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11 novembro 2011

Hamilton Correia: o colecionador de cartazes

Figura lendária da crítica de cinema na Bahia, Hamilton Correia teve, por muitos anos, uma coluna diária no jornal soteropolitano Diário de Notícias, além de programas em rádio e televisão. Quando editou o seu famoso suplemento literário, publicou um artigo de um jovem meio abusado que se chamava Glauber Rocha. Hamilton Correia, embora muita gente disso não saiba, é o introdutor do autor de Deus e o diabo na terra do sol na imprensa. Amigo de Walter da Silveira, um dos maiores ensaístas de cinema no Brasil, ajudou a programar o Clube de Cinema da Bahia e, um belo dia, indo a Recife, descobriu ninguém menos do que Ingmar Bergman, que passou a ser programado no clube soteropolitano. Aposentado, continua a ver filmes e filmes. É um grande amante do cinema como expressão da arte. Mas a novidade é que, aderindo ao espaço virtual, resolveu fundar um blog. Antes, porém, gostaria de ressaltar que Hamilton, hoje, é um colecionador de cartazes preciosos de filmes importantes da história do cinema.

Certos cartazes de cinema adquirem o status de objetos de arte. Hamilton Correia é, talvez, o maior colecionador de cartazes do Brasil. Possui cartazes de várias cinematografias, a exemplo de reproduções dos originais de O encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, A última gargalhada, de Murnau, Oito e meio, de Federico Fellini, entre muitos e muitos outros. Ter a oportunidade de visitar o seu acervo, como já o tive, é uma espécie assim de viagem pela história do cinema. A dedicação do veterano crítico baiano aos cartazes vem já de algumas décadas, quando foi aos Estados Unidos visitar um filho cardiologista que estava fazendo residência médica, e, na estadia estadunidense, veio a conhecer os cartazes. Segundo ele, na terra do Tio Sam, os cartazes de filmes são muito valorizados, havendo, inclusive, cartórios especializados para o reconhecimento da originalidade deles. Conta que um exibidor de cidade do interior tinha em seu poder, fechadas as portas de seu cinema, o cartaz original de No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), do grande John Ford, arquétipo do western moderno que deu as coordenados do gênero com a introdução da psicologia na estruturação de seus personagens. O exibidor não sabia que o cartaz tinha valor, tendo-o guardado apenas por uma relação afetiva com a obra-prima fordiana. Um colecionador, de passagem pela cidadezinha desse exibidor, vendo o cartaz, poderia tê-lo comprado, mas, honesto, deu-lhe a dica que ele valia uma fortuna. O exibidor procurou saber e conseguiu vendê-lo pela fantástica quantia de 250.000 dólares.

A arte dos cartazes de cinema é fascinante. Por vezes é difícil imaginarmos que em tempo idos a divulgação de um filme dependia de um simples papelão pintado afixado no cinema uns dias antes da estreia. Por isso os artistas gráficos davam o seu melhor e alguns dos grandes aí mostraram o seu talento como Saul Bass, responsável por muitos excelentes genéricos da história do cinema, autor de alguns cartazes que se destacaram dos restantes pelo seu design inovador. Design inovador que foi além dos cartazes para surpreender na abertura dos créditos, a exemplo dos filmes Um corpo que cai (Vertigo), Psicose, Intriga internacional, Os pássaros, todos do mestre Alfred Hitchcock, O homem do braço de ouro, e Anatomia de um crime, ambos de Otto Preminger, e, ainda deste, Bom dia, tristeza, entre outros notáveis.

Hamilton Correia exerceu por várias décadas a crítica de cinema e, com a morte de seu amigo Walter da Silveira, é, hoje, o decano da crítica na Bahia. Participou da imprensa soteropolitana quando existia, aqui, um verdadeiro jornalismo cultural. Uma página inteira do Suplemento Cultural do Diário de Notícias era reservada para a publicação de textos críticos sobre cinema. E Hamilton era quem os editava. Nos outros dias da semana, possuía uma coluna diária para comentar os lançamentos e os filmes do Clube de Cinema da Bahia. Com o passar do tempo, o baiano, que não tem memória, costuma esquecer os seus valores pretéritos. É chega a hora de se instituir um prêmio nos eventos cinematográficos da cidade (ou Cine Futuro, ou Jornada, ou Panorama...) com o nome de Hamilton Correia.

