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25 agosto 2005
REENCARNAÇÃO
Visto com reservas quando lançado no circuito, e esnobado como um filme vulgar sobre alma de outro mundo, Reencarnação (Birth, 2004), de Jonathan Glazer, tem, agora, em DVD, a oportunidade de ser reavaliado para se constatar da sua excelência. Se o título em português pode indicar uma fita espírita, por assim dizer, o espectador, por isso, talvez tenha abdicado de sua contemplação, mas se trata de uma obra de construção narrativa exemplar e um rigoroso estudo de comportamentos dentro de uma chave de observação de normalidade absoluta. O sobrenatural, evidentemente, paira todo momento no decorrer de Birth, mas o olhar de Glazer é um olhar que se poderia chamar quase ‘documentário’ com um cinema colocado em forte entonação. Fugindo da estética do vídeo-clip atual, Glazer preferiu dar à narrativa um tom solene e lento a fim de melhor criar a atmosfera e perscrutar os personagens. A lentidão, no entanto, está de acordo com as propostas do filme e provoca melhor o espectador do que se manipulado em tomadas aligeiradas e cortes incessantes. A lentidão, aqui, prende aquele que o assiste, que fica totalmente absorvido com o andamento da narrativa. Uma surpresa, portanto, Birth, filme que mostra que um assunto pode render muito se há, no cineasta, engenho e arte, talento, em suma. E Nicole Kidman, personagem principal, está inexcedível, situando-se como uma das atrizes mais atraentes e talentosas do cinema contemporâneo.
Glazer usa, com muita habilidade, o big close up, que poderia resultar em desarmonia por um cineasta que não tivesse a exata noção da utilização do rosto humano para fins expressivos. Há uma tomada digna de mestre, quando Nicole Kidman e o noivo entram na sala de um teatro, e a câmera se movimenta para acompanhá-los. Eles chegam atrasados e todos já se encontram em seus lugares. A câmera, sem cortes, acompanhando-os, fecha em close up no rosto de Kidman e aí permanece por algum tempo – considerando o tempo cinematográfico, poder-se-ia dizer, por muito tempo. A expressão da atriz, confusa, desesperada, em dúvida, é magnífica, e ela, por meio de suas contrações faciais, expressa o seu tormento interior.
O roteiro de Birth é de Jean-Claude Carrière (em parceria com Milo Addica), que escreveu os ‘scripts’ da última fase de Luis Buñuel, sendo considerado um dos mais talentosos roteiristas do cinema contemporâneo. Birth gira em torno de uma provável reencarnação do marido de Kidman num garoto de 10 anos. O tempo que passou desde a morte de seu esposo, quando decide, após várias tentativas frustradas de um apaixonado, ceder as pressões e marcar o casamento. Mas, de repente, surge o menino que diz ser Sean, o nome do falecido marido dela. Ele, narrando fatos pretéritos somente conhecidos do casal, convence Kidman de que realmente é o marido reencarnado. A tensão aumenta quando o garoto começa a perturbar a família, principalmente ao noivo dela, que, perturbado, agride-o.
O que está em jogo, em Birth, do ponto de vista da linguagem cinematográfica, é o apurado sentido de Jonathan Glazer em relação ao ‘conceito de duração’. Saber fazer durar uma tomada e, dela, extrair um grande poder de convencimento, é tarefa para poucos e, entre estes poucos, estão Coppola, Kubrick, e alguns mestres. Do ponto de vista temático, o sobrenatural paira para despertar o interesse do espectador, mas o filme não se restringe a isso, procurando, com seus detalhes, pesquisar comportamentos de pessoas em determinadas situações que se poderiam considerar limítrofes.
Além da bela e sensual, sensual e bela Nicole Kidman (que nasceu em Honolulu, Hawaii), destaque para o menino que se diz estar reencarnado interpretado por Cameron Bright, Alison Elliot, como Laura, a irmã de Kidman, Peter Stormare, como o amigo, Anne Heche, Danny Huston, no papel do noivo, e, por fim, a veterana Lauren Bacall, maltratada pelo tempo aos 80 anos, um pálido reflexo da bela jovem que um dia se casou com o mito Humphrey Bogart. Mas é uma atriz ainda capaz de convencer.
