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04 abril 2009

O filme proibido de Glauber Rocha

Di Cavalcanti (1977), de Glauber Rocha, também chamado Di Glauber, curta premiado em Cannes com a Palma de Ouro, tem também outro título, extenso demais: Ninguém assistiu ao formidável enterro de sua última quimera, somente a ingradidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável. Glauber adentrou o velório do grande pintor Di Cavalcanti, insistiu que a câmera de Mário Carneiro desse um passeio sobre o seu corpo defunto no caixão e, de repente, gritou: "Close nele, Mário!" A família, indignada, abriu processo e o filme se encontra proibido até hoje. Mas pode ser visto no You Tube e aqui neste blog.
Em duas partes. Primeira e segunda por causa da limitação do tempo de duração do You Tube.



01 abril 2009

A máscara da morte branca



Que obra-prima é Os olhos sem rosto (Les yeux sans visage, 1959), de Georges Franju, um dos maiores cineastas da França, apesar de relegado, hoje, ao esquecimento. A magia desta obra insólita tem na fotografia de Eugen Schufftan um de seus pontos altos, com um sentido de composição da luz que impressiona. Não poderia, Les yeux sans visage, ser um filme a cores, pois o preto e branco aqui são de fundamental importância para a criação atmosférica, ambiental. A luz é produtora de sentidos e o branco assume um significado coreográfico como parte integrante da mise-en-scène (e cinema é mise-en-scène, apesar das exceções de praxe): a roupa dos médicos, a aura (branca) do rosto de Edith Scop (a atriz que faz a filha do médico), as cortinas, enfim, há uma acentuada tendência, na plástica das imagens, de acentuar o branco como móvel da narrativa. A impressão de estranhamento que causa o filme é que dá o tom do insólito e do bizarro.

O professor Génessier (interpretado com a gravidade exigida por Pierre Brasseur), cirurgião célebre, sumidade entre os médicos, admirado por seus trabalhos em heteroplastia, tem uma filha que foi, por acidente automobilístico, horrivelmente desfigurada. Apenas os olhos lhe restam intactos. Para tentar restituir-lhe a beleza anterior, seu pai, com a cumplicidade de um enfermeira que lhe é devotada (ele conseguiu, através de cirurgia, restituir-lhe um rosto, e este rosto é o de Alida Valli), pega, nas ruas e estradas francesas, mulheres bonitas para fazer ensaios de enxertos de peles para colocá-las na filha querida. Mas as experiências, se a princípio parecem exitosas, com o passar do tempo, revelam-se degenerativas. A filha ignora a monstruosidade dessas experiências em seu favor, mas quando vem a saber toma uma atitude.

Claude Beylie, ensaísta francês, considera Les yeux sans visage uma das obras-primas definitivas da história do cinema. Em seu livro sobre os filmes fundamentais (As obras-primas do cinema, Martins Fontes), ele escreveu: "Esta obra de um dos grandes poetas do cinema situa-se a meio caminho entre o grand guignol e o documento clínico." E mais: "Embora exista no cinema francês uma tradição bem arraigada do maravilhoso, de Méliès a Cocteau, não podemos citar grandes autores do cinema fantástico - fora Georges Franju. Ele é o único diretor insólito deste tempo, dele dizia Henri Langlois (ao lado de quem Franju se encontrou para fundar a Cinemateca francesa). O insólito, o estranho, o angustiante não faltam nos filmes de Georges Franju (1912/1987)." E continua Beylie: "Mas seus trabalhos também se destacam por um rigor de escrita, uma fluidez narrativa, um apego ao cenário e aos objetos que encontraram inicialmente seu campo de expressão no documentário (e o DVD, na parte dos extras, mostra um deles, Sangue das bestas/Le sang des bêtes, 1949, sobre a morte de bois, cavalos e ovelhas em matadouros franceses, que tem uma crueldade exemplar no desvendamento da barbárie da condição humana). Ao passar para o longa metragem em 1958, Franju não perde nada dessa acuidade de visão, ligada a um forte temperamento de visionário.

