numa relação privada que não tolera intromissão, como acentua E. H. Gombrich (16). Um espetáculo teatral também pode tirar partido das luzes acesas da sala, mas um filme só pode ser seriamente prejudicado por isso. E é compreensível: vai-se ao cinema para ver sem ser visto, ao contrário do que acontece no teatro, onde é importante estar frente a frente com os atores enquanto se desenrola o ritual cênico. Os bastidores do palco delimitam o espaço dramático, lugar mágico da ação teatral, denunciando o seu caráter convencional. As margens do enquadramento, pelo contrário, prolongam-se para o espaço circundante, sugerindo a sua presença invisível. Menos perceptível é a realidade física da sala, sendo maiores as possibilidades de o filme nos arrastar consigo para a tela. A diversidade de condições necessárias para que os dois rituais se cumpram, no dizer de J. M. Company (17), leva a uma consequência paradoxal relativa ao modo de fruir um e outro. A representação teatral, irrepetível, por definição, pode, na realidade, ser objeto de réplica em condições ambientais não exatamente idênticas às existentes da primeira vez e isto sem que o espetáculo resulte desnaturado. A representação fílmica, também por definição duplicável até o infinito, necessita de condições ótimas do ponto de vista técnico sempre que for repetida.
Observa com propriedade Irvin Rock (18) que o espetáculo teatral pode ser visto mais de uma vez, não sendo por certo o como acaba o elemento que desperta maior curiosidade. Mas um filme exerce toda a sua carga somente da primeira vez, salvo casos em que se sinta necessidade de revê-lo para esclarecer melhor o discurso. Isto significa que, enquanto o teatro – arte, não se esqueça, mais aristocrática do que o cinema – suporta melhor um tipo de fruição popular, o cinema, que é mais popular do que o teatro, exige, pelo contrário, ser fruído em condições mais aristocráticas. No teatro, os atores podem interromper uma récita para voltar a retomá-la mudando de registro ou modificando os tempos inicialmente previstos. Os atores de um filme continuam a seguir o seu destino narrativo mesmo se a sala estiver vazia e o operador ou projecionista a passar pelas brasas, desde que na sala continue, porém, a reinar a obscuridade silenciosa. O acender das luzes esvaziaria a sua presença, transformando-os em simples manchas desbotadas sobressaindo de um telão branco.
Sala às escuras, ausência de interferências sonoras, isolamento psicológico dos demais. Só se se desfrutar destas condições é que o filme pode revelar o seu segredo. Caso contrário, perde qualquer coisa de precioso e exclusivo. Não a palavra, pois bastaria que erguesse a voz para continuar a ouvi-la. Perde a sua aura, isto é, perde aquela auréola fascinadora graças à qual pode transportar o espectador para qualquer outro mundo cuja promessa o levou a entrar na sala exibidora. Mas quem se ressente da perda da aura? Não é, certamente, o plano da fábula, pois este pode, inclusive, ser seguido de modo intermitente ou, até mesmo substituído por sua versão resumida que lhe antecipe os aspectos mais salientes do conteúdo. Quem perde a aura é o plano da narrativa, a qual, como resultado de uma eventual dispersão de energia semântica, como coloca bem Santos Zunzunegui (19), de vida a uma visão incorreta do texto fílmico, acabaria por ficar não apenas seriamente diminuída mas também completamente dissolvida nos seus valores linguísticos originais. Assistir, por exemplo, a uma projeção de Deserto rosso em preto-e-branco em vez do colorido original, ou com as lâmpadas quase gastas, não significa ver o filme mal, mas não o ver de todo. Ver-se-á, quando muito, um filme completamente diferente que tem apenas a fábula em comum com o primeiro.
Existem cineastas que cuidam pessoalmente – quando das sessões especiais – de cada projeção e isso, diga-se, não deve ser confundido com uma manifestação de perfeccionismo exacerbado. Alain Robbe-Grillet, cineasta e escritor, um dos pais do nouveau-roman, estando em Salvador em l977, fez questão de visitar a cabine de projeção onde iria ser exibido O Ano passado em Marienbad , de Alain Resnais, filme do qual foi o roteirista e se pode dizer co-autor. Estes cineastas são ciosos da aura que envolve a obra e temem a sua dispersão motivadas pelas causas anteriormente referidas. É na mesma ordem de idéias que se pode compreender a recusa daqueles que não admitem ver filmes na televisão. Claro que, no vídeo, a fábula também pode sobreviver às mil interferências devidas ao ambiente quotidiano em que se dá a fruição. Federico Fellini, por exemplo, sempre ficou horrorizado ao ver suas fitas projetadas no pequeno écran da tv, apelando, inclusive, a processos judiciais.
Se a fábula, apesar de tudo, se conserva, é, por outro lado, o plano do discurso – ou se se quiser da narrativa –que é prejudicado, maltratado e esvaziado pelo conjunto das práticas que regulam a fruição televisiva, práticas que, por definição, são inimigas de qualquer intercâmbio ou identificação. Acomodados em frente à tv, talvez com a luz acesa e a mesa posta, não se pode estar preparado para ver um filme, ao contrário do que aconteceria numa sala de cinema, mas, para ver o aparelho de televisão em cujo visor irá passar um filme. Que passará, como diz Michel Chion (20), para morrer por suas próprias mãos ou, na melhor das hipóteses, para ser acompanhado distraidamente e quase por obrigação até ao seu ansiado fim. E isto sem contar com a possibilidade de ser abandonado a meio do percurso em favor de um seu concorrente em exibição no canal vizinho.
Assim, a cumplicidade a que a sala de cinema convida o espectador é frustrada pelo televisor. Perante ele, o filme se desenrola, vê-se os familiares enquanto, também, o filme. A observação passa de proibida a caseira. O telecomando fragmenta o discurso e afugenta a sua aura relativa. A narração atinge as raias da loucura e o delírio audiovisual inunda o vídeo despedaçando implacavelmente qualquer resistência do sentir.
12. A verdade do filme
Desde os tempos da Poética de Aristóteles, a matéria da arte não deve ser o verdadeiro mais o verossímil. Esta, uma questão muito importante, pois o objeto da representação artística não deve ser aquilo que aconteceu, mas, sim, aquilo que poderá acontecer. O que pode acontecer, diga-se, na condição de se verificarem algumas condições particulares que o cineasta deverá ter o cuidado de expor antes de dar início à ação por ele imaginada. Assim, tem-se que somente a hipótese de partida é fruto de invenção. Todo o resto, depois desta definida, será aceito como perfeitamente crível, qualquer que seja a matéria da fábula e a sua adesão à realidade cotidiana. O importante, aqui, e ressalte-se isso, é que a narração, o discurso cinematográfico, seja coerente com as premissas e desenvolva com rigor as consequências nelas implícitas, sob pena de resultar forçada e com incongruências fatais para a legitimação da obra em sentido realista.
Obra de ficção que se inspira no verossímil, o filme serve-se da mesma reserva de material narrável que o romance, sem que se ponha, novamente aqui, o problema de aquilo que pretende narrar-se ter ou não acontecido verdadeiramente a alguém em qualquer lugar numa determinada época histórica. O filme procura corresponder às exigências da mitografia do que da historiografia, dizendo, basicamente o seguinte: “Se um dia se verificassem estas condições particulares, só poderia acontecer o que se verá dentro em pouco”. E não como alguns fazem supor: “Em tal ano, aconteceu neste país aquilo que se verá dentro em pouco.” Mitografia, portanto, e não historiografia, já que o filme é uma linguagem artística que reconstrói o mundo servindo-se do próprio mundo ao contrário da literatura que reconstrói o mundo servindo-se de signos arbitrários, ou da pintura – que se serve de signos semelhantes.
Mas, se se aceita que o cinema corresponde às exigências da historiografia, os sucessivos desenvolvimentos não têm dificuldade em fazer-se passar por críveis. É importante salientar, tomando-se o exemplo de Francis Vanoye (21), que o que importa numa narração fílmica mas também literária está nos comportamentos possíveis dos personagens, nas ações críveis destes, advindo, daí, um poder de desenvolvimento para os protagonistas, não importando se os fatos são possíveis mas, isto sim, que os comportamentos o sejam. O motivo de um filme – já se disse – não passa de um pretexto que serve para por a máquina da narrativa em movimento e dar início à aventura – não tanto dos heróis como da própria linguagem e das figuras. Assim, pode-se dizer, que o impossível se torne crível, ao contrário de uma narrativa que não funcione, a qual torna incrível inclusive aquilo que, de fato, é possível.
A única verdade que um filme deve respeitar é esta: a verdade relativa à esfera do acontecível e não do acontecido. O sentido de uma fita está incorporado a seu ritmo, assim como o sentido de um gesto vem, nele, imediatamente legível. O filme não deseja exprimir nada além do que ele próprio.
NOTAS
O filme é um discurso e não, apenas, um simples espetáculo e, na realidade, desde o seu aparecimento tem acumulado títulos nobiliários que lhe valeram ser considerado como par das outras artes mais ilustres. Em sua trajetória, na sua escalada enquanto linguagem, promove a tarefa de qualquer atividade artística: a produção autônoma de sentidos;. E, desenvolvendo-se, neste século que ora se encontra ao ocaso, como linguagem, o filme é várias vezes promovido no terreno da significação, sendo que duas promoções assumiram um caráter decisivo para o seu destino expressivo: a primeira – que remonta a meados dos anos vinte – lhe permite passar do escalão servil de reprodução das realidades em movimento para o escalão mais qualificado de linguagem artística baseada na reprodução da realidade; a segunda promoção – ocorrida em época mais recente – reconhece a capacidade do filme não apenas para reproduzir a realidade, mas também, e principalmente, para reconstruir a realidade de modo inteiramente original.
O efeito da primeira promoção – já assimilado, hoje, por todo e qualquer espectador – é o de levar o cinema a deixar de ser visto apenas como espetáculo, passando a sê-lo também e sobretudo como uma experiência artística em nada inferior à das outras artes. A transição do filme entendido como mera técnica foto-reprodutora para o filme entendido como linguagem auto-suficiente – do cinematógrafo ao cinema – já não deveria escandalizar ninguém, principalmente se se tem em conta a inegável função de matriz da cultura desenvolvida pelo cinema ao longo de sua existência centenária. A segunda promoção – reconstrução da realidade de modo inteiramente original – é, no entanto, mais difícil de assimilação, considerando, aqui, a passagem da representação para a escrita. Se o filme é um discurso orgânico e solidário nas suas partes é necessário aprender a lê-lo, após tantos anos em que se esteve habituado a vê-lo simplesmente. O filme não é mais, assim, uma mera reprodução de um discurso previamente elaborado no interior de um outro sistema de signos.