A aparência de absoluta normalidade, a vida mostrada nos seus gestos cotidianos, a ausência de efeitos, e o rigor da construção, fazem de Birth um dos bons lançamentos desse ano de 2005, que já se vai pelo meio de seu itinerário.
Glazer usa, com muita habilidade, o big close up, que poderia resultar em desarmonia por um cineasta que não tivesse a exata noção da utilização do rosto humano para fins expressivos. Há uma tomada digna de mestre, quando Nicole Kidman e o noivo entram na sala de um teatro, e a câmera se movimenta para acompanhá-los. Eles chegam atrasados e todos já se encontram em seus lugares. A câmera, sem cortes, acompanhando-os, fecha em close up no rosto de Kidman e aí permanece por algum tempo – considerando o tempo cinematográfico, poder-se-ia dizer, por muito tempo. A expressão da atriz, confusa, desesperada, em dúvida, é magnífica, e ela, por meio de suas contrações faciais, expressa o seu tormento interior.
O roteiro de Birth é de Jean-Claude Carrière (em parceria com Milo Addica), que escreveu os ‘scripts’ da última fase de Luis Buñuel, sendo considerado um dos mais talentosos roteiristas do cinema contemporâneo. Birth gira em torno de uma provável reencarnação do marido de Kidman num garoto de 10 anos. O tempo que passou desde a morte de seu esposo, quando decide, após várias tentativas frustradas de um apaixonado, ceder as pressões e marcar o casamento. Mas, de repente, surge o menino que diz ser Sean, o nome do falecido marido dela. Ele, narrando fatos pretéritos somente conhecidos do casal, convence Kidman de que realmente é o marido reencarnado. A tensão aumenta quando o garoto começa a perturbar a família, principalmente ao noivo dela, que, perturbado, agride-o.
O que está em jogo, em Birth, do ponto de vista da linguagem cinematográfica, é o apurado sentido de Jonathan Glazer em relação ao ‘conceito de duração’. Saber fazer durar uma tomada e, dela, extrair um grande poder de convencimento, é tarefa para poucos e, entre estes poucos, estão Coppola, Kubrick, e alguns mestres. Do ponto de vista temático, o sobrenatural paira para despertar o interesse do espectador, mas o filme não se restringe a isso, procurando, com seus detalhes, pesquisar comportamentos de pessoas em determinadas situações que se poderiam considerar limítrofes.
Além da bela e sensual, sensual e bela Nicole Kidman (que nasceu em Honolulu, Hawaii), destaque para o menino que se diz estar reencarnado interpretado por Cameron Bright, Alison Elliot, como Laura, a irmã de Kidman, Peter Stormare, como o amigo, Anne Heche, Danny Huston, no papel do noivo, e, por fim, a veterana Lauren Bacall, maltratada pelo tempo aos 80 anos, um pálido reflexo da bela jovem que um dia se casou com o mito Humphrey Bogart. Mas é uma atriz ainda capaz de convencer.
A aparência de absoluta normalidade, a vida mostrada nos seus gestos cotidianos, a ausência de efeitos, e o rigor da construção, fazem de Birth um dos bons lançamentos desse ano de 2005, que já se vai pelo meio de seu itinerário.