Na página reservada às dedicatórias no livro Fronteiras do cinema, de Walter da Silveira, o ensaísta escreveu: “A Hamilton Correia, com muita amizade.” Agora, já aposentado, mas nunca desatento ao que se passa no mundo do cinema, dedica-se a colecionar cartazes raros e belíssimos. Não apenas colecionar, mas também vendê-los a quem estiver interessado. Integrante da geração de críticos que apareceram na imprensa nos anos 50, Hamilton Correia é do tempo em que Glauber Rocha escrevia no ‘Jornal da Bahia – depois substituído, neste, por José Gorender, que assinava Jerônimo de Almeida, Orlando Senna, Walter Webb, José Augusto Berbert de Castro (em A Tarde), José Olympio da Rocha, e, claro, Walter da Silveira, o maior ensaísta que a Bahia já teve.

Publicado originariamente no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia em 10 de novembro de 2011

Hamilton tem mais de 7.000 cartazes procedentes de todas as partes do mundo e está vendendo cada peça ao módico preço de 10,00 – uma ninharia em se tratando de cartazes de filmes famosos elaborados com arte e inventividade. Ele me deu o seu endereço para publicação: Avenida Princesa Leopoldina, 17, Condomínio Villa Velha – Villa Palma – que fica próximo ao Largo da Graça, descendo a ladeira que vai para a Perini e o Hospital Português. Para telefonar, basta ligar: 32472501. Visitem seu blog na internet: http://www.hamiltoncorreia.blogspot.com

10 novembro 2011

Festival Internacional de Cinema de Salvador

Recebi as informações que estão abaixo sobre o 7 Festival Internacional de Cinema de Salvador. Transcrevo-as:

Começa nesta sexta (dia 11) e segue até o dia 24, nas Saladearte Cinema da UFBA (Vale do Canela), Cinema do Museu (Corredor da Vitória) e também no Cine XIV (Pelourinho), o 7º Festival Internacional de Cinema de Salvador. O festival reúne 30 filmes em cinco mostras: Mostra Wajda - Cinema Polonês, Mostra Mundo, Cine DOC, Cine Brasil e Sessão Coruja. Toda a programação pode ser acompanhada diariamente às 18h30 no Cine XIV, às 18h30 e 20h30 no Cinema da UFBA e às 20h30 no Cinema do Museu, onde, aos sábados, haverá também sessões às 22h30. Os ingressos custam R$ 6 (preço único) no Cine XIV e R$ 7,50 (meia) ou R$ 15 (inteira) nos Cinema da UFBA e do Museu.

Segundo o diretor da Saladearte Marcelo Sá, entre os destaques da Mostra Mundo estão 'Triângulo Amoroso', de Tom Tykwer (diretor de 'Corra, Lola, Corra' e 'Perfume') e 'O Moinho e a Cruz', de Leck Majewski, que recria a pintura épica de Pieter Brugel 'A Procissão para o Calvário'. Na programação do festival também aparece 'Tancredo - A Travessia', de Silvio Tendler, que integra a Cine DOC ao lado de produções da França, Irã e Israel. E atores em cartaz na tevê, como Luana Piovani (A Mulher Invisível) e Otávio Muller (o Djalma da 'Tapas e Beijos'), que participam dos elencos dos filmes da Cine Brasil 'Família vende tudo', de Alain Fresnot, e 'Riscado', de Gustavo Pizzi.

Onze filmes de vários gêneros traçam uma visão abrangente do cinema polonês, através da obra do consagrado diretor Andrzej Wajda, que continua filmando aos 85 anos de idade. A Mostra Wajda - Cinema Polonês traz: Cálamo (Tatarak), A Vingança (Zemsta), Senhor Tadeu (Pan Tadeusz), Korczak (Korczak), Crônica dos Acidentes Amorosos (Kronika Wypadków Milosnych), As Senhoritas de Wilko (Panny Z Wilka), O Maestro (Dyrygent), O Homem de Mármore (Czlowiek Z Marmuru), Tudo à Venda (Wszystko Na Sprzedaz), O Mesclado (Przekladaniec) e Os Magos Inocentes (Niewinni Czarodzieje).

O tema 'De Olho no Mundo', escolhido para a edição 2011 do Festival Internacional de Cinema de Salvador, é uma homenagem ao crítico e criador da Mostra Internacional de Cinema Leon Cakoff, que morreu em 14 de outubro deste ano e inspirou a criação do projeto Saladearte.