A semelhança do cinema com a arte figurativa provoca um erro de apreciação, pois quem assim acha e procede não tem em conta a diferença funcional entre o enquadramento e o quadro. O que distingue de maneira radical o enquadramento do quadro é a presença, no primeiro, de uma dimensão dinâmica, porque a obra pictórica, o quadro, está encerrada em si mesma e exprime uma temporalidade subjetiva enquanto que o enquadramento fílmico só adquire sentido em relação aos enquadramentos que o antecedem e se lhe seguem na cadeia narrativa, exprimindo, portanto, uma temporalidade objetiva. A temporalidade subjetiva remete apenas para a bagagem iconográfica do observador enquanto a objetiva, própria do cinema, constitui um fragmento de sentido que, para ser contemplada, precisa ser integrada no contexto do filme. Assim, os enquadramentos estão, por conseguinte, relacionados entre si no interior da sequência, e o mesmo deve ser aplicado a esta última dentro da estrutura geral do texto fílmico sob pena de não se reconhecer o caráter orgânico da obra.
Com efeito, a obra pictórica se baseia na condensação expressiva (1), mas, por outro lado, a obra cinematográfica duplica sem mediações a realidade que o espectador vê representada na tela. A porção de realidade que é vista no cinema é equivalente à visível na natureza? Claro que não! Porque, mesmo nas obras chamadas documentais, as inúmeras deformações introduzidas pela objetiva da máquina de filmar, a câmera, determinam uma diferenciação entre a realidade e a natureza. E bastariam, para constatar a diferença, a bidimensionalidade e o caráter convencional da cor da imagem fílmica para funcionar como elementos comprovativos da diversidade entre esta e a correspondente parte da realidade.(2)
Por meio da chamada impressão de realidade (3), o cinema tem a vantagem de abarcar tanto a função foto-reprodutora da imagem fílmica como sua incurável tendência para interpretar o real. Existindo esta impressão – como de fato existe, o cinema pode, além de simultaneamente mostrar e demonstrar, testemunhar e, conjuntamente, ajuizar, e, mais importante, denotar e ao mesmo tempo conotar. E nenhuma dessas práticas é dissociável da outra. Assim, o cinema possui uma faculdade única e jamais reconhecida a qualquer outra arte: a de transformar o mundo em discurso servindo-se do próprio mundo. Do próprio mundo e não de sinais arbitrários (como faz a literatura ) ou semelhantes (como faz a pintura), empregados, estes sinais, em substituição do próprio mundo. Promovendo esta transformação – a do mundo em discurso, o cinema possui uma atitude escritural que vem somar-se ao seu caráter foto-reprodutor originário. E o filme nasce do aproveitamento consciente de tal atitude, isto quer dizer: do discurso singular individualizado dentro do sistema de linguagem representado pelo cinema.
Enquanto no sistema de comunicação verbal a pessoa que fala tem à disposição um repertório codificado ao qual vai beber (o vocabulário), o mesmo não acontece, porém, no caso da comunicação fílmica – por não existir, aqui, um repertório abstrato de imagens análogo a que se possa recorrer de vez em quando. O que pode ser debitado ao caráter não convencional do signo fílmico, pois, a rigor, o cinema fala uma única língua universal. Mas, mesmo no âmbito de uma tal língua, é possível um uso individual, que não seja nem banal nem previsível. No cinema, o modo de utilização subjetiva da língua da realidade, por assim dizer, é representado pelo estilo, pelo ponto de vista adotado pelo cineasta. As óticas sob as quais a realidade pode ser encarada são infinitas, ainda que ela seja uma só, pois, como prova, tem-se o fato de um mesmo acontecimento tratado por diferentes realizadores redundar em vários discursos diferentes que poderão nada ter em comum – a não ser, precisamente, o pretexto inicial.
02. Linguagem órfã de língua
Linguagem órfã de língua, o cinema não necessita nem de vocabulário nem de gramáticas, mas de um repertório estilístico no que se refere aos métodos expressivos; um repertório estilístico ao nível da organização da estrutura das grandes unidades significantes – as seqüências. Assim, esta necessidade está muito mais vinculada à organização seqüencial do que, propriamente, à organização do enquadramento singular. Num filme, aquilo que a retórica antiga chamava de elocutio tem individualmente menor importância do que a dispositio justamente porque os enquadramentos singulares não possuem autonomia, mas estão relacionados entre si no interior da seqüência e esta, dentro do contexto geral da obra cinematográfica, se relaciona dentro de uma ampla estrutura.
Se se quiser reproduzir, no papel, os fotogramas de um filme – como se faz em alguns catálogos e livros de luxo publicados principalmente na Europa e Estados Unidos – não se tem uma compreensão da obra como um todo por causa da dimensão dinâmica característica da arte do filme. Assim, se é incorreto falar de uma hipotética língua cinematográfica, igualmente ilusório é confiar no realismo ontológico (4) da imagem fílmica. Estas noções provocaram diferentes formas de ditadura: a ditadura do enquadramento-signo – pela qual foram responsáveis os cineastas soviéticos dos anos 20, com Serguei Eisenstein à frente – e a ditadura do enquadramento-fato – camisa-de-força na qual se prenderam os exegetas mais acirrados do neo-realismo italiano do pós-guerra. Trata-se, aqui, de duas manifestações do imperialismo linguístico: no caso da primeira, a ditadura do enquadramento-signo, por causa de um excesso de abstração; no caso da segunda, a da ditadura do enquadramento-fato, por causa de um excesso de produção. Ambas podem ser redutíveis a uma substancial incompreensão da natureza alusiva do cinema.
O enquadramento de uma parcela da realidade não é o signo convencional nem, também, a mimese perfeita do original, mas, pelo contrário, uma interpretação discreta. Esta interpretação carrega, de fato, um significado de seu objeto, sem contudo negá-lo. É de se ver que os dois planos da denotação e da conotação coexistem, mas não se excluem alternadamente.
Há, todavia, casos nos quais existe exclusão do plano da denotação para o plano da conotação. Isso ocorre quando há a prevalência da prática intelectualista ou da prática naturalista, ou seja, perante casos em que se tem o discurso sem mundo ou o mundo sem discurso, ainda que o cinema, por sua própria natureza, possua a faculdade inédita já referida de, conjugando os momentos de racionalidade e natureza, transformar o mundo em discurso. E o vocábulo natureza, aqui, não significa naturalismo – na medida em que também no cinema, como em qualquer outra atividade que se quer artística, o verossímil é, de longe, preferível, ao verdadeiro, pois como preliminar a qualquer operação artística os elementos constituintes de realidade devem ser recriados poeticamente.
O que importa não é fazer ver as coisas, mas, e principalmente, dar uma idéia desses mesmas coisas, isto quer dizer: é muito mais provável tornar crível na tela uma cena fictícia do que uma cena verdadeira. Veja, como exemplo, o testemunho de Pudovkin – cineasta soviético dos anos 20, que, tendo de representar a explosão provocada por um tiro de canhão, se viu obrigado a construí-la. É o mesmo Pudovkin quem sublinhou a grande importância da escolha do material plástico para a eficácia dramática de uma cena (5). E este material não é de fato o simples conjunto dos pormenores visíveis capazes de sugerir atributos invisíveis como os pensamentos ocultos dos personagens ou os seus sentimentos profundos?
A conotação sugestionante do enquadramento é determinado pelo caráter ambíguo da imagem fílmica, porque corresponde, de fato, o enquadramento, não à palavra mas à frase, embora se constituindo na partícula mínima da cadeia linguística. Presta-se, portanto, o enquadramento, a ser lido em vários níveis como uma expressão verbal suscetível de diversas interpretações, apesar de não infinitas, tendo em vista que a intencionalidade significante do cineasta realiza, apenas, uma escolha limitada entre a gama de sentidos possíveis. O enquadramento não pode ter sentido equívoco nem unívoco, pois neste último caso a univocidade viria a contrariar a impressão de realidade, impressão esta que distingue o cinema, como se viu, dos signos arbitrários que constituem a língua verbal empregada com uma finalidade puramente denotativa.
03 .A natureza escritural do cinema
De cópia servil da realidade, como se considerava o cinema nos seus primórdios ou ainda mesmo nos seus primeiros decênios, o cinema, liberto da corrente que o vinculava à representação, pôde competir com a literatura na produção do imaginário, fazendo emergir a sua natureza escritural. Somando-se ao caráter alusivo e ambíguo da imagem fílmica a intervenção de outros procedimentos expressivos, como a montagem (visual e sonora), os movimentos de câmera e a utilização psicológica da cor, vê-se desmoronada a ilusão realista em favor de uma concepção antimimética do cinema. As imagens cinematográficas, assim, podem organizar-se num contexto autônomo que passa a suscitar todo um leque de hipóteses – e não mais, e apenas, uma única linha de leitura. No cinema, a rigor, não existe texto dramático e encenação – aqui entendida esta com a que se estabelece no proscênio, mas e tão-somente, escrita e estilo – como acontece, aliás, no romance. Isto significa que um filme só se representa a si próprio, que o único tempo que importa é o tempo do filme, assim como a única personagem importante é o espectador, pois é na cabeça deste que se desenvolve toda a ação que é, precisamente, imaginada por ele, segundo fala Alain Robbe-Grillet. Em outras palavras: a coisa mais importante num filme não é a história mas o discurso, ou seja, o como e não o objeto da narrativa, resultando este do primeiro – e não vice-versa.
A língua, como proclama Saussure (6) nos seus escritos, é ao mesmo tempo um produto social da capacidade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita. Assim, o fato da língua é múltiplo por definição: existe um grande número de línguas diferentes, mas não há linguagem cinematográfica específica a uma comunidade cultural. Ou, como diz Jacques Aumont (7): “Uma das grandes diferenças entre a linguagem cinematográfica e a língua consiste em que, na primeira, as diversas unidades significativas mínimas não têm significado estável e universal. As figuras cinematográficas têm um sentido: não são unidades significativas mínimas; não se pode cortar em dois ou em três um flou, um congelamento da imagem”. Assim, estas figuras das quais fala Aumont adquirem um significado preciso em cada contexto, mas, tomadas em si mesmas, não possuem valor fixo. Consideradas intrinsecamente, não se pode dizer nada sobre o seu sentido. Assim, a linguagem cinematográfica apresenta um grau de heterogeneidade uma vez que combina cinco elementos diferentes: (a) - as imagens em movimento e, pendentes destas, as notações gráficas, (b) – letreiros, legendas, inscrições diversas – a trilha sonora, que compreende o som fônico, (c) – diálogos, o som musical, (d) – e o som analógico e (e) – ruídos. Apenas um desses elementos é específico da linguagem cinematográfica : a imagem em movimento. Entre as características fundamentais da imagem fílmica apontadas por Marcel Martin (8) está aquela que a considera, antes de tudo, realista, ou melhor, dotada de todas as aparências da realidade – ou quase todas. A imagem cinematográfica também está sempre no presente, porque, fragmento da realidade exterior, ela se oferece ao presente da percepção e se inscreve no presente da consciência humana, sendo que a defasagem temporal se faz apenas pela intervenção do julgamento, o único capaz de colocar os acontecimentos como passados em relação ao espectador ou de determinar vários planos temporais na ação do filme. A imagem fílmica, por conseguinte, suscita no espectador um sentimento de realidade bastante forte para induzí-lo à crença na existência objetiva do que aparece na tela.
