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28 setembro 2005

TOCAIA NO ASFALTO

Thriller genuinamente baiano realizado em 1962, que aborda o relacionamento dos políticos com a criminalidade e as idiossincrasias de personalidade de um pistoleiro de aluguel, ’Tocaia no asfalto’, de Roberto Pires, produzido logo após ’A grande feira’, é um filme que pode ser visto em dois planos: no plano de sua narrativa e no plano de sua fábula (história). No primeiro, destaca-se sobremaneira a artesania de Pires, o domínio pelo qual articula os elementos da linguagem cinematográfica em função da explicitação temática. Seu trabalho, nesse particular, é de ourivesaria e, aqui, em ’Tocaia no asfalto’, tem-se um exemplo onde a narrativa suplanta a fábula, ainda que os dois planos sempre devam ser observados em processo de simbiose.
Realizado em plena efervescência do chamado ’Ciclo Bahiano de Cinema’ - 1959-1963, ’Tocaia no asfalto’, programado para ser exibido quinta, dia 29 de setembro (e também em outro horário alternativo a verificar no site do canal), às 22 horas e 30 minutos, no Canal Brasil (Sky/Net, 66), com introdução de Luana Cavalli, atesta o seu vigor e a sua atualidade temática. Duas seqüências podem ser consideradas antológicas e das melhores do cinema brasileiro: a tentativa de assassinato frustrada na Igreja de São Francisco, e a do cemitério do Campo Santo. Pires demonstra o seu apuro, o seu sentido de cinema, o ’timing’ raro, um faro, por assim dizer, para ’pensar’ cinematograficamente o estabelecimento da ’mise-en-scène’ como fator de impacto e de emoção.
Ainda que uma obra formatada nos moldes de uma linguagem clássica -o que não lhe tira de modo nenhum a qualidade, que se fundamenta na chave narrativa da progressão dramática griffithiana, há, no entanto, uma seqüência que, sem se ter medo de errar, poder-se-ia chamá-la de eisensteiniana. É aquela na qual Roberto Ferreira tenta se ver livre dos presos num caminhão e tenta intimidá-los com um revólver, ocasionando uma fuga em pleno movimento do veículo, quando vem a morrer o irmão do personagem interpretado por Agildo Ribeiro. A rapidez, com que são expostos os rostos embrutecidos dos pobres diabos que estão no caminhão, tem um ritmo que se assemelha a um ’touch’ buscado na concepção de montagem de Sergei Eisenstein. Esta seqüência é um ’flash-back’, quando Agildo Ribeiro, dançando, sente-se mal e começa a ter pesadelos retroativos.
Assim, ’Tocaia no asfalto’ se sobressai pela narrativa impactante que está a serviço do argumento, mas que predomina sobre este. Que versa sobre um pistoleiro contratado para matar um político corrupto (Milton Gaúcho), que, chegando do interior, vai morar num prostíbulo e se apaixona por uma mulher (Arassary de Oliveira). Enquanto isso, um jovem político bem intencionado (Geraldo D’El Rey) pretende instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as falcatruas do grupo do político que está na mira do assassino. Mas as reviravoltas do argumento determinam uma contra-ordem e o pistoleiro, na iminência de matar, é avisado que não mais precisa cumprir o trabalho. Apesar de um matador profissional, tem, porém, seus códigos de honra e prefere ir até o fim naquilo para o qual fora incumbido.
’Tocaia no asfalto’ se desenrola em dois ambientes: o ambiente burguês da casa do político, abrangendo as festas, os colóquios e o namoro de sua filha (Angela Bonatti) com o jovem e promissor parlamentar, e o ambiente pobre do prostíbulo comandado com mão de ferro por Jurema Penna e, no qual, o pistoleiro é hospedado, vindo a conhecer uma prostituta pela qual se apaixona. ’A latere’, alguns personagens, como o policial interpretado por Adriano Lisboa, que circula entre os dois ambientes, Antonio Pitanga, outro matador, contratado, desta vez, para matar o outro. Pires, em alguns momentos, através da montagem paralela, tenta mostrar os acontecimentos em perspectiva de simultaneísmo, quando, por exemplo, Agildo e Arassary conversam no Farol de Itapoã.
Notável realizador, Roberto Pires, responsável pelo primeiro longa feito aqui, ‘Redenção’ (1956-59), pelo seu extremado domínio formal da linguagem, poderia ter ido longe se trabalhasse no exterior, mas as injunções mercadológicas de um cinema caótico, como o brasileiro, determinaram-lhe, por vezes, um recesso forçado. Mas filmes como ‘A grande feira’ e ‘Tocaia no asfalto’ bastam para se ter um cineasta.
Não se pode deixar de registrar a funcionalidade da partitura de Remo Usai – que soa como um grito trágico na seqüência final do trem, o bom argumento de Rex Schindler – também produtor, associado a David Singer, e a fotografia de Hélio Silva. E uma pergunta que não se quer calar: por que, com todos os recursos existentes hoje, o cinema baiano não consegue fazer algo parecido com ‘Tocaia no asfalto’?