INTRODUÇÃO AO CINEMA (11)
Linguagem órfã de língua
Linguagem órfã de língua, o cinema não necessita nem de vocabulário nem de gramáticas, mas de um repertório estilístico no que se refere aos métodos expressivos; um repertório estilístico ao nível da organização da estrutura das grandes unidades significantes - as seqüências. Assim, esta necessidade está muito mais vinculada à organização seqüencial do que, propriamente, à organização do enquadramento singular. Num filme, aquilo que a retórica antiga chamava de elocutio tem individualmente menor importância do que a dispositio justamente porque os enquadramentos singulares não possuem autonomia, mas estão relacionados entre si no interior da seqüência e esta, dentro do contexto geral da obra cinematográfica, se relaciona dentro de uma ampla estrutura.Se se quiser reproduzir, no papel, os fotogramas de um filme - como se faz em alguns catálogos e livros de luxo publicados principalmente na Europa e Estados Unidos - não se tem uma compreensão da obra como um todo, por causa da dimensão dinâmica característica da arte do filme. Assim, se é incorreto falar de uma hipotética língua cinematográfica, igualmente ilusório é confiar no realismo ontológico da imagem fílmica. Estas noções provocaram diferentes formas de ditadura: a ditadura do enquadramento-signo - pela qual foram responsáveis os cineastas soviéticos dos anos 20, com Serguei Eisenstein à frente - e a ditadura do enquadramento-fato - camisa-de-força na qual se prenderam os exegetas mais acirrados do neo-realismo italiano do pós-guerra. Trata-se, aqui, de duas manifestações do imperialismo linguístico: no caso da primeira, a ditadura do enquadramento-signo, por causa de um excesso de abstração; no caso da segunda, a da ditadura do enquadramento-fato, por causa de um excesso de produção. Ambas podem ser redutíveis a uma substancial incompreensão da natureza alusiva do cinema.O enquadramento de uma parcela da realidade não é o signo convencional nem, também, a mimese perfeita do original, mas, pelo contrário, uma interpretação discreta. Esta interpretação carrega, de fato, um significado de seu objeto, sem contudo negá-lo. É de se ver que os dois planos da denotação e da conotação coexistem, mas não se excluem alternadamente.Há, todavia, casos nos quais existe exclusão do plano da denotação para o plano da conotação. Isso ocorre quando há a prevalência da prática intelectualista ou da prática naturalista, ou seja, perante casos em que se tem o discurso sem mundo ou o mundo sem discurso, ainda que o cinema, por sua própria natureza, possua a faculdade inédita já referida de, conjugando os momentos de racionalidade e natureza, transformar o mundo em discurso. E o vocábulo natureza, aqui, não significa naturalismo - na medida em que também no cinema, como em qualquer outra atividade que se quer artística, o verossímil é, de longe, preferível, ao verdadeiro, pois como preliminar a qualquer operação artística os elementos constituintes de realidade devem ser recriados poeticamente.O que importa não é fazer ver as coisas, mas, e principalmente, dar uma idéia dessas mesmas coisas, isto quer dizer: é muito mais provável tornar crível na tela uma cena fictícia do que uma cena verdadeira. Veja, como exemplo, o testemunho de Pudovkin - cineasta soviético dos anos 20, que, tendo de representar a explosão provocada por um tiro de canhão, se viu obrigado a construí-la. É o mesmo Pudovkin quem sublinhou a grande importância da escolha do material plástico para a eficácia dramática de uma cena . E este material não é, de fato, o simples conjunto dos pormenores visíveis capazes de sugerir atributos invisíveis como os pensamentos ocultos dos personagens ou os seus sentimentos profundos?A conotação sugestionante do enquadramento é determinado pelo caráter ambíguo da imagem fílmica, porque corresponde, de fato, o enquadramento, não à palavra mas à frase, embora se constituindo na partícula mínima da cadeia linguística. Presta-se, portanto, o enquadramento, a ser lido em vários níveis como uma expressão verbal suscetível de diversas interpretações, apesar de não infinitas, tendo em vista que a intencionalidade significante do cineasta realiza, apenas, uma escolha limitada entre a gama de sentidos possíveis. O enquadramento não pode ter sentido equívoco nem unívoco, pois neste último caso a univocidade viria a contrariar a impressão de realidade, impressão esta que distingue o cinema, como se viu, dos signos arbitrários que constituem a língua verbal empregada com uma finalidade puramente denotativa.A natureza escritural do cinemaDe cópia servil da realidade, como se considerava o cinema nos seus primórdios ou ainda mesmo nos seus primeiros decênios, o cinema, liberto da corrente que o vinculava à representação, pôde competir com a literatura na produção do imaginário, fazendo