Mas o cinema tem uma natureza escritural. É representação, é escrita. A representação termina quando a realidade representada cede a palavra à própria representação, isto é, o importante a considerar não é o que se diz no filme, mas sim o que o filme diz. Para isso, é preciso aprender a reconhecer a linguagem no cinema e a captar qualquer mínima manifestação desta. É preciso apreender o comportamento que a câmera adota relativamente à personagem e não tanto seguir o comportamento de uma dada personagem na tela, pois, muitas vezes, a câmera não é cúmplice dos protagonistas nem solidária com eles, antes os corrigindo ou mesmo contradizendo. A câmera pode, em suma, intervir no plano da conotação sem, porém, modificar o plano da denotação. O que leva à constatação de que o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme não é o que se reporta ao comportamento dos protagonistas mas o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica.
04 .Narrativa e fábula
Se o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme é o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica – e não, como já se disse, o que se reporta ao comportamento dos protagonistas, torna-se imprescindível o discernimento, por parte daqueles que pretendem compreender e entender a arte do filme, entre o plano da fábula e o plano da narrativa.
O plano da fábula refere-se à coisa da narração – quer dizer, à história – e o plano da narrativa refere-se ao como – quer dizer, ao conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o texto narrativo. De um lado, tem-se a story e, do outro o discourse, parafraseando Seymour Chatman (9). Assim, é evidente que o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o plano da fábula-story mas, sim, o plano da narrativa-discourse, porque em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo-se por forma, esclareça-se, não a que em tempos idos foi definida como expressão da beleza, porém o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico. O que significa dizer: tanto no cinema como no romance, é o discurso que escolhe a fábula que lhe parece mais funcional.
O fundamental é compreender que o lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada, sempre na condição de o ser em sentido polívoco e não banal. A polivalência semântica se constitui na conditio sine qua non da artisticidade relativamente a qualquer sistema expressivo. A distinção entre fábula e narrativa pode parecer artificial, no entanto, quando se está diante de obras em que os dois planos caminham paralelos e em perfeita harmonia. Ocorre sempre nos filmes que seguem os cânones do naturalismo, nos quais a conotação tende para o grau zero e a coisa impõe uma espécie de ditadura sobre o como ou, melhor, a história, a fábula, exerce, uma ascendência sobre a narrativa. Isso pode ser constatado nos filmes nos quais a ação da linguagem está completamente a serviço dos personagens, sendo estes últimos apresentados como pré-existentes à obra e dotados de uma autonomia extrapoética. Nestes casos, tem-se evidente a mistificação pelo uso passivo e mentiroso da linguagem, considerando-se que a função precípua das linguagens artísticas é a de recriar o mundo e não copiá-lo nas suas aparências.
Por outro lado, a distinção entre fábula e narrativa se encontra plenamente legitimada nos filmes em que os dois planos se dissociam para refutar-se – ou, pelo menos, controlar-se – alternadamente. Pode acontecer, de fato, que no decorrer do filme a mensagem expressa pela fábula seja contrariada pela mensagem expressa pela narrativa. Nesta caso, a narrativa provoca sutilmente a erosão da fábula a ponto, inclusive, de produzir um significado real oposto ou divergente do que se extrairia de uma leitura fílmica limitada exclusivamente aos valores da história – ou da fábula.
Em A laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), de Stanley Kubrick, filme que permaneceu nove anos proibido de exibição no Brasil – justamente por causa da acidez de sua fábula, a ironia da narrativa encarrega-se de neutralizar a violência da fábula. À guisa de ilustração: Alex e seus amigos, rebeldes sem causa, adeptos da ultraviolência, invadem a casa de um famoso escritor, espancando este e sua esposa com requinte de perversidade. Mas enquanto Kubrick mostra a violência do ataque a trilha sonora apresenta a voz de Gene Kelly cantando na chuva. Em outro filme, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, o personagem vivido por Paulo Autran, um político arrivista e demagogo, é visto sob a ótica de várias tomadas (ou planos) enquanto uma voz em off, radiofônica e séria contrasta com o tom de deboche do personagem que ri às gargalhadas. Já em Mouchette (1967), de Robert Bresson, a verdadeira crueldade não reside tanto na matéria da história como no rigor formal que caracteriza o plano do discurso.
Donde se pode concluir: o verdadeiro significado de um filme situa-se, portanto, numa área marginal relativamente ao seu centro aparente. Há que se ter a consciência da distinção narrativa-fábula porque essencial para compreender a poética de um filme. Na filmografia do cineasta Alfred Hitchcock, segundo análise de Eric Rohmer e Claude Chabrol (10), o conteúdo é a forma, o que, a rigor, não se aplica apenas a esse autor de filmes mas a todas as obras de autênticos autores da história do cinema, obras cujo distintivo consiste numa carga de sentido que só se esgota mediante uma leitura em profundidade. É o discurso, nesse sentido, que, nas obras plenas de artisticidade, por assim dizer, escolhe a fábula que lhe pareça mais funcional.
05 . Enfocando o bipolarismo
Na apreciação da obra cinematográfica existe ainda um certo bipolarismo metodológico que não passa de uma reencarnação da antiga oposição entre formalismo e conteudismo – questão bizantina que já se pensara superada mas que está revestida, hoje, de técnicas recognitivas bastante aperfeiçoadas na sua modernidade, tornando esta questão, ainda que bizantina de origem, mais sofisticada.
Os partidários opostos continuam a se defrontar em relação à coisa (leia-se fábula) ou ao como (leia-se narrativa) do discurso fílmico. Cada qual empenhado em reivindicar as qualidades de sua causa contra as mistificações operadas pela adversária. O fato é que tanto a story – considerada, aqui, nas suas implicações fílmicas ou extrafílmicas – como o discurso - considerado, quer no seu valor estético, quer no seu aspecto funcional que assume no filme, e leia-se, aqui, discurso como narrativa, continuam a ser analisados em separado, como se fossem duas realidades independentes entre si, perpetuando-se, com isso, o equívoco segundo o qual a fábula seria a substância da expressão, enquanto a narrativa – ou o discurso – a forma mediante a qual a substância seria esteticamente expressa.
Como sair, então, dessa arapuca teorética na qual se afundam os mais acirrados radicais de um partidarismo que serve somente para espoliar o filme à força? Esse dilema está mais ou menos expresso quando o crítico paulista Paulo Emílio Sales Gomes, apaixonado pelo filme de Jean Renoir A grande ilusão, vê-se na iminência de assumir seu papel de analista: (11)
“O exame crítico é um processo de aproximações sucessivas, implicando num grau de distanciamento cuja redução constante, sem nunca chegar à anulação. O comentário a respeito da La Grande Illusion me obrigaria a inverter o processo e a desencadeá-lo artificialmente. Não se trata, apenas, de uma fita que existe em mim conservada pela memória auditiva, visual e afetiva. Para fixar a natureza dessa identificação é necessário dizer ainda que certamente me sinto dentro da fita muito mais à vontade do que o próprio autor. Este estranho sentimento de fusão é pura vivência e bloqueia o espírito crítico. Procurando exercê-lo, violo e destruo minha intimidade com a fita. Quando escrevo ou falo sobre La Grande Illusion tenho a impressão desagradável de que ambos, a fita e eu, somos outros.”
Esse sentimento do crítico paulista aplica-se, contudo, à chamada crítica impressionista considerada deficiente no plano cientifico, porque destituída de metodologia específica e baseada na impressão do comentarista/crítico, mas que tem a vantagem de não recorrer a esquemas exclusivos, que em vez de abrir, muitas vezes, um caminho no texto fílmico servem frequentemente apenas para o esmagar com certa brutalidade metodológica. A viagem através do universo fílmico, todavia, para que se torne uma descoberta do significado poético da obra cinematográfica, tem de ser feita por meio da distinção entre a narrativa e a fábula, entre o discurso e a história, entre o como e a coisa. Tarefa árdua se se considerar as numerosas sereias espetaculares, psicológicas e sociológicas que povoam o itinerário de procura da tradução do filme em termos lógicos-discursivos do sentido poético que ele exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios, o que incide sobre a sucessiva racionalização e ao caráter de polivalência que caracteriza o filme como sistema orgânico de sinais suscetível de múltiplas leituras, favorecendo, por conseguinte, à pluralidade interpretativa.
Seria possível encontrar um itinerário que caminhe ao abrigo dos citados riscos? Há dois pontos fundamentais na discussão da distinção referida entre narrativa e fábula. O primeiro afirma que, no filme, como em qualquer outra prática escritural, não existe a fábula, mas, apenas, a narrativa, a qual se serve da primeira como mero pretexto narrativo; e o segundo que diz não existir, no filme, outra história para além da que passa inteiramente através das malhas da narrativa estruturada em torno da story.
Trocando em miúdos: para que o filme se possa revelar na sua recôndita alma secreta não é por meio da língua que se deve inquiri-lo, mas, sim, numa língua que não é a da realidade nem a da encenação da realidade, a língua da transformação do filme em figura através dos procedimentos adequados à produção de sentidos inéditos de que a linguagem fílmica dispõe. É na língua do cinema que se deve procurar a sua significação como obra de arte, é no específico fílmico que se tem o ponto de partida para desatar o nó górdio de seu mistério como expressão da arte e do pensamento.
Na ausência desses pensamentos adequados à produção de sentidos de que a linguagem fílmica dispõe, uma transvalorização poética que se plasma na escrita, não há por que falar em formas nem conteúdos, reinando, apenas e absoluto, o vazio da banalidade cotidiana. Se o cineasta não tem a capacidade de transformar o mundo em linguagem – nunca esquecendo de que o cinema tem o poder de transformar o mundo em discurso servindo-se do próprio mundo, está destinado a permanecer uma larva informe e muda, não obstante, a impressão da realidade que emana do cinema e em virtude da qual os filmes podem mentir sem receio dando a impressão de que estão dizendo a verdade.