Eis o homem: William Friedkin

DO CINEMA EM AÇÃO

Friedkin, em Viver e morrer em Los Angeles (To life and to die in L.A., 1985), tem um ritmo tão frenético que conduz o espectador a experimentar as emoçoes dos personagens, principalmente na exemplar seqüência da desesperada corrida de carros pela cidade (E justiça deve ser feita a Peter Yates em Bullit). Há, no entanto, nos filmes, dois tipos de recepção à ação que se desenrola na tela: a ativa e a passiva. Na primeira, caso de Friedkin, a ação se transforma em emoção estética pelo rigor da mise-en-scène, assim como em outros filmes dele, como Jade (a perseguição no bairro chinês) ou Operação França, entre outros. A recepção passiva é a que não oferece, nos seus momentos fortes de ação, um dínamo operacional de montagem, um timing qualificado, mas, ao contrário, deixa aos espectadores apenas a contemplação de uma determinada situação movimentada. Neste segundo caso, não existe um cinema em ação. E cinema em ação é o que se poderia dizer dos filmes de William Friedkin. Viver e morrer em Los Angeles é uma produção independente, filmada in loco, nos recantos mais marginais e mais desconhecidos de L.A.

Outro realizador notável, nesse que se poderia chamar de cinema em ação (e não cinema de ação, bem entendido), é Donald Siegel ou, simplesmente, Don Siegel. Considerado, ao lado de Sam Peckinpah, o decano da violência do cinema contemporâneo, Siegel é um cineasta que fareja a geografia da ação. Meu nome é Coogan (Coogan's bluff, 1968), com Clint Eastwood como o policial do Arizona que vai a Nova York buscar um prisioneiro a fim de extraditá-lo, custe o que custar, haja o que houver, cinzela a personalidade de Eastwood como o justiceiro durão que age acima da lei e que tem seu ponto mais alto em Perseguidor implacável (Dirty Harry, 1971). Para quem acompanha a subida dos créditos finais, como faço regularmente, apenas levantando-me da poltrona quando o último fotografa se esvai da tela, em Os implacáveis (Unforgiven, 1992), de Clint Eastwood, revisão da mitologia do western, obra maior em todos os sentidos, este realizador dedica o filme a Sergio Leone e Don Siegel, cineastas com os quais, disse em entrevista, aprendera a dirigir cinema
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27 setembro 2005

CINEMA NA BAHIA

A Bahia cinematográfica conseguiu, com a entrada do Terceiro Milênio, sair do jejum longametragista, a partir mesmo de Três Histórias da Bahia, um filme de episódios dirigidos por Sérgio Machado, Edyala Iglesias, e José Araripe Jr. O que viabilizou, no entanto, os longas foi, sem dúvida, a cultura do patrocínio estatal através dos editais promovidos todo ano pelo Governo do Estado, que premiam, além de um roteiro de longa com pouco mais de um milhão de reais, curtas e vídeos. O primeiro premiado, Eu me lembro, de Edgard Navarro, está, há quatro anos em processo de finalização, mas, ao que tudo indica, sai mesmo no final do ano. Já Cascalho, de Tuna Espinheira, conseguiu ser levado a termo, mas está esperando por Godot, a distribuição e exibição. Recentemente, Pau Brasil, de Fernando Belens, obteve o reconhecimento da última comissão julgadora e vai virar filme de longa metragem. Mas há ainda outros longas que se finalizaram, a exemplo de Esses moços, de José Araripe Jr, A cidade das mulheres, de Lázaro Faria (premiado recentemente na Jornada Internacional), O jardim das delícias (creio estar confuso com o nome), de Pola Ribeiro, que ganhou concurso da Petrobrás. E Cidade Baixa, de Sérgio Machado, está sendo apresentado no Festival do Rio, ainda que o capital não seja genuinamente baiano. Falou-se que André Luis Oliveira (Meteorango Kid, o herói intergalático) passou um tempo em Itaparica a filmar a adaptação cinematográfica de Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. O nó górdio para que os filmes se viabilizem está no tripé produção-distribuição-exibição. Nesse particular, o mais bem sucedido de todos, em termos de circulação, foi Samba Riachão, de Jorge Alfredo, que conseguiu alguma circulação e está sendo apresentado no Canal Brasil no programa É tudo verdade, apresentado por Amir Labaki. Vale ressaltar que O superoutro, de Navarro, está, também, nesse canal do cinema brasileiro, acessível apenas, no entanto, para quem é assinante da Net ou da Sky.

