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05 setembro 2012

Alberto Silva: crítico e humanista


Nos anos 50 e 60, o nome de Alberto Silva era um referencial na crítica de cinema baiana, ainda que sem uma periodicidade muito regular como alguns de seus colegas dessa mesma época (Glauber Rocha e Jeronimo Almeida - pseudônimo de José Gorender no Jornal da Bahia, Hamilton Correia no Diário de Notícias, José Augusto Berbert de Castro em A Tarde, entre outros. Com a homenagem que prestei aqui, neste blog, ao velho guerreiro Athayde, vim a saber da morte de Alberto Silva ocorrida há alguns anos. O desconhecimento, tudo indica, provocado pela ausência absoluta de informações na imprensa baiana, que omite. sempre e sempre, os falecimentos de baianos célebres - por ignorância, falta de memória. Acredito ser ainda tempo de as Quartas Baianas vir a prestar uma homenagem a Alberto Silva e, também, a Carlos Alberto Vaz de Athayde. Nascido em 1940 (dez anos mais velho do que eu), Alberto Silva, se morreu há dois anos, desapareceu com 70 anos, mas já abatido e doente. Lembrando o bravo guerreiro da crítica baiana, publico aqui algumas informações sobre Silva. Vale lembrar que Alberto Silva foi um grande amigo de Athayde.


Jornalista profissional, Alberto Silva nasceu na Bahia a 23 de março de 1940. Em Salvador, foi presidente da Associação dos Críticos Cinematográficos, diretor do jornal Cinema Novo e da Revista da Bahia. Radicados no rio de Janeiro durante anos de sua vida, atuou como crítico cinematográfico de Correio da Manhã, Última Hora, Tribuna da Imprensa, Jornal do Commercio e como crítico literário de O Globo. Foi verbetista da Enciclopédia Mirador Internacional e colaborador das revistas Filme Cultura, Cadernos Brasileiros e Cultura. Foi editor do jornal Letras & Artes.

Dirigiu os filmes Major Cosme e Hospedarias. Escreveu, em 30 anos de militância cinematográfica, diversos argumentos, roteiros e cerca de dois mil artigos e ensaios em colunas especializadas, suplementos literários e revistas culturais de todo o país. Cinema e humanismo recebeu o prêmio de “Melhor Ensaio” (1975) da União Brasileira de Escritores. E A primavera mora na rua.

A PRIMAVERA MORA NA RUA (Editora Achiamé, 84 págs., Rio de Janeiro, 1991.)
 “Demonstra a presença de um escritor com real possibilidade de vir a destacar-se, pois revela criatividade, humour e calor humano, requisitos fundamentais a quem quer que deseje seguir, conseqüentemente, a carreira de letras.”
 Ênio da Silveira – Editora Civilização Brasileira

CINEMA E HUMANISMO (prefácio Alex Viany, 128 págs.,  Editora Palias, Rio de Janeiro, 1975).
“É um dos raros estudos sérios sobre o cinema já escritos no Brasil, e tem inegável mérito”
  Otto Maria Carpeaux

“É um alívio ler um crítico, um ensaísta cinematográfico, que permanece firme nessa de ver com os olhos e sentir com os sentidos – e, mais, olhos e sentidos tão brasileiros (e descolonizados) quanto é possível alguém ter nestes 70 tão multinacionais.”
 Alex Viany

“Enriquece a nossa pobre bibliografia de cinema. (...) Não é um livro morno ou inocente: a instigação polêmica está em todas as suas páginas. (...) Cinema e humanismo é um apanhado sintético do cinema, de hoje e de ontem: visão crítica e histórica, uma soma positiva para a bibliografia brasileira.”
 Assis Brasil

“Bem escrito, caloroso, com uma visão sintética do cinema brasileiro enquanto fenômeno cultural no sentido mais amplo da palavra, isto é, sem perder de vista o entrosamento da cultura com a economia e a sociedade como um todo. (...) Eminentemente opinativo, possui base informativa suficientemente sólida para que as opiniões ganhem valor objetivo, vibração inteligível e um grande poder de movimentação de ideias. (...) Outra qualidade importante a assinalar no livro é o tom quase didático mas nunca esquemático, que o torna muito útil para estudantes de cinema ou jovens em geral interessados no conhecimento do fenômeno cinematográfico.”
 Miguel Borges

