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05 agosto 2010

"Hatari!", de Howard Hawks

Em O desprezo (Le mépris, 1963), de Jean-Luc Godard, há um travelling que acompanha Brigitte Bardot a andar pela rua, tendo, ao fundo, um muro com alguns cartazes de cinema, entre eles, e com destaque, o de Hatari! (1962), de Howard Hawks. Hatari! talvez possa ser considerado o filme-síntese desse extraordinário diretor americano cuja filmografia se divide em obras de vários gêneros: as comédias (Levada de breca, O inventor da mocidade,Bola de fogo...), os westerns (Onde começa o inferno/Rio Bravo, Rio Vermelho, Eldorado, Rio Lobo), o thriller (À beira do abismo/The big sleep), o musical (Os homens preferem as louras) etc. Apesar da variedade de gêneros, um realizador que pode ser considerado um autor pelas constantes temáticas e estilísticas. O que veio a ser proclamado pelos redatores do Cahiers du Cinema durante a década de 50. Mas Hawks muda de tom quando se trata de comédias, que se caracterizam pela anarquia das situações, a fazer ver uma personalidade escondida nos filmes que não enveredam pela comediografia.
Em Hatari!, filmado in loco, na África, segundo François Truffaut, Haws satisfaz a sua paixão pelo cinema e pela caça. Talvez hoje, nestes tempos melancólicos do politicamente correto, não seria possível a realização de um filme como este. Que trata de um grupo de homens de várias nacionalidades (John Wayne, americano, Hardy Kruger, alemão, Gérard Blain, francês...) que se encontra na África para caçar rinocerantes e outros animais selvagens para levar aos jardins zoológicos de seus países. As cenas de caça são eletrizantes, principalmente a da caçada ao rinoceronte. Se, por um lado, há ação nestes cenas, por outro, Hawks se concentra mais nos momentos de espera da caça, quando aproveita para a criação de situações interessantes e para analisar o comportamento de seus personagens. Hatari! é, portanto, um filme sobre a espera, assim como em Onde começa o inferno/Rio Bravo, quando a inação se concentra mais na delegacia enquanto Wayne e seus colegas esperam o momento final decisivo.
Elsa Martinelli, atriz italiana que se deu bem no cinema americano, é o contraponto de Hatari! A cena em que ela foge, e os seus pequenos elefantes vão procurá-la, é antológica. A partitura de Henri Mancini ficou para sempre na memória.

04 agosto 2010

Diverticulite

1) O que massacra a estrutura narrativa de O Bem Amado, de Guel Arraes, são os cortes rápidos, a estética do videoclip que, infelizmente, está a se incorporar ao espetáculo cinematográfico. Com tal procedimento, fica muito difícil se contemplar a tomada, e, em consequência, tudo passa muito velozmente. Assim procedeu A Arraes com a versão para o cinema de O Auto da Compadecida, que, primeiro apresentada em série na televisão, quando reduzida para a tela, ficou com uma montagem muito cheia de cortes. Mas o interessante é que O Auto da Compadecida funcionou bem no aparelho doméstico da TV, porque, justamente, não se acelerou seu ritmo.

2) Sobre fosse O Bem Amado um filme a estimar, caso não houvesse a tesourinha agindo no seu despedaçamento, mesmo assim seria difícil esquecer o grande Paulo Gracindo no personagem principal. Marco Nanini (ator consagrado e convincente em seus trabalhos) tem, aqui, um dos piores desempenhos de sua carreira. O seu Odorico Paraguaçu é apenas um pálido reflexo da encarnação de Paulo Gracindo.

3) Admirador da série televisiva de O Bem Amado, a sua constatação nesta versão cinematográfica vai além da decepção, pois o filme, pleno de defeitos estruturais no concernente ao ritmo, não convence como espetáculo. Em Salvador, nos esfuziantes anos 60, Álvaro Guimarães (Caveira my friend) montou uma peça baseada nesse mesmo texto de Dias Gomes e a intitulou Uma obra de governo. Na época, o teatro queria parecer se reinventar. Como se pôde ver, também, na antológica Stop, stop, de João Augusto.