Linda Fiorentino em Jade, de William Friedklin

DE WILLIAM FRIEDKIN

Há diretores que pouco são valorizados, mas que possuem um especial sentido de cinema, de ritmo, de timing. Suas qualidades podem ser vistas mais pelo elo sintático do que pelo elo semântico, embora as duas coisas se associem. É o caso de William Friedklin, assim como, também, é o caso, em menor intensidade, de John Schlesinger ou, mesmo, John Frankenheimer. Estes últimos, em final de carreira, perderam o rumo, pasteurizando-se. Mas Friedklin, embora alguns filmes não muito palatáveis, tem obras admiráveis. Uma delas passou em brancas nuvens: Jade, com Linda Fiorentino e David Caruso, filme que parece que possui um fio elétrico no seu desenvolvimento narrativo, espraiando por todo o seu desenrolar uma tensão permanente. Quem viu Operação França (The french connection, 1971) pode ter uma idéia da capacidade de mise-en-scène de Friedklin. Seus filmes podem ser considerados verdadeiras aulas de timing, e o seu senso de montagem é impressionante. A tensão que incorpora a seus melhores filmes no diapasão rítimico poderia ser comparada a uma partitura musical. Revi Viver e morrer em Los Angeles (To life e died in L.A., 1985) e o que posso dizer é que fiquei impressionado com o uso que faz do tempo e espaço cinematográficos, que, conjugados, tornam-se um tempo-espaço puraramente abstrato numa composição realmente artística com o uso, inclusive, de elementos composicionais como tinta, quadros, mulheres maquiadas, detalhes que dão uma significação extra ao material narrado. Desde muito antes de The french connection venho observando William Friedklin e, sempre, com especial admiração. O primeiro contato foi com Quando o strip-tease começou (The night they raided minsky', 1968). E o O exorcista, tenham paciência, é filme de diretor de primeira ordem. O terror da seqüência dos exames médicos, terror que emerge pelo barulho das chapas sendo tiradas, entre muitas outras seqüencias exemplares, não se pode deixar de considerar como um trabalho de artista do filme. Mas como as pessoas, mesmo aquelas ditas cultas, acham que o filme tem valor mais pelo seu elo semântico se atrapalham quando vê um filme de Friedklin. É a ignorância, óbvia e ululante.

26 setembro 2005

ROBERTO PIRES: CINEASTA E INVENTOR

Quando as esperanças de encontrar uma cópia de Redenção já se encontravam perdidas, porque seu negativo em processo de degenerescência, sendo-lhe, quase impossível a restauração, um colecionador de filmes de Recife escreveu a Petrus Pires, filho do autor de Redenção, Roberto Pires, informando-lhe ter, em suas mãos, uma cópia integral na bitola de 16mm desse que é o primeiro longa do cinema baiano. Petrus, que trabalha na DIMAS, o departamento de audiovisual da Fundação Cultural do Estado da Bahia, viajou até a capital pernambucana para, como convidado de honra, assistir a uma exibição especial da obra histórica e que se pensou desaparecida. Na volta, trouxe a cópia para que seja feita um inter-negativo do positivo e seja, enfim, restaurado o filme que assinala a estréia de Roberto Pires na direção cinematográfica. Espera-se que Redenção seja exibido na Sala Walter da Silveira para que os baianos, principalmente os da nova geração, possam tomar conhecido da semente germinadora do que veio a ser conhecido como Ciclo Bahiano de Cinema.