Nunca mais
20 anos na Bahia
Ronaldo Werneck


Terrível é saber que nunca mais terei vinte anos nem o corpo intacto como na Bahia de 64. Vinte anos, eu pleno e pronto para todos os prazeres, tabálcoois & tabarizes. Leia-se cigarro, cerveja & Tabariz: a diabólica boate daquela ladeira por trás do Cine Guarany, aquela ali que o Jorge Amado vai retomar mais tarde — o “Novo Tabariz” de seus futuros romances. Tabariz era sinônimo de “vadiar”, como fazia o Vadinho da Dona Flor. Vão-se as virtudes vem a vida, varal de vícios. A Bahia, pelo menos a “minha” Bahia, cheirava a acarajé & sexo, exatamente como Maria Bethânia diria certa vez da lambreta, aquele marisco que a gente entornava com a cerveja da madrugada na Ladeira do Pelourinho: “dá um tesão dos diabos!”. Difícil conciliar futebol e farra. E, antes de qualquer coisa, em 64, como ainda hoje, a Bahia já era uma farra só, imensa e permanente.

“Temos que dormir pelo menos umas quatro horas por noite, Ronaldo. É preciso conservar o corpo pras mulheres”. Sábias essas palavras de Antônio, da jovem turma do cinema baiano dos anos 60, o pessoal com quem eu andava na época. O Antônio que nós chamávamos de “Antônio das Mortes”, brincando com o filme do Glauber. O nosso Antônio das Mortes disse sua histórica frase no exato momento em que o crítico Alberto Silva adentrava a Cantina da Lua, a cara idem, em plena madrugada do Terreiro de Jesus. Há três noites/dias sem dormir, Alberto parecia um zumbi, com uns bons cinco quilos a menos que seu normal, que já não era muito, ele que até hoje conserva sua magreza baiana e bastante.

Nosso crítico predileto encostou-se solene ao balcão do botequim, pediu a clássica batida de limão, e disse que vinha de um aniversário de criança, onde subira numa cadeira e fizera um veemente discurso contra os milicos que tomaram o poder depois da quartelada de abril.  Um espanto, o Alberto. Sóbrio, sempre foi cordato e simpaticíssimo. Bêbado, um revolucionário romântico e, por isso mesmo, eterno.  Lembro de outra madrugada baiana, logo no início daquele abril de 64, dia 2, talvez dia 3, nós dois voltando pra casa: eu e Alberto trôpegos ali pela Rua Chile, vizinhanças do Elevador Lacerda. No Centro da Bahia, o sol já ensolarando todas as cores dia adentro – vermelho-amarelo-azul-verde-azul – lá pelas bandas do mar, por trás do Forte de São Marcelo.

Vício de jornalistas, mesmo bêbados compramos nosso jornal. Continuamos a andar, quer dizer, a tropegar, quando Alberto começa a gritar as manchetes do jornal que lia: “Milicos não duram muito!”. “Jango resiste no Sul!”. “Brizolla pronto para derrubar a quartelada!”. Os baianos que iam pro trabalho àquela hora, quer dizer, uns dois ou três, os baianos, aqueles entes manemolentes, voltavam-se estarrecidos, não acreditando, mas querendo acreditar, nas manchetes inventadas pelo Alberto. Tomamos nosso ônibus rindo muito, a alma lavada. Que maravilha! Melhor, que coisa mais porreta, como dizem os bons baianos. Realmente, Antônio das Mortes tinha razão: a gente precisa dormir pelo menos umas boas quatro horas (aliás, nem carece de quatro horas: dormir com as “boas” já basta) antes de se aventurar em qualquer aniversário de criança.