06. E a máquina fabuladora se instala
Vista a distinção entre o plano da narrativa e o plano da fábula, fundamental para o entendimento da linguagem sem língua que é o cinema, não se pode deixar de reconhecer que a chamada sétima arte, por grande máquina fabuladora, é chamada a desempenhar na atualidade a mesma função mitopoética das canções de gesta da Idade Média e do romance realista do século XIX. O cinema se propõe a satisfazer, à semelhança desses dois gêneros citados, aquela fome de narrativas tão antiga como o homem e que constitui a manifestação mais elementar da sua insuprimível necessidade de imaginário. E o cinema obteve sucesso nesse campo por causa do caráter universal da linguagem fílmica assim como sua irrefutável característica de arte moderna – típica, aliás, do cinema. Arte mediana porque distante, por constituição, tanto da esfera artística cortesã como das práticas de barracão decididamente plebéias. É óbvio que se está a referir ao comportamento usual a que o cinema – que antes mesmo de ser uma arte é uma indústria – se conforma na maior parte dos casos – e os filmes programadas no circuito comercial podem muito bem dar uma idéia desta arte mediana. Assim, os raros pontos altos atingidos pela produção cinematográfica não são, efetivamente, suficientes para modificar o supracitado estatuto, o mesmo acontecendo com os bastante mais frequentes pontos baixos. É o caso de se dizer: um filme, por pior que seja, dificilmente desilude por completo a expectativa de narrativa do espectador, sendo que na origem da popularidade do cinema está, portanto, nada mais do que esta promessa sempre renovada de narratividade, uma promessa cuja manutenção é garantida pelos históricos destinados à tela.
Lida-se, no filme, não com palavras mas com imagens capazes de provocar esta tão falada impressão de realidade, que é, diga-se de passagem, completamente desconhecida nos signos verbais. Assim, na medida em que as imagens, diferentemente do que se passa com os verbos, não se podem conjugar, o único tempo que o cinema tem à sua disposição é o presente. Um presente, observe-se, que é vivido como tal pelo espectador mesmo quando na tela se volta ao passado ou se dão saltos no futuro – conforme já se aludiu. Tais procedimentos apenas se referem, de fato, ao plano da dispositio e em nada alteram o da alocutio, considerando que o que interessa é sempre o onde e não o como da esfera significante. Para não repetir, mas repetindo: o lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada.
Quanto ao espaço fílmico, percebe-se-o globalmente – ao contrário ao espaço do romance cujo objeto de percepção é analítico e setorial. É possível, no cinema, também isolar um aspecto particular e dirigir a atenção exclusivamente sobre ele, recorrendo, para isso, ao grande plano ou, então, à máscaras que isolam um objeto do contexto visual da imagem. Esta possibilidade, contudo, corresponde mais a uma exigência estilística do autor – equivalente ao procedimento verbal conhecido pelo nome de sinédoque, que se caracteriza pelo tropo fundado na relação de compreensão e pelo qual se emprega o todo pela parte, o plural pelo singular, o gênero pela espécie – do que a uma característica ontológica da linguagem fílmica. A categoria do espaço-tempo cinematográfico é, portanto, plenamente autônoma comparativamente à que intervém na narração escrita, salvo no caso, acentue-se, em que o filme se mantenha tributário da obra literária e renuncie, assim, a exprimir-se com a sua linguagem. Ao contrário da linguagem fílmica, o espaço na linguagem dos signos verbais é um lugar puramente abstrato ligado, apenas, à capacidade evocadora das palavras utilizadas e ao grau de sensibilidade linguística que o leitor possui.
O romance filmado é uma utopia. Havendo, como há, duas linguagens autônomas e especificas, como se pode efetuar a transferência da linguagem literária – signos verbais – para a linguagem cinematográfica – signos icônicos? De fato, quando ocorre a adaptação de uma obra literária para o cinema há, apenas, o aproveitamento da fábula, dos personagens, das situações, desaparecendo, com isso, a narrativa, considerando que o que faz o estilo de um escritor é sua capacidade de reger as palavras numa determinada sintaxe, e o estilo de um cineasta está na sua capacidade de manejar os elementos da linguagem fílmica – os planos, os movimentos de câmera, as angulações, a montagem etc.
Por outro lado, alguns cineastas se valem de sub-literatura para, aproveitando a eventual engenhosidade da fábula, transformá-la em filme. Neste caso, a narrativa, se tende para o grau zero a nível de conotação no plano literário, pode se transformar numa narrativa convincente, e plena de poeticidade, no aproveitamento da fábula da sub-literatura. É o que faz, por exemplo, Alfred Hitchcock, cujos filmes, com raras exceções, foram sempre baseados em fábulas da chamada pulp fiction (literatura barata), investindo o cineasta nelas como mero pretexto narrativo, o conteúdo estando sempre a serviço da forma/discurso/narrativa.
Temerário é a adaptação de um monumento da literatura universal. King Vidor empreendeu a conquista de Guerra e Paz para o cinema. Com um resultado desanimador se comparado o filme à obra que lhe deu origem, pois Vidor aproveitou somente os personagens, a intriga e as situações. Em uma palavra: a fábula. A narrativa de Leon Tolstoi foi diluída pela narrativa do cineasta, despersonalizando o fluxo do texto específico e da linguagem do escritor em função de um outro fluxo linguístico.
O cineasta, portanto, ao adaptar uma obra literária empreende uma transferência de linguagem que se poderia situar no terreno da utopia. Em O processo, baseado em Franz Kafka, Orson Welles, com sua narrativa barroca, faz desaparecer a narrativa kafkiana (baseada em signos verbais) em função de uma narrativa wellesiana. Restam, é verdade, a fábula, os personagens, as situações. O filme, entretanto, é mais Welles do que Kafka. Também em Madame Bovary, de Claude Chabrol, apesar deste cineasta não possuir a exuberância estilística de Welles e ter querido uma fidelidade exemplar ao texto literário de Gustave Flaubert, a despersonalização se faz presente, porque em Madame Bovary, o filme, não se localiza o estilo flaubertiano e, pela fidelidade extremada, também se evapora o estilo chabrolniano. Neste caso, duas as despersonalizações: a do escritor e a do cineasta. Há ainda a considerar que o leitor do livro imagina a sua Bovary, existindo tantas Emas quantos os leitores da obra literária. No filme, Ema é Isabelle Huppert.
Em suma: o princípio que rege a adaptação de um romance ou de uma peça teatral ao cinema é absurdo em essência, na medida em que supõe que os valores significados existem independentemente do meio de expressão que os veicula. Se o cinema, a literatura, o teatro, pertencessem a um mesmo sistema de signo (isto é: se possuíssem uma língua ou uma linguagem comum) não haveria problema. Mas os valores mudam quando se passa de um sistema para outro: os mesmo elementos adquirem sentido diverso. Os signos utilizados em um determinado meio de expressão, quando adaptados a outro, não só não possuem o mesmo poder expressivo (significante) como também não agem da mesma forma sobre a consciência do receptor. Sua percepção muda, sua organização mental se processa de modo diferente.
O que é descrito num romance se harmoniza gradualmente: as coisas aparecem pouco a pouco através de frases. No cinema elas são apresentadas imediatamente num ritmo de desenvolvimento radicalmente opostos. O que na literatura é um resultado, no cinema é um ponto de partida. O romance filmado é uma utopia e, quando executado, um non sense. O que se adapta é uma paráfrase da obra original, a sua matéria. O romance perde a sua organicidade e, apenas, tem transportados para a tela personagens e incidentes, livres da linguagem que antes os tornara virtualmente reais.
O fundamental é saber se o filme, como dizia André Bazin, “non pas des histoires mises en scéne mais des oeuvres ecrités avec la caméra et les acteurs”, é bom ou ruim e não mera visualização paraliterária ad usum delfhini – digesto corrompido pelo preconceito culturalista segundo o qual a câmera é um olho com pretensões à caneta.
07. Das estruturas da narrativa
A construção de uma narrativa cinematografia obedece a diversos critérios assim como um projeto arquitetônico corresponde a determinadas opções. Há uma construção narrativa que se pode considerar simples e outra que se desenha como complexa. Dois tipos de estruturas, portanto, mas que se deve ter em conta e ressaltar que a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa. Isto quer dizer: pode haver histórias intrincadíssimas mas de estrutura simples, elementar, e, pelo contrário histórias lineares, com começo, meio e fim e progressão dramática tradicional mas que se tornam intrincadas por uma disposição particular dos segmentos narrativos.
Dentre as narrativas de estruturas simples estão: a linear, a binária e a circular.
1. Narrativa linear. Este tipo de narrativa é percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema que se obedece é aproximadamente o seguinte: a) introdução ambiental; b) apresentação das personagens; c) nascimento do conflito; d) conseqüências do conflito; e) golpe de teatro resolutório. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story), excetuando-se os eventuais casos de erosão dentro do referido esquema – que se constituem uma exceção à regra.
2. Narrativa binária. Este tipo de narrativa é percorrida por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação – thrillers, westerns, etc – porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo, fornecendo, assim, amplas possibilidades de impacto. Exemplo clássico da narrativa binária está em David Wark Griffith (Intolerância, 1916, O lírio partido, 1918, Broken blossoms no original). A linguagem cinematográfica tomou impulso com a descoberta da ação paralela e da inserção de um plano de detalhe no plano de conjunto.
3. Narrativa circular. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: “as mesmas coisas repetem-se”. Em A faca na água (Noz W Wodzie, Polônia, 62), o primeiro longa metragem de Roman Polansky, assim como também em O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, 74) de Luis Buñuel, e Estranho Acidente (Accident, 68), de Joseph Losey, para ficar em três exemplos, as coisas que se observam no início voltam a surgir no final, a despeito das tentativas registradas pela narrativa para se libertar delas e da sua influencia nefasta. A construção das obras citadas obedece e exprime a visão do mundo de seus autores do que, propriamente, à matéria da fábula, que pode se apresentar tranquila e jocosa e destituída de relevância maior.
Dentre as narrativas de estrutura complexa estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.
(a) Narrativa de inserção. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso. A contínua intervenção do flash-back pode provocar um entrelaçamento temporal que esvazia a noção do tempo cronológico em favor do conceito de duração. Por outro lado, as frequentes deslocações espaciais conferem aos lugares uma unidade de caráter psicológico mas não de caráter geográfico. Na narrativa de inserção, a realidade é vista de modo mediatizado, isto é, a realidade é refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. Seguem esta narrativa de inserção filmes como 8 ½ (Otto e mezzo, 64), de Federico Fellini, A guerra acabou (La guerre est finie, 66), Providence, entre outros trabalhos de Alain Resnais, Morangos Silvestres (Smulstronstallet, 57) de Ingmar Bergman, etc. Nestes exemplos, o receptor/espectador é posto diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental: o velho Professor Isaac contempla a própria infância (Bergman), o cineasta Guido (Marcello Mastroianni) no cemitério conversa com seus pais já falecidos (Fellini), a projeção do desejo de um escritor moribundo (John Gielgud) imaginando situações (Resnais). O desenvolvimento puramente mental determina, por sua vez, um jogo de associações visuais e emotivas que cria um universo fictício exclusivamente psicológico.