4) Baseado na obra de Dias Gomes, O Bem Amado conta a história do prefeito Odorico Paraguaçu, que tem como meta prioritária em sua administração, na cidade de Sucupira, a inauguração de um cemitério. De um lado é apoiado pelas irmãs Cajazeiras. Do outro, tem que lutar contra a forte oposição liderada por Vladimir, dono do jornaleco da cidade. Por falta de defunto, o prefeito nunca consegue realizar sua meta. Nem mesmo a chegada de Ernesto - um moribundo que não morre - e a contratação de Zeca Diabo, um cangaceiro matador, lhe proporcionam a realização do sonho. Odorico arma situações para que alguém morra, mas o primeiro corpo a ser sepultado em Sucupira será o do próprio prefeito, que de caçador se torna caça e passa de vilão à mártir.
Produzido por Paula Lavigne e escrito e dirigido por Guel Arres, O Bem Amado tem Marco Nanini no papel de Odorico Paraguaçu, Matheus Nachtergale como Dirceu Borboleta (tudo bem, tá certo, Nachtergale é um ótimo ator, mas fica léguas de distância do inesquecível Dirceu de Emiliano Queiroz), José Wilker como Zeca Diabo (e este vai ser sempre o Lima Duarte da série), Andréa Beltrão, Drica Moraes e Zezé Polessa como as Irmãs Cajazeiras, Maria Flor como Violeta, Tonico Pereira como Vladmir, Caio Blat como Neco e Edmilson Barros como Chico Moleza. Um filme totalmente equivocado.

5) Revendo Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli, 1960), de Luchino Visconti, num DVD da Versátil, que o lançou há algum tempo em cópia luminosa, ainda que possa estar errado, senti que Visconti sofreu influência (mesmo que inconsciente) de Os irmãos Karamázov, o monumento literário de Fiodor Dostoievsky. É a tal da angústia da influência sobre a qual escreveu o crítico americano Harold Bloom, que disse que todos os livros escritos depois de Hamlet, de William Shakespeare, possuem influências deste. Hamlet seria o cânone da literatura ocidental.

6) O personagem de Rocco, interpretado por Alain Delon, assemelha-se muito a Aliocha do livro de Dostoiesky. E Rocco e seus irmãos, na verdade, trata-se da história de uma família (como denominou Dostoievsky à sua obra-prima, uma tragédia familiar, portanto). Simone, na excepcional performance de Renato Salvatori, não seria Dimitri? Influências geram influências, e ousaria dizer mesmo que O poderoso chefão (The godfather, 1972, 1974, 1990), de Francis Ford Coppola, bebeu nas águas de Rocco i suoi fratelli.

7) Entre os meus filmes favoritos, está Rocco i suoi fratelli, que vi na década de 60 e que continuei a vê-lo sempre que era exibido. Creio que o melhor de Luchino Visconti, este esteta, este perfeccionista, nobre, descendente da nobreza, mas que abraçou o marxismo. Uma mãe (e também aqui ressoa a mãe coragem brechtiana) sai de Lucania, região pobre no sul da Itália, e vai tentar a vida em Milão com seus cinco filhos. Não se pode esquecer a cena do assassinado de Nádia por Simone, um dos grandes momentos do cinema em todos os tempos. Por falar em Rocco i suoi fratelli é bom de ver que está a completar, neste 2010, 50 anos. Meio século? Sim, por incrível que pareça. Trata-se de uma obra cinematográfica que me acompanhou a vida inteira como ponto de referência. O DVD está meio esgotado, mas, com paciência, na internet, pode-se achá-lo.

8) O VI Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual teve seu encerramento no fim de semana passada. A Bahia está a comportar quatro eventos, excetuando os mais alternativos, os mais restritos a áreas específicas. O citado Seminário, a Jornada Internacional de Guido Araújo (sempre em setembro), O Panorama Internacional Coisa de Cinema (cujo gestor é Cláudio Marques), o Festival Sala de Arte (Circuito Baianao). O mais movimentado é, sem dúvida, o Seminário, que tem como organizador Walter Lima, que, por sinal, está com um longa saindo do forno: Antonio Conselheiro, o Taumaturgo do Sertão.