Pois é, como podem perceber, era preciso dormir bem mais do que isso pra se ficar sob as traves, à espera dos intermináveis tirambaços dos baianos de todas as estirpes e que tentavam me estirpar a qualquer custo da posição de guarda-valas, onde aliás, estava eu perenemente metido – nas invioláveis valas da noite em vão. Era muita noite pra pouco dia: não havia tempo pro futebol na Bahia. Mesmo assim, o time da AABB, comigo sob as traves, ganhou a grande maioria das partidas do início do campeonato e estávamos inclusive seriamente cotados para ir a São Paulo representar a Bahia na disputa do Torneio de Futebol de Salão Bancário. Mas pode um jovem goleiro resistir aos acenos da noite? Depois eu conto.
Jornal Olé nº 17/16 a 31de abril de 1998
Do livro Há Controvérsias 1
Editora Arte Paubrasil, São Paulo, 2009




04 setembro 2012

Ronaldo Werneck e o quixotesco Athayde



Ronaldo Werneck, poeta, escritor, jornalista, conviveu muito em Salvador, nos anos 60, com Carlos Alberto Vaz de Athayde. Lendo neste blog a seu respeito, enviou-me uma mensagem, que é um depoimento muito interessante sobre o saudoso Athayde. Os dados referentes a Werneck foram retirados de seu site http://www.ronaldowerneck.com.br

Ronaldo Werneck nasceu em Cataguases-MG e morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro.
Jornalista, colaborou com vários jornais e revistas cariocas (Jornal do Brasil, Pasquim, Diário de Notícias, Última Hora, Revista Vozes, Revista Poesia Sempre - Biblioteca Nacional). Desde 2001 é Assessor de Comunicação e Editor de Textos da Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, em Cataguases, e Diretor de Comunicação do Cineport, Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa.
Poeta, tem nove livros publicados: Selva Selvaggia (1976), pomba poema (1977), minas em mim e o mar esse trem azul (1999), Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia (2005), Noite Americana/Doris Day by Night (2006), Minerar O Branco (2008), o ensaio Kiryri Rendáua Toribóca Opé – humberto MAURO revisto POR ronaldo WERNECK (2009) e os livros de crônicas Há Controvérsias 1 (2009) e Há Controvérsias 2 (2011). Em 2001, gravou em show ao vivo o cd Dentro & Fora da Melodia/Que papo é esse, poeta?
Editor de Suplementos Literários, ensaista, tradutor e crítico de literatura, cinema e artes plásticas, tem textos e artigos publicados em vários veículos da mídia. Desde os anos 1990, assina a coluna "Há Controvérsias", publicada em vários blogs e no Jornal O Liberal, de Cabo Verde. Produtor Cultural, foi um dos realizadores dos dois Festivais Audiovisuais de Cataguases – Música e Poesia (1969/1970) e Coordenador da Exposição Os Mineiros do Pasquim, em 2008.
Em 2011, lança novo livro de crônicas, Há Controvérsias 2.