Uma dose de Billy Wilder, para variar


Entre os realizadores cinematográficos que mais admiro está Billy Wilder. Seus filmes, além de proporcionar um imenso prazer de se estar no cinema, possuem uma visão ácida, irônica, mas não somente por isso. Porque nos seus espetáculos há engenho, graça, arte, envolvência, inteligência. Há uma espécie assim de savoir faire da vida e da observação da condição humana. O cinema não seria o mesmo sem Billy Wilder. Existem seus clássicos antológicos mais conhecidos (Quanto mais quente melhor, Se meu apartamento falasse, Crepúsculo dos deuses, Pacto de sangue, Sabrina...). Escolheria, porém, alguns outros como obras importantes, principalmente o corrosivo Cupido não tem bandeira (One, two, three, 1961), que não é muito citado nem conhecido. James Cagney é um executivo graúdo da Coca-Cola em Berlim já com seu famoso muro (e olhe que o filme é de 1961), que, arrivista, está sempre a querer agradar o presidente da empresa. Um belo dia, este lhe telefona para dizer que sua filha (a esfuziante Pamela Tiffin) vai passar uns dias em Berlim e ele gostaria que ela ficasse hospedada em sua casa. Tudo bem. O que não estava no programa é que ela, belíssima, vem a se apaixonar por um rapaz do outro lado do muro, um comunista de Berlim Oriental interpretado por Horst Buchholz (que brilhou em 7 homens e um destino e depois fez carreira no cinema americano, ainda que alemão). Cagney acaba por entrar escondido na parte Oriental e o filme apresenta uma série de reviravoltas até que tudo se resolve. Na sequência final, a família unida está no aeroporto e Cagney resolve distribuir latinhas de Coca-Cola (naquela época, as máquinas eram novidades), mas, de repente, tira uma latinha de Crush (concorrente pesado da Coca) e fica estupefato e, então, a imagem congela. Há um outro Wilder que tenho verdadeira veneração, que é Avanti!, com Jack Lemmon, Patrica Mills, obra crepuscular, do outono do cineasta, 1973. E não se pode esquecer de A vida íntima de Sherlock Holmes, um filme singular e pleno de poesia na sua mise-en-scène. O cartaz acima, de Sabrina, foi vendido por 35.000 reais. Uma raridade.

31 março 2009

...E lá se foram eles


Duas mortes quase no mesmo dia: a de Ankito e a de Maurice Jarre. O primeiro, grande comediante das chanchadas nacionais, e o segundo, imenso compositor de partituras inesquecíveis (coincidentemente, quando da morte de Jarre, postei um comentário sobre Remo Usai, o maior partiturista do cinema brasileiro). A frequência das notícias de falecimento é assustadora. Praticamente, de dois em dois dias, se tem a informação da ida de uma personalidade importante do universo das artes.

Comecei a ir ao cinema nos anos 50, como já disse aqui inúmeras vezes, e, nesta época, predominavam as chanchadas, que vi quase todas. Posso estar errado, mas creio que Ankito (assim como Zé Trindade) foi aproveitado por Herbert Richers para fazer concorrência aos filmes de Oscarito (da Atlântida). Grande Otelo, que era o parceiro habitual de Oscarito nas chanchadas da Atlântida, transferiu-se (e, neste ponto, não sei explicar direito) para a empresa de Herbert Richers para fazer dupla com Ankito. Será que houve algum atrito de Grande Otelo com a Atlântida? Romero, socorra-me! Vou procurar pesquisar no excelente livro sobre a chanchada de autoria de Sérgio Augusto e que se chama Este mundo é um pandeiro. O fato é que, em meados dos anos 50, Oscarito ficou sem a companhia de Otelo. Não creio que tivesse sido uma mal entendido entre este e Oscarito, porque o grande cômico não brigava com ninguém. Mas onde está Grande Otelo em De vento em popa, O homem do sputnick, entre outros? Grande Otelo passou a trabalhar em parceria com Ankito: De pernas p'ro ar (19560, de Victor Lima, Metido a bacana (1957), um sucesso de bilheteria sem precedentes, Pé na tábua (1957), de Victor Lima, É de chuá (1957), de Victor Lima, Garota enxuta (1959), de J.B. Tanko, Pistoleiro Bossa Nova (1959), de Victor Lima, Vai que é mole (1960), de J. B. Tanko, Um candango na Belacap (1960), de Roberto Farias, etc. Era um comedianté notável mas nunca um gênio como Oscarito.


Maurice Jarre foi um partiturista que deu muita força aos espetáculos cinematográficos musicados por ele, principalmente os filmes de David Lean. Para ser lembrado sempre. Gosto imensamente de quase tudo que fez, principalmente das partituras de Passagem para a índia e de A filha de Ryan, ambos de Lean. E destaco a sua música transcendente em Toute la memoire du monde (1956), de Alain Resnais,
La tête contre les murs (1959), de George Franju. E deste mesmo surpreendente diretor francês, Os olhos sem rosto (Les yeux sans visage, 1960), além de Judex, que não vi, mas ouvi dizer que tem partitura impressionante.