9) Conta um ensaísta italiano de cinema (cujo nome neste momento não me vem à memória) que, ao chegar a Paris em novembro de 1960, encontrou três obras-primas simultaneamente em cartaz: A aventura (L’Avventura), de Michelangelo Antonioni, A doce vida (La dolce vita), de Federico Fellini, e Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli), de Luchino Visconti. Que outra época da história do cinema se poderia encontrar assim três filmes fundamentais em lançamentos simultâneos? Não está errado quem diz que da segunda metade dos anos 50 para os inícios dos anos 60 há uma espécie de efervescência criativa sem precedentes no itinerário histórico da arte do filme. Seria, esta época, o Século de Péricles do cinema.

10) Os três filmes citados se encontram disponíveis e já lançados em DVD. Vê-los, é uma obrigação de todo cinéfilo que se preze. Vê-los e revê-los. Sempre.
Publicado no Terra Magazine em 03 de agosto de 2010.

02 agosto 2010

O olhar de John Wayne

Roubei esta foto do blog Chip Hazard (http://chiphazard.zip.net/), do crítico Sérgio Alpendre. Mas aqui postada não ficou com a dimensão e a luminosidade como a publicada no blog citado. Em todo caso, para vê-la maior, mais nítida, e mais grandiosa, é bom dar um clique nela, que vai aparecer em outra janela. Trata-se do olhar de Ethan, o solitário personagem interpretado por John Wayne em Rastros de ódio (The seachers), do grande John Ford, western inexcedível, magnífico, um dos melhores filmes de todos os tempos. Os westerns de Ford são apaixonantes e fascinantes, e mais adjetivos seriam poucos para a expressão de seu valor. Em The seachers, Wayne é um sulista (perdedor da guerra de Secessão americana), que, de volta dela, ao reencontrar alguns de seus familiares, estes são vítimas de um ataque de índios, que levam, com eles, sua sobrinha (Natalie Wood). Com o fito de encontrá-la, parte para a perseguição ao lado de um outro parente (Jeffrey Hunter), que tem sangue de índio. A perseguição, no entanto, leva anos e anos até que a encontra já casada com o chefe indígena. O momento em que a vê nas dunas e, de cavalo, parte para pegá-la, é um momento sublime da história do cinema. Wayne, na verdade, pensa em matá-la, porque, segundo ele, contaminada pela cultura indígena, que detesta. Mas, no ato final, a piedade corroi-lhe a alma. A tomada, quando a entrega à família, e não entra na casa, e parte, andando, solitário, quando o filme se fecha, é outro momento dilacerante.