Sua mensagem sobre Athayde, que me enviou:
"Caro André,
li no seu blog sobre o Carlos Athayde. Tentei postar um comentário, mas não consegui de forma alguma. Minha ignorância virtual não é nada virtual. Antes, pelo contrário, é mais do que palpável.
Como diz minha filha, "o papai trabalha com email". É o máximo que consigo, embora tenha um blog e um site (claro que os posts são realizados por um amigo "internético").
Mas voltemos ao Athayde, agora sim: via email.
Fui muito amigo dele durante o ano de 1964, quando morei em Salvador. A gente se encontrava quase todas as noites pelos bares da Bahia: eu, Alberto Silva, Roberto Gaguinho e o Bel, todos nós bebendo todas e o Athayde fumando, fumando e bebendo café, café, café. Sempre de gravata e com seu terno escuro, à la Mastroianni/Guido Anselmi do 8 1/2 do Fellini (vimos o filme várias e várias vezes durante a semana em que foi lançado na Bahia). Nosso papo, é claro, girava só e tão-somente sobre cinema, cinema, cinema. Fora o Alberto (com quem retomei contato depois que ele foi pro Rio,  onde morei durante mais de 30 anos e ficamos muito amigos, inclusive trabalhando juntos em jornais, época "carioca" em que também voltei a me encontrar com o Tuna), o meu caríssimo Alberto Silva que desapareceu da minha vida desde que voltei pra Minas, há dez anos, e até hoje não sei onde anda, se está vivo ou não, fora o Alberto, então, só vi meus amigos em passagens esparsas pela Bahia pós-64. Quando, nos anos 1970,  lancei meu livro de poemas Selva Selvaggia em Salvador, na Cantina da Lua, do Clarindo Silva (que está lá firme e forte até hoje, estive com ele há dois anos) o Bel ajudou e muito na divulgação, inclusive agendando uma entrevista na TV Itapoã, onde trabalhava na época. Gaguinho revi algumas outras vezes de passagem por Salvador (lembro-me de um almoço antológico que começou exatamente no Terreiro de Jesus, na Cantina do Clarindo e acabou num botequim lá nos baixos do Pelourinho, com uma moqueca diabólica).  
Mas o Athayde, não. E logo o meu caro Athayde, amigo de longos papos sobre literatura e cinema. Chegamos até a pensar um roteiro de um filme que faríamos juntos, dois personagens antagônicos perdidos numa ilha, roteiro que existiu somente em nossas cabeças e sequer chegou ao papel. Depois andei acompanhando algumas de sua filmagens, inclusive um documentário sobre bombeiros (Vida por Vida?), com cenas realizadas na Feira Água de Meninos, quando daquele incêndio criminoso de 1964 (Gil chegou até a fazer uma canção sobre isso). Lembro-me de nós dois, eu e Athayde, caminhando  entre as tendas da feira, ouvindo sucessivas explosões nas bodegas, todas elas lotadas de garrafas de cachaça.  Em 1965, voltei pro Rio. Trocamos algumas cartas, mas de repente o Athayde sumiu, a vida levou a gente pra outras bandas. Vejo agora no seu blog alguém falando da vontade dele de vir a Cataguases falar com o Humberto Mauro sobre a droga (mescalina) que o velho Mauro dizia que era preciso injetar nas câmeras do nosso cinema. Na verdade, o Humberto Mauro falou isso pra mim numa entrevista que fiz com ele em Volta Grande, nos anos 1970 (devo ter mandado essa entrevista pro Athayde, ou pro Gaguinho, que repassou pra ele). Fui amigo do velho Mauro (inclusive publiquei um alentado livro sobre ele em 2009, "Kiryri Rnedáua Toribóca Opé"). A frase do Mauro, remetendo ao Aldous Huxley do romance "A Ilha", era "é preciso dar uma injeção de mescalina nas câmeras" (Mauro me falava da apatia de nossos cineastas e me perguntou "como é mesmo o nome daquela droga usada pelo Aldous Huxley"?). Não sabia dessa vontade do Athayde de vir a Cataguases falar com o Mauro. Aliás, se viesse, não iria encontrá-lo. Mauro, na verdade, filmou por aqui nos anos 1920. Depois foi pro Rio e por lá ficou até os anos 1960, quando retornou a Volta Grande (onde nasceu) e ficou até sua morte, em 1983.
Pois é, André, como se vê, eu "trabalho mesmo é por email".  Perdão por ter me estendido tanto. É que a a notícia sobre o Athayde em seu blog (e sua morte, que eu não sabia, mas imaginava) me fez voltar a um tempo de juventude e muitos sonhos naquela Bahia dos anos 60. Muitos e muitos sonhos, como os de Carlos Athayde, sonhador compulsivo. Saudade do meu amigo.
Visite meu site:
Grande abraço,
Ronaldo Werneck"