(b) Narrativa fragmentária. Estrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa. A expectativa de fábulas, no entanto, encontra-se presente no homem desde seus primórdios e o cinema, portanto, desde seu nascedouro possui uma irresistível vocação narrativa. Poder-se-ia, então, ainda que esta irrefreável expectativa do receptor diante de um filme, falar de um cinema-ensaio ao lado de um cinema-narrativo. O exemplo de, novamente Alain Resnais, Meu tio da América (Mon oncle d’Amerique) vem a propósito, assim como Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux ou trois choses que je sais d’elle, 66) de Jean-Luc Godard – um minitratado sobre a reificação que ameaça o homem na sociedade de consumo, La hora de los hornos (68), de Fernando Solanas – obra nascida como ato político que utiliza documentos, entrevistas, cenas documentais e trechos com o objetivo de proporcionar a tomada de consciência revolucionária por parte do espectador.
(c) Narrativa polifônica. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d’oiseau. Utilizando-se desse tipo de narrativa complexa, o cineasta capta de maneira sensível, se capacidade houver, o clima social de uma determinada época, como fez Robert Altman em Nashville (1975). Neste filme, vinte e quatro histórias se entrecruzam para compor um mosaico revelador da realidade dos Estados Unidos durante a década de 70. Outro exemplo do mesmo Altman é Short cuts. (Short cuts, EUA, 91)
As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado, segundo as coordenadas estabelecidas por René Caillois (12). Porque, assim fechadas, estas estruturas servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador. Em Apocalypse now (1978), de Francis Ford Coppola, o cineasta apresenta três finais todos igualmente legítimos e solidários com o contexto narrativo. Já em Dalla nube nulla ressitenza (81), de Jean-Marie Straub, formado por blocos de sequências fixas, a solução final é deixada ao subsequente trabalho de reflexão do espectador/receptor. Trata-se de uma obra que faz uma reflexão, por meio de representações dialogais, sobre a passagem da idade feliz do Mito para a idade infeliz da História.
O caráter aberto da narração, todavia, em nada desfalca a contextualidade orgânica do discurso, contextualidade que se mantém íntegra apesar da suspensão da fábula. A solidariedade estrutural, ressalte-se, constitui a conditio sine qua non de qualquer discurso cinematográfico que pretenda considerar-se artístico.
08. Os lugares narrativos da fábula
Se a narrativa possui as suas estruturas-tipo, a fábula também se apresenta sob a forma de lugares narrativos bem reconhecíveis. As estruturas da narrativa têm a ver com a organização do discurso enquanto que os lugares narrativos da fábula se referem às modalidades em que a história está representada dentro das coordenadas espácio-temporais do texto fílmico. Aparentemente, na multiplicidade das construções narrativas, esconde se apenas um número limitado e repetido de situações dramáticas. À primeira vista, e a grosso modo, pensa-se que todo filme conta uma história diferente. Daí vem a necessidade de se aplacar esta impressão de multiplicidade – uma ilusão! – através de um mecanismo redutor que faça esclarecer os arquétipos do gênero fabulístico. Com maior frequência, quatro são os mais utilizados lugares narrativos na fábula: a viagem, a educação sentimental, a investigação, e o elemento deflagrador.
(1) A viagem. É o topos – configurações que o material narrável adota no plano da dispositio – que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia, de Homero, até On the road, de Jack Kerouac. É também o mais congenial ao cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final. É isso que se vê, por exemplo, em O Sétimo selo (Det sjunde inseglet, 57), de Ingmar Bergman, onde os encontros reveladores efetuados pelo cavaleiro Antonius Block durante a sua viagem de regresso da cruzada levam-no, gradualmente, a descobrir o valor da solidariedade humana e, com isso, a superar a condição de crise que o afeta. Os dois meninos que procuram o pai na Alemanha em Paisagem sob a neblina, do grego Theo Angelopoulos, percorrem, na viagem de busca, estações e, com elas, descobrem o mundo com a presenciação da dor e do sofrimento e da solidão. Do mesmo modo, em O soldado azul (Quando é preciso ser homem/The soldier blue, 71), de Ralph Nelson, a necessidade de atravessar o território índio em companhia de uma mulher branca permite ao protagonista descobrir os valores de uma civilização antes considerada inferior e compreender que os verdadeiros selvagens são, afinal, os soldados do seu regimento enviados para arrasar a aldeia dos peles-vermelhas.
Variante do topos é o motivo da fuga que, sendo semelhante ao precedente, se distingue dele por uma maior funcionalidade crítica. A fuga pode ser devida a razões externas (necessidade de afastar-se de uma situação de perigo ou, então, de perseguir de modo aventuroso aquilo que é proibido pela legalidade) ou a razões interiores de natureza existencial (intolerância de uma dada condição humana e procura de uma vida melhor). Em O viajante (Voyager, 93), de Volker Scholoendorff, o protagonista interpretado por Sam Shepard foge da vida por meio de viagens aéreas tomadas ao acaso, vivendo uma trajetória permeada de aeroportos.
O exemplo bem típico do primeiro caso – fuga devida a razões externas – é o de O fugitivo (I’m a fugitive from a chain gang, 1932), de Mervyn Le Roy, que mostra um inocente que foge e é encarcerado numa prisão e que, fugindo desta novamente, tem de continuar errando pela noite como um perseguido sem nenhuma perspectiva de retorno a uma vida normal. Também em A Louca escapada (The sugarland express, 74), de Steven Speilberg, um casal tem de afrontar as perseguições da polícia para recuperar a criança que lhe foi tirada por infâmia.
No segundo caso – fuga devido a razões internas – insere-se a fuga para um mítico Alasca tentada pelo protagonista inquieto de Five easy pieces (Cada um vive como quer, 1970), de Bob Rafelson, que espera encontrar um modelo de vida alternativa àquele obrigado a seguir e que não considera autêntico. Jack Nicholson é o intérprete que personifica o personagem andarilho em busca de uma identificação bem típica dos anos 60 e corolária do movimento paz e amor.
Existe também, dentro dos assim chamados lugares narrativos da fábula, um outro tipo de fuga chamado de gratuita cuja característica principal está num desejo de afirmação do eu e do desafio às normas sociais. Ainda: a fuga metafísica de causas reais desconhecidas e interpretável como metáfora do destino humano. Na fuga gratuita, o exemplo marcante é encontrado em Corrida contra o destino (Vanishing point, 1970), de Richard Sarafian, uma louca corrida através dos Estados Unidos feita de automóvel pelo personagem, uma fuga que termina pela autodestruição espetacular do homem. Já em No limiar da liberdade (Figures in a landscape, 70), de Joseph Losey, e em Encurralado (Duel, 73), de Steven Spielberg, há, no primeiro, uma fuga planetária – os protagonistas estão envolvidos, sem uma razão visível, e sob a ameaça de um estranho helicóptero numa corrida desenfreada – e, no segundo, uma fuga absurda – um homem foge desesperadamente de um gigantesco caminhão que o persegue pelas estradas.
Há, ainda, outros tipos de fugas como as de Geena Davis e Susan Saradon em Thelma & Louise (idem, 90), de Ridley Scott, ou a empreendida pelo protagonista de Com o passar do tempo (Im lauf der zeit, 76) de Wim Wenders, que, destituído de passado e futuro, percorre a Alemanha exclusivamente imerso na, por assim dizer, dimensão existencial do dasein heideggeriano. Neste caso, a narrativa renuncia a qualquer conotação dramática e limita-se a registrar com um gosto fenomenológico o comportamento do herói seguido nas suas incessantes deslocações espaciais. A fuga, aqui, apresenta a vagabundagem como uma condição normal do protagonista, como resultado de uma opção de vida coerente e consciente. Uma característica, aliás, do cinema wendersiano: Alice nas cidades (Alice in den stadten, 73), Movimento em falso (Falscher bewegung, 75), entre outros.
Um outro lugar narrativo – topos – é o que se pode definir por educação sentimental. Se nos topos da viagem o desenvolvimento narrativo se faz no espaço, tem-se, na educação sentimental, um desenrolar-se no tempo.
(2) A educação sentimental. A tomada de consciência opera-se graças a um itinerário que já não é mais horizontal mas vertical, considerando-se que neste topos se se reporta aos fenômenos psicológicos ligados à passagem de uma idade do homem para outra. O arco de tempo analisado pode ser mais ou menos longo consoante a quantidade e a qualidade das experiências narradas pela fábula. Além disso, a educação dos sentimentos pode ser apresentada segundo o seu desenvolvimento real ou, então, ser objeto de reinvocação por parte de quem a protagonizou. Em ambos os casos é contemplada pelo autor numa perspectiva mais ou menos autobiográfica, com a diferença de que, enquanto na primeira hipótese – a do seu desenvolvimento real – há uma pretensa objetividade que tende a fazer desaparecer esta característica autobiográfica, na segunda, a identificação entre o cineasta/autor e o protagonista da ação fica a descoberto. Em Os incompreendidos (Les quatre-cents coups, 59), de François Truffaut, existe uma melancolia eivada de um sentimento patente de nostalgia pela idade das ilusões anterior ao princípio do realismo ligado à dimensão adulta, qualquer que seja o período da vida em que tal princípio se afirma. Já em O mensageiro (The go-between, 71), de Joseph Losey, a reinvocação da passagem traumática do mundo das ilusões para o da realidade é confiada ao protagonista direto dessa dolorosa transição.
Este topos – arquétipo no qual se assentam muitos filmes – tem sua origem em Gustave Flaubert. Na primeira versão de A educação sentimental (1845), ainda sob o impacto da experiência amorosa que tivera na adolescência, o jovem Flaubert confere um desenlace feliz à sua paixão, acreditando ainda que, para conquistar a felicidade, bastaria desejá-la com toda a força. Anos mais tarde, ao redigir a segunda versão da obra (1869), já na idade da razão, reconhece o engano de sua mocidade e inicia o livro com uma saudosa evocação de Elisa Schlesinger (a Sra. Arnoux do romance), lembrando, com ternura, até os pormenores de seu vestuário para finalizar com a melancólica despedida de Frédéric Moreau (nome que atribui a si próprio no enredo) à amada impossível.