Acredito que Jarre, sobre ser um artista excepcional e de fina sensibilidade musical, depois que ficou famoso aceitou muitos trabalhos de encomenda que não lhe inspiravam. Ghost, por exemplo, filme execrável, que tem partitura assinada por ele, não a deixou registrada na minha memória, assim como outras obras menores que Jarre partiturou. Mas é a sobrevivência que comanda o espetáculo até que, um belo dia, a Implacável ou, como dizia Machado de Assis, a Indesejada das gentes, vem buscar os terráqueos de plantão. Que a terra lhe seja leve, Maurice Jarre!!

30 março 2009

Remo Usai: gênio da partitura incidental

Quem assiste a um filme como Assalto ao trem pagador (1992), de Roberto Farias, a música incidental é tão perfeita que entra no inconsciente do espectador, assim como em A grande feira (1961) e Tocaia no asfalto (1962), ambos de Roberto Pires, entre tantos outros. A saída de cena do maestro Remo Usai representou uma grande lacuna para a música no cinema brasileiro. Nenhum outro pode lhe ser comparado, pois Usai sabia fazer partituras incidentais comparáveis as do cinema americano - que tem mestres insuperávéis: Miklos Rozsa, Victor Young, Max Steiner, Henry Mancini, Dimitri Tiomkim, Bernard Herrmann, Elmer Bernstein, David Raksin, entre tantos!! Vi ontem, domingo, no Canal Brasil, um documentário precioso, de autoria de Bernardo Uzêda, sobre o maestro: Remo Usai, um músico de cinema, que o apresenta ao piano a dar um interessante depoimento.

Em meados da década de 50, Remo Usai tinha uma idéia fixa: ser músico de cinema. E foi aos Estados Unidos tentar se inscrever num curso dado por Miklos Rozsa (Ben Hur, Quando fala o coração...), sumidade absoluta, húngaro, compositor extremamente erudito e criativo.Para fazer o teste, passou alguns dias num biblioteca com o fone de ouvido a ouvir as partituras de Rozsa. E foi aprovado. Na sua volta ao Brasil, começou a fazer partituras para vários filmes, enriquecendo-os sobremaneira.

A saída de cena de Remo Usai, creio, deveu-se aos novos rumos tomados pelo cinema brasileiro, principalmente quando do advento do Cinema Novo, que dava preferência a um outro tipo de musicalidade para o acompanhamento das cenas. O imenso talento de Usai já não servia aos propósitos de um nova maneira de representar o real. Em Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, a música vinha do ranger do carro de boi. E em Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, o lado musical estava apoiado numa espécie de cantoria cordelista.

Quero recomendar aqui um site excelente sobre música de filme (http://www.scoretrack.net/), editado por Jorge Saldanha, e tomo a liberdade de transcrever um pertinente comentário sobre a importância de Remo Usai (tirado do site referido e acho que escrito pelo próprio Jorge Saldanha):

"O recente evento MÚSICA EM CENA - 1º Encontro Internacional de Música de Cinema não foi relevante só por trazer ao público brasileiro nomes como Ennio Morricone e Gustavo Santaolalla. Ele foi importante também por colocar na pauta de discussões do meio artístico e acadêmico a música composta para a tela grande, o que valoriza o trabalho dos profissionais que lidam com esta arte ainda pouco reconhecida, pelo menos em nosso país. Um desses profissionais é o maestro Remo Usai, que por cinco décadas dedicou-se ao cinema, criando partituras para mais de uma centena de filmes e documentários nacionais, e inclusive para algumas produções internacionais rodadas no Brasil. Mesmo assim o nome do maestro, que inclusive teve aulas com o lendário Miklos Rozsa, é desconhecido fora de círculos restritos. Mas, pior do que a falta de reconhecimento de público e crítica, é a questão dos direitos autorais, que não permitiu até hoje que o compositor tivesse um retorno à altura do valor que sua música agregou aos filmes para os quais contribuiu.

Meu primeiro contato com o maestro Remo ocorreu no coquetel do Theatro Municipal do Rio, logo após o concerto de Morricone. Conversamos por um bom tempo, e mantivemos outros contatos nos painéis que se desenrolaram durante a semana, aos quais o veterano artista compareceu e onde, inclusive, recebeu merecidas homenagens dos participantes. Num deles o maestro me presenteou com este CD, contendo seleções musicais de várias trilhas incidentais que compôs ao longo de sua carreira. As composições são uma esplêndida amostra da formação clássica do compositor, e de sua habilidade em combinar elementos tradicionais da música do cinema com elementos e ritmos típicos do Brasil.