01 agosto 2010

A crítica como a arte de amar


Tomo a liberdade de transcrever este texto do excelente crítico Diego Assunção responsável pelos escritos do blog Sétima Arte (http://www.cinema-setima-arte.blogspot.com/), que todo bom cinéfilo deveria visitar e tê-lo entre seus favoritos. Como é o meu caso. Ele escreve também na edição da Folha de S.Paulo para Araçatuba (SP).
"Há milhares de clichês sobre a atividade da crítica de cinema e muitos estereótipos sobre os indivíduos que a pratica. Há desde aqueles que pensam ser os críticos meros revoltados até outros tantos que vêem neles seres frustrados que, na impossibilidade de fazerem seus próprios filmes, simplesmente metem o bedelho no trabalho alheio.
"Crítico é o cara que gosta dos filmes que ninguém gosta", diz um. "Crítico é um panaca", diz outro. "Crítico é um nada", completa um terceiro. O mais engraçado de comentários desse tipo é que demonstram que as pessoas parecem conhecer ou ler muito pouco do que esses profissionais escrevem, tratando-os como se fosse uma só voz, ou como se fossem membros de uma gangue que atua num complô para acabar com o prazer do espectador com algum filme.
Crítica é uma atividade tão ingrata quanto qualquer outra profissão, assim como há os bons profissionais e existem os ruins. Não tem segredo nisso. Assim como há bons médicos, têm aqueles que fazem o estilo "açougueiro". Existem críticos que conseguem imprimir em seus escritos um método de trabalho, que passam ao leitor uma experiência de cinema, uma visão capaz de fazê-lo refletir sobre as coisas do mundo, mas também têm aqueles que ficam no ramerrame de comentários que nada dizem, como "oh, como a fotografia do filme X é linda, como tal ator atua bem no filme Y".
Como bem metaforizou certa vez Inácio Araujo, crítico de cinema é um pouco como um juiz de futebol. Se um juiz é o mediador em uma partida de futebol, o crítico de cinema é o árbitro na recepção de um filme, pois ele é o responsável por fazer a ponte entre um filme e o espectador. Assim como um torcedor fica puto da vida quando um juiz assinala um pênalti contra a sua equipe, um crítico de cinema só é bacana até o momento em que não fala mal de um filme adorado por algum leitor.
O papo de desdenhar da atividade crítica por supostamente ser uma atividade relegada aos artistas frustrados também é conversa fiada. "Faz-se crítica quando não se pode fazer arte, do mesmo modo que se é alcagüete quando não se pode ser policial", anotou acertadamente o escritor Gustave Flaubert. Um alcagüete auxilia o trabalho policial sem realmente fazê-lo, com crítica é a mesma coisa, "os melhores críticos são os que efetivamente contribuem para melhorar a arte que criticam", complementa Ezra Pound.
Acredito que os melhores críticos não são aqueles que têm na ponta da língua o nome de um ator quando se precisa saber dele, nem o cara que sabe de cor todos os ganhadores do Oscar. Bom crítico também não é o profissional que dá notas para os filmes como se avaliasse alguma escola de samba em tempos de carnaval. Crítico respeitável não é o que diz pro leitor qual filme ir assistir ou qual deixar de lado, nada disso.
O crítico que pode realmente contribuir para melhorar a arte que critica é simplesmente aquele que trata o leitor como igual, que respeita a sua inteligência e sensibilidade, o homem que, como afirmou o francês André Bazin, "ao invés de trazer uma verdade inexistente numa bandeja de prata, prolonga o máximo possível o impacto da obra de arte".
“Crítica de cinema é a arte de amar”, afirmou Jean Douchet, o “Sócrates da atividade”, segundo Louis Skorecki. A frase dele diz muito sobre a profissão como nenhuma outra, começando que ela descarta a prática como uma atividade de indivíduos odiosos e também ignora a idéia de que os críticos são seres que deixam de experimentar os filmes para lê-los, tendo uma visão extremamente racional, como a de um médico legista que disseca um cadáver.
Eu penso que uma crítica não deve nunca ser escrita como uma visão de cima pra baixo da obra, devendo assim obedecer à intenção de proteger a verdade e o sentido internos de uma obra contra todo e qualquer historicismo, biografismo e psicologismo.
Como Jacques Derrida, acredito que a grande virtude de um crítico está em reconhecer a força da obra, a força do gênio que a cria. Assim, o trabalho do crítico é o de fazer com que a potência do artista resida no texto.
Se crítica é a arte de amar, de prolongar o impacto de uma obra, creio que ela deve ser escrita um pouco como uma carta de amor e, se possível, ir além: tornar-se um testamento, um manifesto político, uma declaração de guerra.
Um crítico luta por convicções semelhantes às que o cineasta português Pedro Costa persegue com os seus filmes, a de “nunca lutar contra o capital, contra a barbárie, contra o país”, nada disso, mas lutar por alguma coisa, “pela memória, pela justiça, pelo amor”.
É claro que a atividade crítica anda desprestigiada, mas o bom cinema também está desacreditado. A verdade é que o público não anda muito interessado nos filmes que vão além do passatempo, aí fica realmente difícil a reflexão competir com a indução, a inquietação confrontar a conformidade, a crítica de cinema se sobressair à publicidade."