(3) A investigação. Baseia-se na reconstrução a posteriori de um acontecimento obscuro sobre o qual há que fazer luz. Os instrumentos utilizados podem ser os clássicos da investigação policial ou os mais recentes do inquérito jornalístico ou, se se quiser, cinematográficos. O móbil comum revelador é apreendido por meio de fragmentos soltos que, organizados, propõem o denominador comum. A fábula apresenta-se, aqui, como o lugar da desordem que tende a encontrar a sua explicação unitária para além da aparente casualidade dos acontecimentos descritos. É ao esquema do inquérito policial que obedecem filmes como A marca da maldade (Touch of evil, 58), de Orson Welles e A Besta deve morrer (Que la bête meure, 70), de Claude Chabrol. No filme de Welles, a procura do assassino está animada por um sentimento de legalidade oficial: numa cidade de fronteiras entre os Estados Unidos e o México, instaura-se uma rivalidade entre dois policiais, o americano Quinlan (Welles) e o Vargas (Charlton Heston) num caso de drogas e crimes. No filme de Chabrol, a procura do assassino é movida por um desejo de vingança privada. Inspirados no inquérito jornalístico e no filmado se encontram, respectivamente, O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 61), de Francesco Rosi e o Homem de mármore (Czlowiek z marmur, 79), de Andrzej Wajda, o primeiro procurando fazer luz sobre a morte do bandido siciliano, enquanto o outro se preocupa na reconstituição da verdadeira história de um “herói do trabalho” do período stalinista desaparecido imprevistamente das crônicas do regime. Ainda há um derradeiro lugar narrativo da fábula: aquele a que se recorre com maior frequência a ponto de não ser quase percebido como tal. O esquema em que o Bem e o Mal são eternamente contrapostos numa estrutura narrativa o mais elementar possível. Tal conflito, na realidade, para além de poder assumir um dos aspectos exteriores até aqui examinados, também pode ser representado de modo linear e segundo uma progressão dramática facilmente previsível pelo espectador. Em tal caso, o bom pode vestir as roupas de uma personagem histórica que tenha realmente existido como Aleksandr Nevsky no filme homônimo (Aleksandr Nevsky, 38), de Serguei Eisenstein, ou ser personificado por um herói lendário como Shane (Os Brutos também amam/Shane, 53), de George Stevens. Em ambas as circunstâncias, os códigos fílmicos procuram exaltar a figura empenhada na benemérita tarefa de destruir o Mal nas suas repetidas encarnações históricas e meta-históricas: a música, os fatos e até a cor fazem uma simpática apologia ao herói e, em contrapartida, exprimem toda a sua reprovação pelo malvado mau.
(4) O elemento deflagrador. Talvez não se possa definir o elemento deflagrador como um lugar narrativo da fábula mas é uma constante e uma presença marcante nos arquétipos da narrativa. Trata-se do elemento que vem de longe e deflagra, com sua aparição, um processo de transformação no meio social no qual se intromete. A chegada de Shane, cavaleiro misterioso, cujo passado é desconhecido, provoca uma metamorfose na localidade, revelando para os seus habitantes e, principalmente, para o menino Joe, sua mãe e seu pai, a família na qual Shane pousa por um tempo, uma força estranha e poderosa capaz de mudar o statu quo.
O anjo de Teorema (idem, 67), de Pier Paolo Pasolini, também é, na fábula, um elemento deflagrador da transformação de uma família burguesa italiana que, depois de sua misteriosa aparição, toma rumos inesperados após o contato sexual do anjo com todos os familiares e inclusive a empregada: o pai, desesperado, doa a fábrica aos operários; a mãe, ensandecida, procura, como prostituta em desespero, homens pela rua; o filho se torna um pintor abstrato; a filha entra em estado catatônico, e, por fim, a empregada, saindo da casa onde trabalha, volta às origens numa localidade interiorana onde levita, ascendendo ao céu e transformada em santa.
O elemento deflagrador é um arquétipo do qual se valem muitos filmes. Em Férias de amor (Picnic, 54), de Joshua Logan, o personagem interpretado por William Holden, um forasteiro, um estranho, chega a um vilarejo interiorano dos Estados Unidos e provoca, no dia da Festa do Trabalho, quando tem lugar um piquenique, um verdadeiro cataclisma. É a força que vem de fora e causa transtornos na aparente tranquilidade de uma sociedade onde os preconceitos, recônditos, eclodem à menor faísca.
fabulístico reduzem a maioria a um número limitado.
09. A ótica narrativa
O ponto de vista adotado pela narrativa fílmica é sempre – e simultaneamente – objetivo e subjetivo, nunca redutível a uma única perspectiva por causa da dupla e concomitante ação realista e irrealista do cinema. O que não exclui, em todo caso, a hipótese de a narrativa abraçar uma ótica em detrimento de outra em relação ao desenvolvimento global da narração. Um filme, portanto, nunca pode narrar um acontecimento inteiramente visto de dentro – a coisa que o romance pode fazer, mas tem a necessidade de recorrer a um ângulo de observação que permita unificar a matéria representada a fim de não gerar confusões de perspectiva. No filme-ensaio (vide Meu tio da América/Mon oncle d’Amerique, 1979), de Alain Resnais, esta ótica se identifica com a do autor que seleciona e ajuíza. No filme de ficção, esta ótica segue o olhar de um dos protagonistas, procurando, no entanto, não se confundir completamente com ele. A perspectiva da câmera é diferente da do olho humano e, como demonstram inúmeros filmes, a lente pode ocupar o olhar de um gato (Um dia, um gato, filme tcheco no qual, em alguns momentos, tem-se a perspectiva do olhar do gato que vê as pessoas de uma localidade segundo o seu caráter, dando-lhes as cores correspondentes). O objeto focalizado também pode ser totalmente deformado – e, nesse particular, o expressionismo alemão é farto de exemplos – O Gabinete do Dr. Caligari, 1919, de Robert Wiene, Nosferatu, o vampiro, 1922, de Friedrich Murnau, etc. Em Cidadão Kane, 1941, de Orson Welles, filme com forte influência expressionista, o cineasta usa tetos baixos para dar uma dimensão insólita aos personagens e, na sequência do palácio de Xanadu, Susan Alexander, a mulher de Kane, é vista em pequena silhueta diante de uma gigantesca lareira. Dentro da mesma obra, um jogo tipo quebra-cabeça – um puzzle que, no final das contas, é a própria chave para a compreensão da obra – tem suas peças em dimensão enorme. Welles, nestes casos, deforma os objetos com a lente com um propósito estético contextual.
Henri Angel (13), ensaísta francês, acha que o ponto de vista de um filme deve ser sempre o que é adotado pelo cineasta, quer este decida ver o mundo através dos olhos de um dos protagonistas, quer decida manter-se o mais possível exterior à ação narrada. Um caso de identificação autor-personagem é representado por O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), de Antonioni, onde a realidade é vista pela câmera não como efetivamente é mas como se apresenta aos olhos do protagonista.
Outro caso de identificação autor-personagem está representado em Repulsa ao sexo (Repulsion, 65), de Roman Polansky, onde os pesadelos da protagonista (Catherine Deneuve), apresentados como objetivos, não são mais que o fruto da personagem psicopata, uma manicure sexualmente reprimida que se isola em seu apartamento e vai enlouquecendo.
No polo oposto situam-se, pela sua objetividade extrema, filmes como Nashville, de Altman, uma crônica de cinco dias da vida de uma cidade no Tennessee, Nashville, na hora do show business e de uma campanha eleitoral que serve como um testemunho à beira do desespero sobre os Estados Unidos contemporâneos. Também Lancelot, de Robert Bresson, e Nicht Versohnt, 65, de Jean-Marie Straub, obras centradas numa radical objetividade e construídas de modo a esvaziar qualquer identificação personagem-espectador e, também, redutíveis ao ponto de vista exclusivo do realizador onisciente.
Existem também filmes nos quais os pontos de vista são contraditórios ou contrastantes entre si. Rashomon, 1950, de Akira Kurosawa, filme que projetou o cinema japonês no mercado internacional, é um exemplo bem marcante. A fábula se passa no século XV numa floresta perto de Tóquio, quando um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher, porém, diz que foi ela quem matou seu próprio marido. Surge, então, a alma do morto que conta a todos, estupefatos, como se suicidou. Mas um açougueiro que a tudo ouvia, dá uma quarta versão. Em Rashomon, portanto, são fornecidos três pontos de vista diferentes do mesmo fato, todos igualmente espectáveis, até emergir deles um quarto que é o verdadeiro.
Há o caso de a ação ser contada por um morto que relata do além a sua história trágica – não existem nem realizador oculto nem personagem visível. É o que acontece em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, no qual o encenador protagonista conta da sua situação de defunto, o como e porque de sua morte devida à atriz famosa da qual tinha sido hóspede. A ex-estrela é Glória Swanson que, vivendo esquecida num suntuoso palácio antiquado de Hollywood, acompanhada de seu fiel criado (Erich von Stroheim), contrata um roteirista fracassado que se torna seu amante e que ela mata quando ele se recusa a continuar a relação.
10. Das obras não narrativas e meta-narrativas
A presença da fábula é verdadeiramente indispensável à narrativa fílmica? O enredo, a story, a fábula, funcionam, habitualmente, como elemento motor das aventuras da linguagem – e a maioria dos espectadores/receptores apenas procuram no cinema a intriga. Há casos, entretanto, nos quais as aventuras da linguagem podem desenrolar-se na tela sem necessidade de uma fábula, de uma story, que lhe sirvam de pretexto. Existem, pois, obras de fantasia em que a presença da fábula se apresenta reduzida à expressão mínima, sendo o desenvolvimento dramático, nelas, quase nulo, consistindo a matéria tratada num único tema relativo ao infinito com variações quase imperceptíveis. Obras nas quais, na verdade, “nada se passa, não acontece nada”, não obstante as imagens se sucedam de um extremo a outro de uma ação inexistente.
O exemplo está em A ilha nua (Hadaka no shima , 6l), filme japonês de Kaneto Shingo, ou em Glissements Progressifs du Plaisir, l973, de Alain Robbe-Grillet, ambos baseados na repetição obsessiva de um único motivo sujeito a sutis mutações relativas ao ritmo temporal ou ao aspecto figurativo – mas não seguramente ao conteúdo da história. Nestes filmes, vale ressaltar, a narração existe e se comporta de modo enleante, contemplando não a fábula mas a própria narrativa. A narrativa, aqui, se contempla a si própria, isto é: contempla exclusivamente o desenvolvimento do discurso cinematográfico em detrimento do desenvolvimento da fábula – que quase não se presentifica .
É interessante observar que uma história sem narrativa – uma fábula sem narrativa – pode resultar entediante e vazia de autênticos golpes resolutórios no clímax ainda que a agitação frenética dos intérpretes, ao passo que uma narrativa sem fábula – ou sem história – pode ser rica de ação. A alternância de diversos enquadramentos na tela cria por si só uma expectativa de narrativa, qualquer que seja a matéria da fábula. Os cineastas que trabalham nas fitas publicitárias muito bem conhecem o princípio, pois hábeis em humanizar objetos quotidianos e em torná-los protagonistas de emocionantes aventuras.
O que acontece se uma narração fílmica tiver por objeto não uma história passada na realidade mas uma história narrada pelo cinema? É a metalinguagem: um filme que fala de outro filme. Cinema metanarrativo, portanto e, neste caso, faz-se necessária atenção para distinguir a narrativa relativa ao filme a que se está a assistir da narrativa relativa ao filme contado pelo primeiro. Trata-se, aqui, de uma espécie, por assim dizer, de narração ao quadrado, procurando não confundir nela o que é ficção do primeiro grau e o que é ficção do segundo grau.