03 setembro 2012

Godard e a efervescência de Maio 68

Jean-Pierre Léaud em A Chinesa (La Chinoise, 1967), de Jean-Luc Godard

Bernardo Bertolucci em Os sonhadores (The dreamers, 2003) evoca a ebulição de Maio de 1968, e o filme tem sua ação localizada neste período, a começar um pouco antes, em fevereiro, quando da demissão de Henri Langlois da Cinemateca Francesa, que veio a provocar intensos protestos da intelectualidade com repercussão internacional. Bertolucci mostra (recriando ficcionalmente) o barulho provocado pelo afastamento do grande pesquisador, cujo responsável foi André Malraux, ministro da Cultura do General De Gaulle, autor do ato demissionário.
François Truffaut considera que Maio de 68 tem início em fevereiro com as manifestações pela readmissão do célebre pesquisador-arqueólogo de filmes. Em Beijos roubados (Baisers volés), filmado em março deste ano, a primeira imagem apresenta a porta da Cinemateca, no Palácio de Chaillot, fechada, e o filme é dedicado a Henri Langlois.
Se em The dreamers há a evocação da época através do recuerdo ficcional, o espírito da juventude "Maio de 68" está bem captada em uma obra do ano anterior, 1967, de Jean-Luc Godard, A chinesa (La chinoise), e se poderia também incluir, nestes registros, um outro filme do cineasta: Week-end à francesa, também de 1967. Godard fazia um filme atrás do outro.
A pesquisadora e historiadora de cinema Ivana Bentes coloca bem a questão em artigo para a Folha de São Paulo: "É que tudo o que virou 'História' em Bertolucci em A chinesa é a matéria mesma do filme-acontecimento, do filme-panfleto de Godard, com demonstrações em quadro-negro, fórmulas visuais, palavras de ordem e signos em rotação. Um filme pop-revolucionário cravado no dorso do presente. Um filme que afirma e põe em cena os discursos a quente: maoísmo, marxismo-leninismo, anarquismo, situacionismo, terrorismo, cinefilismo. Filme-aparelho que nos captura e de onde saímos exaustos e confusos, nunca "bem informados" ou satisfeitos com o saber adquirido.
A satisfação em Godard é essa experiência de estranhamento e polifonia. Mao Tsé-tung transformado em jingle, Mao, Mao. Juliet Berto fantasiada de chinesa diante do tigre da Esso, o rosto pintado como os soldados do Vietnã bombardeando florestas com um napalm imaginário. O discurso é arma, livros, cartazes, grafite, slogans, manchetes de jornais, a fulguração de um pop político. Sartre e Marx decorando paredes, fragmentos de Althusser declamados como poemas, quebra-cabeças filosóficos, jogos agressivos, sátiras ao Partido Comunista Francês, teatro e agit-prop".
Obra que focaliza a absorção do pensamento de Mao Tsé-Tung como consumismo intelectual pelos jovens franceses, La chinoise se passa quase todo dentro de um apartamento, espaço de reflexão e treinamento de maoístas. Veronique (Anne Wiazemsky, a companheira do cineasta depois que ele se separou de Anna Karina, musa de seus filmes), o ator Guillaume (Jean-Pierre Léaud, alter ego de Truffaut nas obras dedicadas ao personagem de Antoine Doinel, a exemplo de Baisers volés, Domicílio conjugal e, principalmente Os incompreendidos/Le quatre-cent coups, que, juntamente com "Acossado"/A bout de souffle, de Godard, detonou a Nouvelle Vague), o economista Henri (Michel Semeniako), o pintor Kirilov (Lex De Bruijn), e a prostituta Yvonne (Juliet Berto, que teve um caso com Glauber Rocha e trabalhou em Claro, que realizou durante o seu exílio italiano nos anos 70), repartem um apartamento e ali aplicam as idéias revolucionárias de Mao-Tsé-Tung.