O CD inicia com "Pão de Açúcar", da co-produção Brasil/EUA Sugar Loaf, estrelada por Rossano Brazzi e Ronda Fleming. A música é uma agradável e leve bossa nova que poderia muito bem ser atribuída a Henry Mancini ou Lalo Schifrin, e nela destaco o excelente arranjo para as cordas. Sem dúvida, traduz aquele sentimento de "Cidade Maravilhosa" típico dos antigos filmes. Seguimos com "Assaltantes em Fuga", faixa que integra a sua partitura mais importante - a do antológico Assalto ao Trem Pagador, dirigido por Roberto Farias em 1962. A faixa é um típico underscore que usa percussão de samba, metais, cordas e piano para criar uma atmosfera de suspense. Temos após a bucólica "Tônia", tema principal do romântico Férias no Sul, que traz um belo solo de gaita de boca de Maurício Einhorn, acompanhado por cordas.

Temos mais suspense que ação em "A Fuga", outra composição incidental criada para o filme Manaus, uma aventura co-produzida por Brasil e Alemanha. O ritmo percussivo e as cordas evocam uma locomotiva em "Trem Maria-Fumaça", de Pega Ladrão. O filme ganhou o prêmio principal do Festival Cinematográfico do Distrito Federal em 1958, e na ocasião Ely Azeredo, da Comissão Julgadora, destacou o sólido profissionalismo da música que Remo Usai compôs. Cello, flauta e violão conduzem a evocativa "O Compasso do Tempo", do filme Pantanal de Sangue. O documentário Bola de Meia ganhou um prêmio na Itália, e para ele Remo criou o delicioso tema de mesmo nome pleno de brasilidade, em ritmo de samba e com vocais femininos típicos de bossa nova.

Os sintetizadores, substituindo violinos, são ouvidos pela primeira vez no disco em "Mistério das Origens", do documentário homônimo feito para a TV portuguesa. Já "Mandacaru", de Mandacaru Vermelho, é uma canção com ritmo nordestino composta em parceria com Pedro Bloch e cantada por Os Cariocas. Remo Usai também compôs para comédias e chanchadas, como Costinha e King Kong. Para este filme o maestro criou a simpática "A Dança do Feiticeiro", adicionando à instrumentação tradicional guitarra wah wah e moog, instrumentos em evidência nos anos 1970. A melancólica "Um Vira-Lata Chamado Lupércio" é de Os Trapalhões nas Minas do Rei Salomão, e traz um belo solo de piano que evoca o lado "chapliniano" desta comédia de Renato Aragão e sua turma.

"Katu", da produção norte-americana How I Lived as Eve, combina elementos de bossa nova e samba para acompanhar um clube de nudistas que passa três meses numa ilha deserta do Brasil. Já a canção "Maria Bonita", do filme Maria Bonita, Rainha do Cangaço, recebeu letras de Miguel Borges que, juntamente com a orquestração forte, refletem a determinação da personagem-título. "Boca de Ouro" é o tema do filme homônimo de Nelson Rodrigues, que destacou a trilha sonora de Remo usai como uma obra-prima que valorizou sobremaneira seu filme. A bela "Cachoeiras", do documentário Cânticos Brasileiros, traz uma emotiva melodia onde mais uma vez o maestro destaca os violinos, acompanhados por piano, guitarra e percussão.

"A Batalha Intergaláctica", do desenho As Aventuras da Turma da Mônica, como não poderia deixar de ser faz referência a Guerra nas Estrelas, não diretamente à sua trilha sonora mas sim a "Marte, O Deus da Guerra", da sinfonia "Os Planetas", de Gustaf Holst, que foi uma das inspirações de John Williams para a trilha sonora do filme de George Lucas. Para esta partitura o maestro utilizou quarenta músicos da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, o que garantiu a grandiosidade exigida pela orquestração. Finalmente "O Cerco", de O Caso Claudia, é uma faixa de ação no estilo das trilhas de filmes policiais norte-americanos dos anos 1970, com base de bateria, baixo e guitarra, sobre a qual metais e violinos desenvolvem a melodia.

Para encerrar esta resenha com uma consideração final sobre a música de Remo Usai, deixo para vocês as palavras que escreveu Pedro Bloch, nas notas da trilha sonora de Assalto ao Trem Pagador: "Tem momentos de enorme pureza rítmica, curiosa instrumentação, timbres inesperados, mais fruto de sua fecunda originalidade que motivados pelo desejo de espantar. A música não procurou, em momento algum, estrelar a película. Por outro lado, ouvida isoladamente, constitui por si só obra que dignifica um artista de categoria que serve à Sétima Arte com imensa nobreza: Remo Usai". Da minha parte, não poderia dizer melhor. Maestro Remo, foi uma honra tê-lo conhecido."