Esta narrativa ao quadrado ocorre em filmes nos quais falam de um cineasta que, através da obra que está a filmar, pretende contar uma outra coisa. O exemplo mais significativo é o de Oito e meio (Otto e mezzo), de Fellini, e, também A Noite americana (La nuit americaine, 75), de François Truffaut, ou ainda Memórias (Stardust memories, 80), de Woody Allen, ou mais ainda, A mulher do tenente francês (The french lieutnant woman, 81), de Karel Reisz.
Em Otto e mezzo, um cineasta estafado revê a sua infância, encontra a amante, a esposa e uma criatura ideal, enquanto se preocupa com a realização de um filme. Em Stardust memories, Woody Allen repete Fellini, preocupado, num filme metalinguístico, com seus fantasmas interiores na tentativa de exorcizá-los.
11. O filme e sua aura
Segundo Walter da Silveira, ensaísta de cinema baiano, (14), “Arte narrativa, o filme se origina e termina no tema em decurso: ao contrário das artes plásticas, em que se parte do geral para o particular, no cinema é deste que se parte para aquele. Nenhum fotograma dá uma idéia longínqua, embora, do todo fílmico. E, ainda que nos livros se reproduzissem todas as sequências, continuaríamos a ignorar o filme, porque não teríamos o fundamento do cinema: a sucessão rítmica das imagens, o movimento coordenado que se baseia na montagem.”
A distinção entre narrativa e fábula é a chave da compreensão do cinema e o ingresso para se entrar na sua especificidade, na sua linguagem. O objetivo da dissertação é, exposto este esboço teórico, encontrar na análise do discurso cinematográfico de A grande feira, filme baiano de Roberto Pires/Rex Schindler, até onde os dois planos – o da narrativa e o da fábula – se controlam alternadamente, servindo-se, para isso, de alguns instrumentos retirados da semiologia na esperança de compreender o segredo nele oculto por meio da desmontagem e da reconstituição da estrutura fílmica. A análise se empenha no sentido de fazer luz sobre a lógica combinatória que regula as relações entre as unidades singulares significantes do discurso de A G rande Feira. Considerando a narrativa observada sob a forma de uma máquina que produz sentido somente mediante o recurso a uma série de procedimentos cujo domínio é exclusivamente limitado ao universo da linguagem utilizada.
Apesar de Walter Benjamin (15) ter afirmado que na época das técnicas de reprodução o que é atingido na obra de arte é a sua aura pela liquidação do elemento tradicional dentro da herança cultural, não se pode deixar de sentir uma espécie de aura no cinema. Arte coletiva por excelência, o cinema, mais do que qualquer outra forma de comunicação, dirige-se à pessoa singular numa relação privada que não tolera intromissão, como acentua E. H. Gombrich (16). Um espetáculo teatral também pode tirar partido das luzes acesas da sala, mas um filme só pode ser seriamente prejudicado por isso. E é compreensível: vai-se ao cinema para ver sem ser visto, ao contrário do que acontece no teatro, onde é importante estar frente a frente com os atores enquanto se desenrola o ritual cênico. Os bastidores do palco delimitam o espaço dramático, lugar mágico da ação teatral, denunciando o seu caráter convencional. As margens do enquadramento, pelo contrário, prolongam-se para o espaço circundante, sugerindo a sua presença invisível. Menos perceptível é a realidade física da sala, sendo maiores as possibilidades de o filme nos arrastar consigo para a tela. A diversidade de condições necessárias para que os dois rituais se cumpram, no dizer de J. M. Company (17), leva a uma consequência paradoxal relativa ao modo de fruir um e outro. A representação teatral, irrepetível, por definição, pode, na realidade, ser objeto de réplica em condições ambientais não exatamente idênticas às existentes da primeira vez e isto sem que o espetáculo resulte desnaturado. A representação fílmica, também por definição duplicável até o infinito, necessita de condições ótimas do ponto de vista técnico sempre que for repetida.
Observa com propriedade Irvin Rock (18) que o espetáculo teatral pode ser visto mais de uma vez, não sendo por certo o como acaba o elemento que desperta maior curiosidade. Mas um filme exerce toda a sua carga somente da primeira vez, salvo casos em que se sinta necessidade de revê-lo para esclarecer melhor o discurso. Isto significa que, enquanto o teatro – arte, não se esqueça, mais aristocrática do que o cinema – suporta melhor um tipo de fruição popular, o cinema, que é mais popular do que o teatro, exige, pelo contrário, ser fruído em condições mais aristocráticas. No teatro, os atores podem interromper uma récita para voltar a retomá-la mudando de registro ou modificando os tempos inicialmente previstos. Os atores de um filme continuam a seguir o seu destino narrativo mesmo se a sala estiver vazia e o operador ou projecionista a passar pelas brasas, desde que na sala continue, porém, a reinar a obscuridade silenciosa. O acender das luzes esvaziaria a sua presença, transformando-os em simples manchas desbotadas sobressaindo de um telão branco.
Sala às escuras, ausência de interferências sonoras, isolamento psicológico dos demais. Só se se desfrutar destas condições é que o filme pode revelar o seu segredo. Caso contrário, perde qualquer coisa de precioso e exclusivo. Não a palavra, pois bastaria que erguesse a voz para continuar a ouvi-la. Perde a sua aura, isto é, perde aquela auréola fascinadora graças à qual pode transportar o espectador para qualquer outro mundo cuja promessa o levou a entrar na sala exibidora. Mas quem se ressente da perda da aura? Não é, certamente, o plano da fábula, pois este pode, inclusive, ser seguido de modo intermitente ou, até mesmo substituído por sua versão resumida que lhe antecipe os aspectos mais salientes do conteúdo. Quem perde a aura é o plano da narrativa, a qual, como resultado de uma eventual dispersão de energia semântica, como coloca bem Santos Zunzunegui (19), de vida a uma visão incorreta do texto fílmico, acabaria por ficar não apenas seriamente diminuída mas também completamente dissolvida nos seus valores linguísticos originais. Assistir, por exemplo, a uma projeção de Deserto rosso em preto-e-branco em vez do colorido original, ou com as lâmpadas quase gastas, não significa ver o filme mal, mas não o ver de todo. Ver-se-á, quando muito, um filme completamente diferente que tem apenas a fábula em comum com o primeiro.
Existem cineastas que cuidam pessoalmente – quando das sessões especiais – de cada projeção e isso, diga-se, não deve ser confundido com uma manifestação de perfeccionismo exacerbado. Alain Robbe-Grillet, cineasta e escritor, um dos pais do nouveau-roman, estando em Salvador em l977, fez questão de visitar a cabine de projeção onde iria ser exibido O Ano passado em Marienbad , de Alain Resnais, filme do qual foi o roteirista e se pode dizer co-autor. Estes cineastas são ciosos da aura que envolve a obra e temem a sua dispersão motivadas pelas causas anteriormente referidas. É na mesma ordem de idéias que se pode compreender a recusa daqueles que não admitem ver filmes na televisão. Claro que, no vídeo, a fábula também pode sobreviver às mil interferências devidas ao ambiente quotidiano em que se dá a fruição. Federico Fellini, por exemplo, sempre ficou horrorizado ao ver suas fitas projetadas no pequeno écran da tv, apelando, inclusive, a processos judiciais.
Se a fábula, apesar de tudo, se conserva, é, por outro lado, o plano do discurso – ou se se quiser da narrativa –que é prejudicado, maltratado e esvaziado pelo conjunto das práticas que regulam a fruição televisiva, práticas que, por definição, são inimigas de qualquer intercâmbio ou identificação. Acomodados em frente à tv, talvez com a luz acesa e a mesa posta, não se pode estar preparado para ver um filme, ao contrário do que aconteceria numa sala de cinema, mas, para ver o aparelho de televisão em cujo visor irá passar um filme. Que passará, como diz Michel Chion (20), para morrer por suas próprias mãos ou, na melhor das hipóteses, para ser acompanhado distraidamente e quase por obrigação até ao seu ansiado fim. E isto sem contar com a possibilidade de ser abandonado a meio do percurso em favor de um seu concorrente em exibição no canal vizinho.
Assim, a cumplicidade a que a sala de cinema convida o espectador é frustrada pelo televisor. Perante ele, o filme se desenrola, vê-se os familiares enquanto, também, o filme. A observação passa de proibida a caseira. O telecomando fragmenta o discurso e afugenta a sua aura relativa. A narração atinge as raias da loucura e o delírio audiovisual inunda o vídeo despedaçando implacavelmente qualquer resistência do sentir.
12. A verdade do filme
Desde os tempos da Poética de Aristóteles, a matéria da arte não deve ser o verdadeiro mais o verossímil. Esta, uma questão muito importante, pois o objeto da representação artística não deve ser aquilo que aconteceu, mas, sim, aquilo que poderá acontecer. O que pode acontecer, diga-se, na condição de se verificarem algumas condições particulares que o cineasta deverá ter o cuidado de expor antes de dar início à ação por ele imaginada. Assim, tem-se que somente a hipótese de partida é fruto de invenção. Todo o resto, depois desta definida, será aceito como perfeitamente crível, qualquer que seja a matéria da fábula e a sua adesão à realidade cotidiana. O importante, aqui, e ressalte-se isso, é que a narração, o discurso cinematográfico, seja coerente com as premissas e desenvolva com rigor as consequências nelas implícitas, sob pena de resultar forçada e com incongruências fatais para a legitimação da obra em sentido realista.
Obra de ficção que se inspira no verossímil, o filme serve-se da mesma reserva de material narrável que o romance, sem que se ponha, novamente aqui, o problema de aquilo que pretende narrar-se ter ou não acontecido verdadeiramente a alguém em qualquer lugar numa determinada época histórica. O filme procura corresponder às exigências da mitografia do que da historiografia, dizendo, basicamente o seguinte: “Se um dia se verificassem estas condições particulares, só poderia acontecer o que se verá dentro em pouco”. E não como alguns fazem supor: “Em tal ano, aconteceu neste país aquilo que se verá dentro em pouco.” Mitografia, portanto, e não historiografia, já que o filme é uma linguagem artística que reconstrói o mundo servindo-se do próprio mundo ao contrário da literatura que reconstrói o mundo servindo-se de signos arbitrários, ou da pintura – que se serve de signos semelhantes.