Em La chinoise, a partir do estabelecimento dos jovens no apartamento, Jean-Luc Godard procura discutir uma causa política, a pôr em pauta a ação, os vícios e os diálogos dos chamados "aprendizes de esquerda", uma parte muito festiva da juventude francesa que se aplica aos ensinamentos de Mao e de sua Revolução Cultural.
Pode-se ver nestes jovens - e a visão de Godard é ácida e crítica - aqueles que um ano depois estariam nas ruas de Paris nas grandes manifestações do celebrado Maio de 68.
Godard não poupa seus estudantes e há, evidente, um propósito claro em condenar a pressa e a fragilidade com que as opiniões se formam para uma militância política discrepante. O cineasta de Acossado faz emergir o debate, apressado, sectário, na superfície das questões ideológicas propostas.
Enclausurados no apartamento, Veronique, por exemplo, planeja o assassinato de um líder universitário, enquanto Henri, ao defender a coexistência pacífica, é expulso do grupo, e, em conseqüência, desiludido, Kirilov se suicida. Mas Veronique concretiza seu plano, o de matar o líder universitário. Quando as férias terminam, e o apartamento, alugado, é entregue a seus donos, todos partem para seus afazeres habituais, e Veronique, como se nada tivesse acontecido, volta, tranqüilamente, às aulas.
"A chinesa" é um filme emblemático de Maio de 1968 e uma das obras mais importantes de Godard que, atualmente, cresceu com o passar do tempo. Se, na época, era um registro dos espíritos indômitos da juventude francesa, atualmente o filme é um testemunho de sua vacuidade. Num momento em que se comemora com tanto alarde a efervescência francesa do período, A chinesa pode servir como documento de uma época, da necessidade e da urgência de uma atitude, de se ser um enragé. Se havia um fulgor contestatório oportuno, por outro lado, muitos entraram na onda para se distrair. A fábula godardiana sobre o "treinamento" de maoístas, para passar o tempo de suas férias escolares, é exemplar nesse sentido. É um filme que precisa ser resgatado.
NOTAS PROVINCIANAS DE MAIO DE 68
Neste maio de 2008, quarenta anos se passaram daquele Maio de 1968, quando a ebulição se fazia presente nos protestos, na movimentação cultural, na ânsia da juventude por um mundo melhor, pela "imaginação no poder".
As grandes manifestações que ocorreram no conturbado Maio de 1968 ficaram restritas aos grandes centros civilizados, principalmente Paris, e no Brasil, se há de convir, vivia-se sob a égide das botas dos militares, mas, mesmo assim, a influência dos acontecimentos exteriores se fez enxergar nas principais capitais brasileiras, notadamente o eixo Rio-São Paulo.
Mas em Maio de 1968, ainda não havia o Ato Institucional número 5, assinado em 13 de dezembro, deste mesmo ano, e o golpe de 64 ainda permitia uma certa movimentação, passeatas (como a dos cem mil no Rio), protestos diversos, propostas artísticas renovadoras, ainda que reprimidas (Roda Viva, entre outros).
A decretação do Ato Institucional número 5 constitui, na verdade, o estabelecimento da ditadura brasileira com o cerceamento completo à liberdade de expressão, ao direito de ir e vir, inclusive com a permissão violenta da violação da correspondência (preceito constitucional). Rasgou-se, com a maior sem cerimônia, a Carta Magna (outorgada pelos milicos, apesar de "promulgada", a fórceps, por um Congresso Nacional rastejante), estabelecendo-se, com isso, o início dos anos de chumbo, que tanto amargaram o brasileiro, que permaneceu acossado 17 anos (sem contar o período de 64 a 68). A linha dura, a mandar às favas os escrúpulos da consciência, tomou o poder.