Se o cinema na Bahia não existisse, Roberto Pires o teria inventado, escreveu Glauber Rocha em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (Civilização Brasileira, 1963), uma reavaliação histórica do processo de criação na cinematografia nacional, um livro importante que provocou polêmicas na época – e que foi, recentemente, reeditado com prefácio de Ismail Xavier. Nesta publicação, Glauber considera Limite um mito a ser desmistificado, apesar de o filme não ter sido, em 1963, ainda restaurado, diz que O Cangaceiro é um produto falso feito na paisagem paulista, com um décor descaracterizado e uma estrutura narrativa westerniana, entre outros pontos provocativos e que exerciam uma espécie de dessacralização de dogmas estabelecidos. Humberto Mauro é coroado como o patrono do cinema brasileiro, o cineasta que plantou as raízes e colheu os frutos com seus filmes autênticos e enraizados. Mas se está, aqui, pegando um atalho e saindo da estrada, porque ela, a estrada, é Roberto Pires, o realizador de Redenção, o primeiro longa metragem feito na Bahia, com lente anamórfica (cinemascope) inventada por ele na ótica de seu pai. Redenção sobre ser uma obra de pioneiro, de desbravador, tem uma singular importância para a eclosão do Ciclo Bahiano de Cinema que viria a seguir. O filme é um exemplo, uma espécie de prova da possibilidade da existência de um cinema nestas plagas. Quem viu a avant-première, em black-tie, no cine Guarany, em 1959, não esquece o entusiasmo de todos. É vendo Redenção que Glauber Rocha sente que, de fato, seria possível se desenvolver, aqui, uma indústria cinematográfica. Encontrando, por acaso, Rex Schindler, no escritório de Leão Rosemberg, Glauber inicia uma amizade com Rex que vem a resultar no projeto do cinema baiano. Redenção, no entanto, não pode ser incluso dentro dos postulados cinemanovistas, pois um thriller, um policial com acentos amadorísticos. Mas, como acontece com a projeção de 1895 - data do nascimento do cinema - da chegada do trem dos Irmãos Lumière, apenas o fato de se ver, na tela, imagens de pessoas participando de uma história em movimento, o filme se torna uma lenda. O orgulho é imenso, e, naquela época, aquele que participa, numa pontinha, do filme de Roberto Pires, faz questão de dizer: “Eu trabalhei em Redenção Roberto Pires o filma nos finais de semana e o roteiro, imaginado e pré-visualizado em 1955, tem suas filmagens iniciadas no ano seguinte. A equipe técnica, trabalhando nos dias úteis em outras atividades para sobreviver, só se encontra disponível aos sábados e domingos. Assim, a fita é rodada a prestações até que um ilheense apaixonado por cinema, Élio Moreno de Lima, decide aplicar mais recursos, injetar mais verbas para o aceleramento da produção que, afinal, só fica pronta em 1959. Pires, um inventor e um artesão que se forma na intuição, vendo filmes policiais americanos, sem freqüentar o Clube de Cinema de Walter da Silveira, consegue, e não se sabe a que custos, finalizá-la, lançando-a com sucesso surpreendente no mercado soteropolitano. Rex Schindler e Braga Neto, após o êxito de bilheteria do filme estreante de Pires, resolvem bancar Barravento, de Glauber Rocha, dando início ao que se chama a ’Escola Bahiana de Cinema’. Glauber, crítico de cinema do então recém-fundado Jornal da Bahia, entra no meio das filmagens de Barravento, remodelando o roteiro e o idealizando à sua imagem e semelhança. Schindler, Glauber, Braga Neto e outros têm um projeto para a instalação de uma indústria de filmes - Glauber como mentor intelectual da turma. Dá-se início às filmagens de A Grande Feira (1961), com argumento de Rex, roteiro deste e de Pires e com direção do último. A artesania, que Pires demonstra na construção da mise-en-scène, habilita-o como cineasta neste drama sobre a Feira de Água de Meninos com acentos cordelísticos e brechtinianos. Sucesso estrondoso em Salvador, anima os produtores a partir para Tocaia no Asfalto (1962), que seria dirigido - segundo o esquema de rodízio estipulado - por Glauber, mas este, já detonando o Cinema Novo no SDJB - o célebre Suplemento Dominical do Jornal do Brasil editado por Reynaldo Jardim - e preparando, no Rio, a produção de Deus e o Diabo na Terra do Sol, indica Roberto Pires. Tocaia no Asfalto tem um tema atual, pois trata da corrupção, da tentativa de se instalar uma CPI a fim de apura-la e do pistoleirismo. A sua estrutura narrativa é de um thriller, bem ao gosto de seu diretor, e há momentos de puro cinema: a perseguição de Agildo Ribeiro, o pistoleiro, para matar um político no interior da Igreja de São Francisco e o tiroteio no cemitério do Campo Santo.