"Os guarda-chuvas do amor", de Jacques Demy


É um filme deveras fascinante. Não me canso de revê-lo. E, no gênero, único na história do cinema, de uma originalidade surpreendente. Jacques Demy, seu diretor, é um poeta. O texto já foi publicado neste blog, mas vai mais uma vez. Afinal de contas, hoje é domingo.
O autor dessa proeza original - e única na história do cinema, o francês Jacques Demy, pertence à Nouvelle Vague, mas pode ser considerado um cineasta atípico. Dá início a sua carreira com um curta, Le Sabotier de Val du Loire, em 1956, ao qual se seguem outros três em anos sucessivos, entre eles, Le Bel Indiferent (O Belo Indiferente), inspirado no texto aclamado de Jean Cocteau. Em pleno auge do movimento - do qual participa com filmes e a amizade de Truffaut, Rohmer, Chabrol..., dirige o seu primeiro longa metragem, Lola, A Flor Proibida (Lola), revelando-se um dos talentos mais sugestivos do movimento.
Lola, iluminado pelo artista da luz Raoul Coutard - um dos principais diretores de fotografia da Nouvelle Vague, já anuncia, de certa forma, Os Guarda-Chuvas do Amor, pois todo ele é conduzido em ritmo de balé, com amor e humor, traduzindo com extremo lirismo as paisagens de Nantes. Georges Sadoul, historiador francês, enquadra Lola numa espécie de "neo-realismo poético", aproximando-o de As Damas do Bois de Bologne, do jansenista Robert Bresson. Para uma introdução na poética de Les Parapluies de Cherbourg, é bom que se veja um pouco de Lola, cujo personagem (Anouk Aimée), dançarina de cabaré em Nantes, cortejada sempre por um amigo de infância (Marc Michel), reencontra o seu amor perdido com o qual, há alguns anos, tivera um filho, e, neste reencontro, ela se casa com ele.
Os personagens, em Les parapluies de Cherbourg, dizem suas falas cantando ao ritmo dos arranjos belíssimos de Michel Legrand. Pode-se, no caso deste filme, falar em co-autoria entre Demy e Legrand, tal a conjunção perfeita entre musicalidade e ação dramática. Daí se dizer que Les Parapluies de Cherbourg é uma película que se estabelece como mise-en-musique. Assim como em outra obra excepcional - e pouco vista e apreciada - que é Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, 1966), com Catherine Deneuve e Françoise Dorleac - sua irmã que seria vítima, logo após a conclusão do filme, de trágico acidente. Catherine Deneuve em princípio de carreira - já tinha trabalhado com Roger Vadim antes de Demy - é a terna Geneviève que está noiva de Guy (Nino Castelnuovo), mas este, de repente, é convocado para a guerra da Argélia. Esperando o noivo voltar, ela se vê obrigada a confessar à mãe (Anne Vernon) que está grávida de Guy. O tempo passa. A mãe, desesperada, obriga a filha a se casar com um pretendente, Roland Cassard (Marc Michel), rico proprietário de uma loja de jóias. Ela, conformada, aceita. O tempo passa. Guy volta da guerra, ferido, procura Geneviève mas não a encontra. Sua tia Elisa está morta e, para não ficar sozinho, busca consolo em Madeleine (Ellen Farmer), uma mulher que cuidava de Elisa quando doente e que sempre o amou em silêncio. O tempo passa. Guy, já casado com Madeleine, abre um posto de gasolina na periferia de Cherbourg. Numa noite de Natal, Geneviève aparece, rica e charmosa, num reluzente carro de luxo, para colocar gasolina. Guy a vê e ambos tentam um diálogo mas nada mais têm a dizer.
Obra-prima, que reflete sobre a memória, a recordação, a nostalgia e a fugacidade do amor, Les Parapluies de Cherbourg, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1964, derrotando, inclusive, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, tem uma fábula que, à primeira vista, e se exposta pela narrativa oral, pode parecer uma história destinada às revistas sentimentais. Jacques Demy, no entanto, com sua varinha mágica, com sua mise-en-scène original, transforma-a numa espécie de conto poético musicado que é experiência que transcende o musical cinematográfico clássico americano.
O que torna Os Guarda-Chuvas do Amor uma obra de rara transcendência se encontra numa conjunção de fatores. Em primeiro lugar, a concepção da mise-en-scène de Demy, mas outros elementos ajudam a potencializar o encanto desse filme inesquecível: a deslumbrante fotografia de um artista que é Jean Rabier, que usa, aqui, a iluminação em função do tecido dramatúrgico; a cenografia de Bernard Evein, que utiliza fundos de papel pintado que estabelecem sutis acordes com os estados de ânimo dos personagens; e, claro, os diálogos todos cantados segundo as melodias do maestro Michel Legrand.