Mas, se se aceita que o cinema corresponde às exigências da historiografia, os sucessivos desenvolvimentos não têm dificuldade em fazer-se passar por críveis. É importante salientar, tomando-se o exemplo de Francis Vanoye (21), que o que importa numa narração fílmica mas também literária está nos comportamentos possíveis dos personagens, nas ações críveis destes, advindo, daí, um poder de desenvolvimento para os protagonistas, não importando se os fatos são possíveis mas, isto sim, que os comportamentos o sejam. O motivo de um filme – já se disse – não passa de um pretexto que serve para por a máquina da narrativa em movimento e dar início à aventura – não tanto dos heróis como da própria linguagem e das figuras. Assim, pode-se dizer, que o impossível se torne crível, ao contrário de uma narrativa que não funcione, a qual torna incrível inclusive aquilo que, de fato, é possível.
A única verdade que um filme deve respeitar é esta: a verdade relativa à esfera do acontecível e não do acontecido. O sentido de uma fita está incorporado a seu ritmo, assim como o sentido de um gesto vem, nele, imediatamente legível. O filme não deseja exprimir nada além do que ele próprio.
NOTAS
(1) Sobre esta condensação expressiva o teórico húngaro baseia toda uma construção teórica a respeito em seu livro El Film – Evolución y esencia de un arte nuevo. Ediciones Losange. Buenos Aires. Este teórico húngaro se chama Béla Balázs. O exemplar em espanhol, impresso na Argentina em 1957, é uma tradução do original alemão Der Film.
(2) A diversidade da imagem fílmica – no que esta tem a ver com a realidade – é muito bem esclarecida em As principais teorias do cinema – uma introdução, de J. Dudley Andrew. Jorge Zahar editor, Rio, 1989, principalmente a partir da página 111 quando se fala das teorias realistas do cinema. O livro é uma tradução do original americano The Major Film Theories.
(3) A impressão de realidade é uma constante na teoria cinematográfica de Christian Metz. Para bem compreendê-la, necessária se torna a leitura de A significação no cinema, obra editada pela perspectiva em 1972 – uma tradução do original francês Essais sur la signification au cinéma.
(4) Sobre o realismo ontológico é fundamental o ensaio de André Bazin Ontologia da imagem fotográfica, que saiu publicado em A experiência do cinema, um livro de ensaios teóricos dos principais pensadores da sétima arte publicado em convênio pela Graal e Embrafilme, uma antologia cuja publicação se deu em 1983. O ensaio de Bazin está na página 122 – e seguintes.
(5) A eficácia de uma ação era uma preocupação constante em Vsevolod Pudovkin como bem explica em Argumento e realização, publicado em Lisboa, editado pela Arcádia em 1961, com tradução, prefácio e notas de Manuel Ruas, que traduziu da edição alemã.
(6) Também em relação a esta questão linguística o filósofo Gilles Deleuze em Cinema – a imagem-movimento, da Brasiliense (1985) coloca questões pertinentes e esclarecedoras.
(7) Diferenciar linguagem cinematográfica e língua é uma constante nos estudos teóricos da atualidade em torno da problemática da linguagem fílmica. Jaques Aumont em A imagem confere o status necessário a este problema, dignificando-o como um debate superior da arte. Papirus Editora. 1995. Ofício de Arte e Forma.
(8) Livro chave para a compreensão da escritura fílmica é A linguagem cinematográfica (La language cinematographique), de Marcel Martin, publicado pela Brasiliense em 1990, mas que, também, tem tradução brasileira pioneira em 1963 pela editora Itatiaia de Belo Horizonte sob a responsabilidade de Flávio Pinto Vieira. Mas o livro da Brasiliense é uma tradução de edição revista e ampliada por Martin em 1985.
(9) Sem tradução para o português mas de grande valia para o estudo da narratividade no cinema é Storia e discorso (pág. 89), de Seymour Chatman, editado pela Pretiche, Parma, em 1981.
(10) Obra indispensável para o conhecimento do universo de Alfred Hitchcock, de Eric Rohmer e Claude Chabrol, é, hoje, um clássico da literatura cinematográfica. Editado pela Universitaires, em 1957, Paris.
(11) Paulo Emílio Sales Gomes: Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1981. Volume 1. Em colaboração com a Embrafilme.
(12) Citado por Gian Piero Brunetta em Litteratura e Cinema (Zanichelli, Bolonha, 1976), principalmente quando se refere às influências exercidas pela narrativa fílmica sobre o romance moderno.
(13) Ver o capítulo II (Os equívocos do realismo) incluso no livro Estética do cinema, de Henri Agel, versão brasileira de Esthétique du cinema, que a Cultrix, de São Paulo, em 1982, lançou em português para preencher uma grande lacuna sobre o assunto na língua pátria.
(14) Crítica e contracrítica que faz parte do livro Fronteiras do cinema, de Walter da Silveira (Tempo Brasileiro, Coleção Tempo Novo, 1966).
(15) Sobre A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, de Walter Benjamim (pág 55 e seguintes), ensaio publicado em A idéia do cinema, uma antologia com tradução e prefácio de José Lino Grunewald publicada pela Civilização Brasileira em 1969.
(16) Gombrich fala isso num artigo que escreveu para a revista italiana Bianco Nero, nº 76.
(17) A diversidade e os modos de fruir remetem para uma citação de Deleuze sobre Company em Cinema Imagem-movimento. Ver bibliografia final
(18) Sobre as diferenças do espetáculo teatral e o espetáculo cinematográfico, grafado por Irvin Rock, ver especialmente a pág 151 de A direção cinematográfica (Martins Fontes, s/dat), de Terence Marner
(19) A visão incorreta de um texto fílmico é uma recorrência frequente na elaboração teórica de Santos Zunzunegui. Ver Teorias do cinema (pág. 167 e seguintes), de Andrew Tudow editado pela Martins Fontes dentro da coleção Arte & Comunicação.
(20) Michel Chion é citado por Barthélemy Amengual num ensaio de Chaves do Cinema (Civilização Brasileira, 1973): aquele que fala do “rumo da especificidade” entre as páginas 86 e 91.
(21) Ensaio sobre a análise fílmica, de Francis Vanoye e Anne Goliot-Leté, da Papirus Editora, é um dos poucos livros existentes sobre a problemática da narrativa no cinema e, principalmente, um que, didaticamente, ensina como se analisar um filme.
(2) A diversidade da imagem fílmica – no que esta tem a ver com a realidade – é muito bem esclarecida em As principais teorias do cinema – uma introdução, de J. Dudley Andrew. Jorge Zahar editor, Rio, 1989, principalmente a partir da página 111 quando se fala das teorias realistas do cinema. O livro é uma tradução do original americano The Major Film Theories.
(3) A impressão de realidade é uma constante na teoria cinematográfica de Christian Metz. Para bem compreendê-la, necessária se torna a leitura de A significação no cinema, obra editada pela perspectiva em 1972 – uma tradução do original francês Essais sur la signification au cinéma.
(4) Sobre o realismo ontológico é fundamental o ensaio de André Bazin Ontologia da imagem fotográfica, que saiu publicado em A experiência do cinema, um livro de ensaios teóricos dos principais pensadores da sétima arte publicado em convênio pela Graal e Embrafilme, uma antologia cuja publicação se deu em 1983. O ensaio de Bazin está na página 122 – e seguintes.
(5) A eficácia de uma ação era uma preocupação constante em Vsevolod Pudovkin como bem explica em Argumento e realização, publicado em Lisboa, editado pela Arcádia em 1961, com tradução, prefácio e notas de Manuel Ruas, que traduziu da edição alemã.
(6) Também em relação a esta questão linguística o filósofo Gilles Deleuze em Cinema – a imagem-movimento, da Brasiliense (1985) coloca questões pertinentes e esclarecedoras.
(7) Diferenciar linguagem cinematográfica e língua é uma constante nos estudos teóricos da atualidade em torno da problemática da linguagem fílmica. Jaques Aumont em A imagem confere o status necessário a este problema, dignificando-o como um debate superior da arte. Papirus Editora. 1995. Ofício de Arte e Forma.
(8) Livro chave para a compreensão da escritura fílmica é A linguagem cinematográfica (La language cinematographique), de Marcel Martin, publicado pela Brasiliense em 1990, mas que, também, tem tradução brasileira pioneira em 1963 pela editora Itatiaia de Belo Horizonte sob a responsabilidade de Flávio Pinto Vieira. Mas o livro da Brasiliense é uma tradução de edição revista e ampliada por Martin em 1985.
(9) Sem tradução para o português mas de grande valia para o estudo da narratividade no cinema é Storia e discorso (pág. 89), de Seymour Chatman, editado pela Pretiche, Parma, em 1981.
(10) Obra indispensável para o conhecimento do universo de Alfred Hitchcock, de Eric Rohmer e Claude Chabrol, é, hoje, um clássico da literatura cinematográfica. Editado pela Universitaires, em 1957, Paris.
(11) Paulo Emílio Sales Gomes: Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1981. Volume 1. Em colaboração com a Embrafilme.
(12) Citado por Gian Piero Brunetta em Litteratura e Cinema (Zanichelli, Bolonha, 1976), principalmente quando se refere às influências exercidas pela narrativa fílmica sobre o romance moderno.
(13) Ver o capítulo II (Os equívocos do realismo) incluso no livro Estética do cinema, de Henri Agel, versão brasileira de Esthétique du cinema, que a Cultrix, de São Paulo, em 1982, lançou em português para preencher uma grande lacuna sobre o assunto na língua pátria.
(14) Crítica e contracrítica que faz parte do livro Fronteiras do cinema, de Walter da Silveira (Tempo Brasileiro, Coleção Tempo Novo, 1966).
(15) Sobre A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, de Walter Benjamim (pág 55 e seguintes), ensaio publicado em A idéia do cinema, uma antologia com tradução e prefácio de José Lino Grunewald publicada pela Civilização Brasileira em 1969.
(16) Gombrich fala isso num artigo que escreveu para a revista italiana Bianco Nero, nº 76.
(17) A diversidade e os modos de fruir remetem para uma citação de Deleuze sobre Company em Cinema Imagem-movimento. Ver bibliografia final
(18) Sobre as diferenças do espetáculo teatral e o espetáculo cinematográfico, grafado por Irvin Rock, ver especialmente a pág 151 de A direção cinematográfica (Martins Fontes, s/dat), de Terence Marner
(19) A visão incorreta de um texto fílmico é uma recorrência frequente na elaboração teórica de Santos Zunzunegui. Ver Teorias do cinema (pág. 167 e seguintes), de Andrew Tudow editado pela Martins Fontes dentro da coleção Arte & Comunicação.
(20) Michel Chion é citado por Barthélemy Amengual num ensaio de Chaves do Cinema (Civilização Brasileira, 1973): aquele que fala do “rumo da especificidade” entre as páginas 86 e 91.
(21) Ensaio sobre a análise fílmica, de Francis Vanoye e Anne Goliot-Leté, da Papirus Editora, é um dos poucos livros existentes sobre a problemática da narrativa no cinema e, principalmente, um que, didaticamente, ensina como se analisar um filme.
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