O que se denomina de ’Escola Bahiana de Cinema’ se restringe aos filmes idealizados pelo grupo de Rex, Glauber, Pires e Braga Neto, entre outros - Barravento, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, mas, nesta época, de imenso burburinho, a Bahia vive o cinema, com produtores do sul e até do estrangeiro (O Santo Módico, de Jacques Viot), além de outros baianos que conseguem se estabelecer com produções de outras empresas - como a Winston Carvalho que banca O Caipora, de Oscar Santana; como a Tapira de Palma Netto, que tenta dar uma resposta ao problema feirante através de um outro filme, Sol Sobre a Lama, que é dirigido pelo carioca Alex Viany, mas produção genuinamente baiana; como Ciro de Carvalho Leite, que financia O Grito da Terra, de Olney São Paulo, em Feira de Santana. O Ciclo Bahiano de Cinema’ reúne todos os filmes que são realizados na Bahia entre 1959 e 1963, inclusive os da ’Escola...
Roberto Pires é muito ligado a Iglu Filmes - que tem este nome por causa de um bar na Praça da Sé, onde os cineastas costumam se reunir. Faz-se, neste período, até atualidades como A Bahia na Tela, um cine-jornal cuja estampa é o cartão postal do Elevador Lacerda. Pires tem um sentido, diga-se assim, intuitivo da construção de uma mise-en-scène, tem, aliás, como poucos brasileiros, um faro excepcional para trabalhar com o específico fílmico, com a linguagem cinematográfica. Se Redenção é um rascunho, A Grande Feira e Tocaia no Asfalto são exemplos significativos da artesania do cineasta, de sua posta em cena. Ainda que seguindo os cânones de uma estrutura narrativa clássica - e, de certa forma, acadêmica, Pires possui o que muitos não têm: o engenho e a arte de saber se articular por meio de elementos puramente cinematográficos. Seus melhores filmes (’Feira’, ’Tocaia’) mostram um realizador em plena consciência de seu ofício. Mas é um cineasta que precisa do apoio de um argumento e de um roteiro sólidos. É, nesse ponto, mais um executor do que um autor, um artesão que sabe com maestria desenvolver um argumento alheio. E de artesãos como Pires é que o cinema brasileiro precisa para conquistar o mercado, envolver o público, cativar o cinéfilo. Com a derrocada do Ciclo Bahiano de Cinema - o velho problema de distribuição, Pires vai tentar a vida no Rio de Janeiro e realiza, em 1963, Crime no Sacopã, filme que, desaparecido, precisa, urgentemente, de uma revisão. Montando filmes alheios para sustentar a família, enquanto aguarda o próximo longa, o cineasta, em 1967, realiza um policial na medida certa do seu talento: A Máscara da Traição, com Tarcísio Meira, Glória Menezes e Cláudio Marzo, então atores globais em alta. O filme conta a execução de um grande assalto aos cofres do estádio do Maracanã em dia de jogo decisivo.
Convidado por produtor americano para realizar um thriller à brasileira, recusa o convite e indica Alberto Pieralisi, que dirige Missão Matar, com Tarcísio Meira na pele de um James Bond dos trópicos. Uma experiência em 16mm, para posterior ampliação em 35mm e exibição nos cinemas, é um fracasso em 1970: Em Busca do Su$exo, com Cláudio Marzo, Eulina Rosa, Sílvio Lamenha. Filmado no Rio, aproveita atores globais, mas não se vê, neste filme, o metteur-en-scène tão proclamado. A seguir um ostracismo de dez anos até que arranja produção, monta um estúdio na Boca do Rio e se aplica numa science-fiction: Abrigo Nuclear. Para dar certo, no entanto, precisaria de uma infra-estrutura que Pires não consegue arranjar. O resultado é outro fracasso. Anos depois, faz, em Goiânia e Brasília, um filme sobre o acidente do césio, que recebe elogios, mas não consegue a circulação merecida. Assistente de Glauber Rocha em A Idade da Terra, participa também de Di Cavalcanti. O seu grande momento, todavia, se encontra nos anos 60. Esperava-se, de Pires, um nova longa: Nasce o Sol a 2 de Julho, cujo argumento é de Rex Schindler. O maior cineasta baiano, Roberto Pires. Claro, há Glauber Rocha, mas este é universal e não se compara. Separa.