O que pretendo mostrar aqui nesta coluna é a visão de um jovem de 18 anos, habitante da soterópolis, e, portanto, distante da efervescência do período, durante aquele chamado "ano que nunca terminou".
Estudante do Colégio Estadual da Bahia, o inesquecível Central, a cursar o Clássico (naquela época, depois de findo o ginásio, se podia escolher entre o Clássico e o Científico, que duravam, ambos, três anos, até o jovem, através do vestibular, ingressar na universidade).
O Central era um pólo aglutinador do debate político e, neste centro de ensino, foi onde se formavam as lideranças estudantis, que promoviam passeatas, protestos, pelas ruas de Salvador. O estudante, ao contrário do de hoje, tinha que ser politizado, consciente de sua realidade e com disposição transformadora. Aquele que se mantinha à margem, distante dos acontecimentos, era taxado de "alienado".
A cultura política e literária era uma espécie de "conditio sine qua non" para o estudante se tornar um sujeito "in" dentro de sua escola, perante seus colegas. A leitura de autores como Marcuse, Luckacs, Sartre, Marx, e literatos como James Joyce, Graciliano Ramos, Dostoievsky, entre muitos, muitos outros, fazia parte da vida estudantil. Mas Machado de Assis, que considero o primus inter pares, não estava incluído entre as leituras do período.
Era de bom tom (a usar uma expressão "anti-maio") que os estudantes sobraçassem livros para dar o ar de intelectuais. Era chic se ser intelectual, usar óculos. Paulo Francis, lá em "O Pasquim", já dizia: "Intelectual não vai à praia, intelectual bebe". E, realmente, a dizer a verdade, bebia-se e fumava-se muito. Não havia o culto ao corpo, e até tinha algum "charme" quem cultivasse uma "barriguinha" discreta. Neste particular, é interessante notar que o estudante atlético, forte, preocupado com esportes, era visto de esguelha, de soslaio, como um "alienado" (outra bobagem da época).
E como se lia jornais! Em 1968, o jornal mais disputado eram dois: "Correio da Manhã", com seu quarto caderno (o cultural, com ensaios enormes de Otto Maria Carpeaux, José Lino Grenewald, Paulo Ronai, Antonio Moniz Vianna...), e o "Jornal do Brasil". A "Folha de S. Paulo", que me lembre, não tinha presença no meio intelectual do crepúsculo da década de 60. Pessoalmente, comprava o "JB", o "Correio" e, o "Estado de S.Paulo" dos domingos (um calhamaço difícil de carregar que, comparado com a edição atual, esta vira "peso-pena").
Em comparação, hoje, com os tempos pretéritos, três diferenças básicas: o desprezo pela cultura literária, a inconsciência política e a desimportância dos jornais como "vício diuturno".
O cinema tinha um "status" político muito forte. Acredito que uma das características mais marcantes de 1968 no Brasil (embora tenha se iniciado antes) foi a "Geração Paissandu", que se estabeleceu nas calçadas, em frente ao cinema do mesmo nome, situado à rua Senador Vergueiro, no Rio de Janeiro. Havia, nesta "geração", um espírito de combate, de discussão, que tinha o cinema como mola propulsora.
Os realizadores que eram respeitados eram aqueles que possuíam uma visão de mundo e uma visão do cinema, a exemplo de Jean-Luc Godard, ícone da época, cineasta que usou a arte do filme como um veículo de exposição de pensamentos e idéias, além de alterar profundamente a narrativa cinematográfica ao estabelecer uma fragmentação com a inserção, nela, de materiais de procedências diversas (animação, planos de detalhes de frases de um livro aberto, um ator a ler durante alguns minutos certo trecho, recortes, bonecos, fotografias, etc).