A Academia Brasileira de Cinema precisa, urgentemente, fazer uma homenagem a Remo Usai.

Une femme est une femme

Segundo longa metragem de Jean-Luc Godard, que se sucede a Acossado (A bout de souffle, 1959), que detonou a Nouvelle Vague e traumatizou duramente o cinema francês contemporâneo, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 1961), é um filme menos conhecido do realizador, mas uma de suas películas mais engraçadas, espirituosas, cuja feitura denota o frescor da época, de um existencialismo que se vivia nas ruas de Paris cheias de idealismo e romantismo. Não é um musical, como se anunciou, e como muita gente pensou: é, simplesmente, uma comédia romântica ao avesso, que subverte os clichês do gênero inteligentemente – não como agora em que a subversão do clichê já virou gasto lugar-comum. E tem Anna Karina, que, na época, companheira de Godard, revelava-se uma atriz encantadora.

Une femme est une femme foi exibido em cópia na bitola 16mm pela primeira vez em Salvador quando da mostra Godard, que ocorreu em julho de 2003 na Sala Walter da Silveira. Os filmes do cineasta foram aqui lançados na década de 60, a maioria no cine Capri – que se incendiou em 1980 e ficava no Largo 2 de Julho – e distribuídos pela Franco-Brasileira, mas, não se sabe a razão, Uma mulher é uma mulher permaneceu inédito.

Há uma clara referência ao cinema clássico americano e, numa determinada cena, Anna Karina diz a Jean-Paul Belmondo que gostaria de estar num musical de Vincente Minnelli, ao lado de Gene Kelly e Bob Fosse. O personagem de Belmondo se chama Alfred Lubitsch – referência explícita ao mestre da comédia sofisticada Ernst Lubitsch. E num determinado momento, há uma citação de Tirez sur le pianiste, filme de François Truffaut, colega de Godard na Nouvelle Vague e na revista Cahiers du cinema. O próprio Belmondo, principal intérprete de Acossado, de repente, diz que não tem tempo porque não pode perder Acossado. E Jeanne Moreau, musa da Nouvelle Vague, faz uma pequena ponta em pé num bar onde Belmondo toma um drink.

A comédia romântica clássica é subvertida, porém em termos de poesia e metalinguagem. A montagem sincopada, de tomadas rápidas, é repetida aqui. Logo no início, quando Anna Karina se dirige ao cabaré onde é estrela de strip-tease, ela passeia pelas ruas de Paris e a partitura de Michel Legrand – de grande beleza – é retirada e depois recolocada. Godard, também em outros momentos, retira o áudio e faz com que os personagens se dirijam aos espectadores. Quando Belmondo vê-se rejeitado por Karina, ele fala ao público: “Ela não me quer!” Claro que o filme deve ser situado dentro de um contexto histórico-cinematográfico, quando a desmistificação do espetáculo era uma novidade. O cinema perdeu, definitivamente, um certo encanto, uma certa ingenuidade. Wim Wenders, num depoimento para Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho, afirma que o cinema contemporâneo não oferece margem para a imaginação, porque tudo vem muito pronto, com tudo já dito.

Em cinemascope, colorido, a iluminação de Roul Coutard – diretor de fotografia preferencial de Godard – contribui para criar o clima, acentuando tonalidades, ressaltando matizes que se introduzem no tecido dramatúrgico. As sequências seguem um ritmo sincopado, com repetições de gestos, de movimentos, que seriam uma das marcas registradas do autor. E o que se poderia chamar de história se dilui na mise-en-scène a demonstrar que um filme verdadeiro é a expressão de um estilo, estabelecendo-se pela maneira de o cineasta articular os elementos da linguagem cinematográfica.

Karina é uma strip que mora com Jean-Claude Brialy enquanto Jean-Paul Belmondo lhe faz a corte diária. Ela tem uma idéia fixa: ter um filho, mas seu companheiro parece desinteressado em lhe oferecer o presente. Chateada, vai procurar Belmondo, e, no apartamento deste, dorme com ele. Mas volta à sua morada com Brialy e lhe conta o acontecido. Brialy, então, tem, com ela, uma relação carnal. E o filho de quem será? No final, ele lhe chama de infame, mas ela responde: “Je ne suis pas infame, je suis seulement une femme”. Simples e grandioso.

Revi Une femme est une femme há alguns anos no Telecine Classic, quando este não era Cult e respeitava sempre o formato original das películas exibidas.

O cinema, aqui, é a expressão da mise-en-scène.