Pires morre por causa de um câncer contraído durante as filmagens do filme sobre o césio. Tinha já dado início a alguns planos de Nasce o sol a 2 de Julho, que Schindler sonha em completar, mas, porque filme de época, tem orçamento alto, tornando-se, assim, inexeqüível e inviável.
A Laranja mecânica, de Stanley Kubrick

INTRODUÇÃO AO CINEMA (12)

Narrativa e fábula
Se o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme é o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica - e não, como já se disse, o que se reporta ao comportamento dos protagonistas, torna-se imprescindível o discernimento, por parte daqueles que pretendem compreender e entender a arte do filme, entre o plano da fábula e o plano da narrativa.O plano da fábula refere-se à coisa da narração - quer dizer, à história - e o plano da narrativa refere-se ao como - quer dizer, ao conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o texto narrativo. De um lado, tem-se a story e, do outro o discourse. Assim, é evidente que o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o plano da fábula-story mas, sim, o plano da narrativa-discourse, porque em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo-se por forma, esclareça-se, não a que em tempos idos foi definida como expressão da beleza, porém o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico. O que significa dizer: tanto no cinema como no romance, é o discurso que escolhe a fábula que lhe parece mais funcional.O fundamental é compreender que o lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada, sempre na condição de o ser em sentido polívoco e não banal. A polivalência semântica se constitui na conditio sine qua non da artisticidade relativamente a qualquer sistema expressivo. A distinção entre fábula e narrativa pode parecer artificial, no entanto, quando se está diante de obras em que os dois planos caminham paralelos e em perfeita harmonia. Ocorre sempre nos filmes que seguem os cânones do naturalismo, nos quais a conotação tende para o grau zero e a coisa impõe uma espécie de ditadura sobre o como ou, melhor, a história, a fábula, exerce, uma ascendência sobre a narrativa. Isso pode ser constatado nos filmes nos quais a ação da linguagem está completamente a serviço dos personagens, sendo estes últimos apresentados como pré-existentes à obra e dotados de uma autonomia extrapoética. Nestes casos, tem-se evidente a mistificação pelo uso passivo e mentiroso da linguagem, considerando-se que a função precípua das linguagens artísticas é a de recriar o mundo e não copiá-lo nas suas aparências.Por outro lado, a distinção entre fábula e narrativa se encontra plenamente legitimada nos filmes em que os dois planos se dissociam para refutar-se - ou, pelo menos, controlar-se - alternadamente. Pode acontecer, de fato, que, no decorrer do filme, a mensagem expressa pela fábula seja contrariada pela mensagem expressa pela narrativa. Neste caso, a narrativa provoca sutilmente a erosão da fábula a ponto, inclusive, de produzir um significado real oposto ou divergente do que se extrairia de uma leitura fílmica limitada exclusivamente aos valores da história - ou da fábula.Em A laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), de Stanley Kubrick, filme que permaneceu nove anos proibido de exibição no Brasil - justamente por causa da acidez de sua fábula, a ironia da narrativa encarrega-se de neutralizar a violência da fábula. À guisa de ilustração: Alex e seus amigos, rebeldes sem causa, adeptos da ultraviolência, invadem a casa de um famoso escritor, espancando este e sua esposa com requinte de perversidade. Mas enquanto Kubrick mostra a violência do ataque a trilha sonora apresenta a voz de Gene Kelly cantando na chuva. Em outro filme, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, o personagem vivido por Paulo Autran, um político arrivista e demagogo, é visto sob a ótica de várias tomadas (ou planos) enquanto uma voz em off, radiofônica e séria contrasta com o tom de deboche do personagem que ri às gargalhadas. Já em Mouchette (1967), de Robert Bresson, a verdadeira crueldade não reside tanto na matéria da história como no rigor formal que caracteriza o plano do discurso.Donde se pode concluir: o verdadeiro significado de um filme situa-se, portanto, numa área marginal relativamente ao seu centro aparente. Há que se ter a consciência da distinção narrativa-fábula porque essencial para compreender a poética de um filme. Na filmografia do cineasta Alfred Hitchcock, segundo análise de Eric Rohmer e Claude Chabrol, o conteúdo é a forma, o que, a rigor, não se aplica apenas a esse autor de filmes mas a todas as obras de autênticos autores da história do cinema, obras cujo distintivo consiste numa carga de sentido que só se esgota mediante uma leitura em profundidade. É o discurso, nesse sentido, que, nas obras plenas de artisticidade, por assim dizer, escolhe a fábula que lhe pareça mais funcional.