emergir a sua natureza escritural. Somando-se ao caráter alusivo e ambíguo da imagem fílmica a intervenção de outros procedimentos expressivos, como a montagem (visual e sonora), os movimentos de câmera e a utilização psicológica da cor, vê-se desmoronada a ilusão realista em favor de uma concepção antimimética do cinema. As imagens cinematográficas, assim, podem organizar-se num contexto autônomo que passa a suscitar todo um leque de hipóteses - e não mais, e apenas, uma única linha de leitura. No cinema, a rigor, não existe texto dramático e encenação - aqui entendida esta com a que se estabelece no proscênio, mas e tão-somente, escrita e estilo - como acontece, aliás, no romance. Isto significa que um filme só se representa a si próprio, que o único tempo que importa é o tempo do filme, assim como a única personagem importante é o espectador, pois é na cabeça deste que se desenvolve toda a ação que é, precisamente, imaginada por ele, segundo fala Alain Robbe-Grillet. Em outras palavras: a coisa mais importante num filme não é a história mas o discurso, ou seja, o como e não o objeto da narrativa, resultando este do primeiro - e não vice-versa.A língua, como proclama Saussure nos seus escritos, é ao mesmo tempo um produto social da capacidade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita. Assim, o fato da língua é múltiplo por definição: existe um grande número de línguas diferentes, mas não há linguagem cinematográfica específica a uma comunidade cultural. Ou, como diz Jacques Aumont: "Uma das grandes diferenças entre a linguagem cinematográfica e a língua consiste em que, na primeira, as diversas unidades significativas mínimas não têm significado estável e universal. As figuras cinematográficas têm um sentido: não são unidades significativas mínimas; não se pode cortar em dois ou em três um flou, um congelamento da imagem". Assim, estas figuras das quais fala Aumont adquirem um significado preciso em cada contexto, mas, tomadas em si mesmas, não possuem valor fixo. Consideradas intrinsecamente, não se pode dizer nada sobre o seu sentido. Assim, a linguagem cinematográfica apresenta um grau de heterogeneidade uma vez que combina cinco elementos diferentes: (a) - as imagens em movimento e, pendentes destas, as notações gráficas, (b) - letreiros, legendas, inscrições diversas - a trilha sonora, que compreende o som fônico, (c) - diálogos, o som musical, (d) - e o som analógico e (e) - ruídos. Apenas um desses elementos é específico da linguagem cinematográfica : a imagem em movimento. Entre as características fundamentais da imagem fílmica apontadas por Marcel Martin (8) está aquela que a considera, antes de tudo, realista, ou melhor, dotada de todas as aparências da realidade - ou quase todas. A imagem cinematográfica também está sempre no presente, porque, fragmento da realidade exterior, ela se oferece ao presente da percepção e se inscreve no presente da consciência humana, sendo que a defasagem temporal se faz apenas pela intervenção do julgamento, o único capaz de colocar os acontecimentos como passados em relação ao espectador ou de determinar vários planos in (8) está aquela que a considera, antes de tudo, realista, ou melhor, dotada de todas as aparências da realidade - ou quase todas. A imagem cinematográfica também está sempre no presente, porque, fragmento da realidade exterior, ela se oferece ao presente da percepção e se inscreve no presente da consciência humana, sendo que a defasagem temporal se faz apenas pela intervenção do julgamento, o único capaz de colocar os acontecimentos como passados em relação ao espectador ou de determinar vários planos temporais na ação do filme. A imagem fílmica, por conseguinte, suscita no espectador um sentimento de realidade bastante forte para induzí-lo à crença na existência objetiva do que aparece na tela.Mas o cinema tem uma natureza escritural. É representação, é escrita. A representação termina quando a realidade representada cede a palavra à própria representação, isto é, o importante a considerar não é o que se diz no filme, mas sim o que o filme diz. Para isso, é preciso aprender a reconhecer a linguagem no cinema e a captar qualquer mínima manifestação desta. É preciso apreender o comportamento que a câmera adota relativamente à personagem e não tanto seguir o comportamento de uma dada personagem na tela, pois, muitas vezes, a câmera não é cúmplice dos protagonistas nem solidária com eles, antes os corrigindo ou mesmo contradizendo. A câmera pode, em suma, intervir no plano da conotação sem, porém, modificar o plano da denotação. O que leva à constatação de que o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme não é o que se reporta ao comportamento dos protagonistas mas o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica.
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