02 setembro 2012

Da expressão glauberiana


A linguagem cinematográfica nos filmes de Glauber Rocha não é uniforme, sofrendo variações estilísticas bem acentuadas, principalmente em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), sem falar no puzzle que é o seu canto de cisne, A idade da terra (1980). Se, antes de Glauber, o cinema brasileiro segue os cânones da narrativa griffithiana (de David Wark Griffith, cineasta americano que faz O Nascimento de uma Nação, em 1914, e Intolerância, em 1916, e é considerado o pai da narrativa cinematográfica), a registrar na sua história poucas ousadias formais – exceção se faça a Limite, 1930, de Mário Peixoto, é a partir dele que são introduzidos conceitos de Sergei Eisenstein no corpus do filme. Em Barravento(1959/1962), ainda que timidamente, a presença do soviético se faz sentir, assim como uma procura de distanciamento dos moldes praticados por Griffith – a narrativa de progressão dramática in crescendo, com a apresentação do conflito, desenvolvimento deste, clímax e desenlace.

Mas é somente a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra que efetua um corte longitudinal na história do cinema brasileiro, que Glauber Rocha instaura um certo paradoxo estético num filme que conjuga várias influências, desde a tragédia grega (o cego Júlio como fio condutor), passando pelo western, na exploração dos grandes espaços, e Buñuel, na seqüência do assassinato do Beato Sebastião por Rosa, até chegar a Eisenstein, na matança dos beatos em Monte Santo (influenciada pela escadaria de Odessa de O Encouraçado Potemkin, 1925) e a Kurosawa, com os rodopios dissonantes de Corisco, entre outros.

O ritmo em Deus e o Diabo na Terra do Sol não segue um mesmo diapasão. Ora vem com cortes rápidos (quando Manuel esfaqueia o fazendeiro ou com os cavalos correndo na invasão da casa do vaqueiro que acaba por matar a sua mãe) num espírito quase fordiano, ora vem com tomadas longas (a segunda parte no encontro de Manuel com Corisco). Glauber Rocha, neste filme extraordinário, por mostrar uma enxurrada de influências, revela que sabe reprocessá-las, dando a elas um estilo, o estilo glauberiano, que seria copiado ad infinitum pelas gerações posteriores sem, contudo, nunca igualá-lo.

Este ritmo paradoxal de Deus e o Diabo na Terra do Sol não seria repetido em Terra em Transe, que possui uma estrutura narrativa de cortes ligeiros, montagem sincopada, e tomadas rápidas. O cineasta opta por este ritmo para adequá-lo melhor à sua temática. Um poeta que agoniza enquanto relembra fatos pretéritos. O filme se passa todo neste instante de agonia e as imagens surgem, portanto, dispersas, não enfeixadas dentro de uma narrativa corrente. Neste caso, é o pensamento tumultuado do personagem interpretado por Jardel Filho que se situa como o próprio móvel do filme. A Biografia de um Aventureiro, onde apresenta a trajetória do político vivido por Paulo Autran, é extremamente wellesiana até mesmo por seu tom radiofônico. O processo do pensamento agônico pode lembrar Alain Resnais.

Em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), Glauber Rocha se apóia numa estrutura de narração que é, poder-se-ia dizer, antípoda da de Terra em Transe. Nela, uma espécie de suite de Deus e o Diabo na Terra do Sol, há uma radicalização estilística já experimentada em Cancer: a dos planos-seqüências – tomadas longas sem cortes. Em O Dragão..., todo filmado na aridez da paisagem de Milagres, no interior baiano, mais conhecido no exterior pelo nome de seu personagem principal, Antonio das Mortes (sempre interpretado por Maurício do Valle), a utilização do plano-seqüência chega às raias da exasperação. Um bom exemplo é a do enterro de Jofre Soares, quando a câmera acompanha uma ladainha e segue, em travelling, o trajeto do funeral. Há, no entanto, na abertura, uma invenção fascinante: Antonio das Mortes surge do lado direito da tela e passa por ela atirando com seu rifle até desaparecer do lado esquerdo. De repente, com o cenário vazio de pessoas, começam a cair vários cangaceiros, que foram atingidos fora do enquadramento. Genial, um verdadeiro cinema de invenção.

Em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro procura uma transfer do ritmo da literatura de cordel para imprimi-la no cinema. A sensação que se tem, vendo este filme, é a sensação de quem lê uma história cordelista, com a diferença de que a transferência de uma linguagem a outra se processa com extrema felicidade. Da palavra escrita, da sintaxe verbal, passa-se à sintaxe cinematográfica que busca aquela.

O cinema glauberiano é um cinema de ritmo, portanto. Barroco, tem o sentido da linguagem, a compreensão de estar criando por meio de uma sintaxe própria, a unir esta à morfologia característica do específico cinematográfico. Um plano é morfológico, mas, quando este plano entra em contato com outro, deixa de sê-lo para dar lugar à sintaxe cinematográfica. Glauber, nesse sentido, é um cineasta que louva o verbo cinematográfico. Poucos os autores no cinema nacional, compreendendo-os como tais, como dizia François Truffaut, que possuem uma visão do mundo e um estilo de fazer cinema. Glauber Rocha encaixa-se perfeitamente na definição do severo crítico do Cahiers du Cinema.