09 novembro 2011

A máscara da morte branca

Considerado pelo historiador e ensaísta francês Claude Beylie como uma das obras-primas do cinema, Os olhos sem rosto (Les yeux sans visage, 1960), insólito filme de George Franju, realizado no despertar da Nouvelle Vague, é uma obra atípica e bem característica desse estranho e genial realizador francês. Segundo Beylie, "esta obra de um dos grandes poetas do cinema situa-se a meio caminho entre o grand guignol e o documento clínico." Em Les yeux sans visage, o diretor parece, no começo, fazer um pastiche de algum filme expressionista alemão, lançando-nos, de repente, no mais glacial realismo. Beylie atesta: "de fato, o que mais chama a atenção neste filme não são os doutores sádicos, os subterrâneos escuros ou os cemitérios profanados, mas um carro preto entrando no pátio de um necrotério, os bisturis abrindo uma ferida, a necrose de um enxerto de carne humana. Nenhuma complacência no horror, mas uma rigidez da forma, próxima da catalepsia." Claude Beylie tem um livro essencial, As obras-primas do cinema,  e traduzido em português pela editora Martins Fontes (ao que tudo indica, esgotadíssimo).

Um cirurgião célebre (interpretado por Pierre Brasseur) tem sua única filha (Edith Scob) horrivelmente desfigurada num acidente automobilístico, restando, apenas, intactos, seus olhos. Para tenta restituir-lhe a beleza de antes, ele, com a cumplicidade de uma enfermeira (Alida Valli), não hesita em raptar e mutilar moças sadias para fazer ensaios de enxertos de pele, que, aliás, fracassam um após o outro.

O crítico baiano Adalberto Meireles, em seu blog .C de Cinema (http://pontocedecinema.blog.br/blog/), considera que Os olhos sem rosto é o molde de A pele que habito (La piel que habito), último filme de Pedro Almodóvar que se encontra ainda em cartaz no circuito exibidor.E, realmente, ele tem razão: não é possível que Almodóvar não tenha visto Les yeux sans visage e se impressionado com a obra de Franju.

Deixo aqui o trailer desta obra-prima, chef d'oeuvre do cinema francês em todos os tempos e que foi devidamente distribuida em dvd às locadoras do Brasil para gáudio de todos os amantes do cinema.



08 novembro 2011

Robert Mulligan: evocação e sentimentos

Realizador evocativo, cultor das memórias de tempos idos em alguns filmes, dotado de pleno domínio formal de seu meio de expressão, Robert Mulligan (1925/2008) pode ser considerado um cineasta bem acima da média e que não foi devidamente valorizado, fora alguns filmes ocasionais mais louvados por outros motivos que pela mise-en-scène (como são os casos de O sol é para todos, que deu o Oscar a Gregory Peck, e Houve uma vez um verão).

O blogueiro (ou bloguista), por coincidência, começou a sua trajetória de cinéfilo na mesma época em que Robert Mulligan deu início a seu percurso como realizador cinematográfico, ou seja, em 1957. E, portanto, acompanhou toda a sua filmografia, ainda que os primeiros filmes tenham sido vistos nas constantes reprises que existiam no cinema do passado (a televisão matou a reprise dos filmes). A começar do princípio, não se podia prognosticar o futuro Mulligan em Vencendo o medo (Fear strikes out, 57), uma tentativa biográfica do jogador de beisebol Jim Piersall, interpretado por Anthony Perkins, que se ajusta ao papel, pois o biografado era homem extremamente neurótico, cheio de tiques, manias, e o filme desvenda uma explicação meio freudiana e mostra a causa do desequilíbrio do jogador na infância difícil, dominada por pai severo e rude (Karl Malden). Ainda no cast: Norman Moore.

Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.

A lembrança que se tem de O grande impostor (The great impostor, 1961) é muito boa, ainda que memória de adolescente que nunca mais teve a oportunidade de revê-lo. A vida de um homem (Tony Curtis) que, durante a sua existência, adotou perto de vinte identidades diferentes, saindo ileso de todas as confusões. Além de Curtis, Edmond O'Brien, Karl Malden, e música do grande maestro Henry Mancini. Neste mesmo ano, 61, uma sophisticated comedy que causou enorme sucesso de bilheteria, mas que, crê-se, vista hoje, não se sustentaria: Quando setembro vier (Come september), com Rock Hudson (o queridinho das comédias românticas), Gina Lollobrigida (a italiana sensual), Walter Slezak, Sandra Dee, Bobby Darin. Rock é um milionário que descobre que seu caseiro transformou sua belíssima villa na Itália em hotel. Mas ele se apaixona por uma das hóspedes, a sensual Lollobrigida. As canções foram compostas (e cantadas) por Bobby Darin. Recorda-se que o primeiro plano do filme, em cinemascope, colorido, mostra um imenso avião que, abrindo seu compartimento de bagagens, faz sair, dele, um Rolls Royce de prata. O script é perfumaria de Stanley Shapiro.

Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehicle para Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.

O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.

Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neorrealista em O homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.

Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.

O touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue: À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.

Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.

Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.

Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em O caminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel withou a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.

E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.

Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.

06 novembro 2011

A formação de um cinéfilo

O pouco que sei sobre cinema se deve às minhas constantes idas às salas exibidoras. Cinema se aprende indo ao cinema, já disse José Lino Grunewald, e, neste particular, nada mais verdadeiro. Mas o cinéfilo, que se queira completo, tem que amar aquilo que está a ver, contemplar o seu objeto e investigá-lo. Desde cedo, a começar a me interessar pelo cinema, via-o com interesse e dedicação, a procurar leituras que pudessem me dar uma compreensão melhor daquilo que estava a ver. Existem muitas pessoas que vão constantemente ao cinema, mas não o compreendem, pela simples razão de tê-lo como algo descartável, para passar o tempo, esquecendo-se muito rapidamente do que viu. Alguém, que não me lembro agora, afirmou que a cultura cinematográfica é aquilo que permanece na sua memória algum tempo depois de já tê-lo contemplado.

Não tenho formação cinematográfica acadêmica. Minha experiência com as imagens em movimento é autodidata. Formado em Direito nas priscas eras do século passado (1974), advogado por acidente de percurso, mas sem nunca ter exercido a profissão (a rigor, se entrar no fórum não sei para que lados ficam os principais cartórios nem onde se dá entrada a uma petição inicial), embrenhei-me, depois de formado, pelo jornalismo, e mais tarde, pelo magistério (neste caso, vindo a concluir um mestrado em artes visuais).

Minha formação cinematográfica, como ia dizendo, é, portanto, autodidata, com conhecimentos adquiridos pela visão rigorosa dos filmes e algumas visitas às cinematecas. E a considerar que tenho provectos 61 anos, e que fui pela primeira vez ao cinema aos 5 anos, tenho, já de quilometragem rodada, 56 anos e meio de cinema, meio século, portanto, e mais alguma coisa. Mas a considerar, para ser mais rigoroso, que dos 5 aos 8 a contemplação ainda se fazia pela novidade e pelo assombro da descoberta, poderia dizer que tenho 50 anos de rotina cinematográfica.

No início, anos 50, via muito os filmes de gêneros do cinema americano e chanchadas nacionais. Assim, posso dizer que o meu interesse pela chamada sétima arte se desabrocha com a cinematografia estadunidense, Hollywood, que, ainda no seu ocaso, era, ainda, a fábrica de sonhos. Encantei-me logo com os diversos gêneros. O western, por exemplo, com filmes como "Sem lei e sem alma", "Duelo de titãs", "7 homens e um destino", todos os três do habilidoso John Sturges, com "Rastros de ódio", "O homem que matou o facínora", "Audazes e malditos", todos de John Ford, entre tantos outros, como "Shane", de George Stevens. O musical tinha seu esplendor, seu engenho e arte com os filmes de Vincente Minnelli ("A roda da fortuna", "Gigi") e Stanley Donen ("Cantando na chuva", "Dançando nas nuvens") para ficar apenas em dois diretores.

A comédia sofisticada, o "noir", o melodrama, o filme de guerra, o thriller, enfim, gêneros que determinaram o gosto pelo cinema. Bem de acordo com os postulados da indústria de Hollywood, cujos três principais sustentáculos estavam no "star system" (sistema de estrelas), "system" studio (sistema de estúdios), e a divisão do cinema em gêneros.

Ainda que industrial, o cinema americano tinha filmes adultos e não se encontrava infantilizado como ocorre atualmente. O império ideológico, no entanto, mais adiante, fez com que se desprezasse muitas pérolas oriundas de Hollywood para uma parcela de pessoas ditas intelectualizadas e de esquerda (festiva ou não). Lembro de um amigo que se dizia marxista-leninista que foi flagrado por mim no cinema Liceu (Salvador) na sala de espera de "Moscou contra 007". Ao me ver, num átimo de segundo, e em desabalada carreira, desceu para se esconder nos banheiros. Mas não adiantou: eu o tinha visto. E para um militante, como ele, não ficava bem ver filmes do agente secreto britânico com permissão para matar.

Um filme exerce influência sobre o espectador de acordo com as circunstâncias externas nas quais se o viu. É o caso de "Spartacus", de Stanley Kubrick, que, proibido para menores de 14 anos, vi-o com 11 após quatro tentativas infrutíferas para entrar. Naquela época, existia muito rigor em relação à proibição classificatória dos filmes, a existir, ao lado do porteiro, um comissário de menores na porta para impedir o ingresso deles. Mas existiam algumas sessões nas quais o tal comissário não aparecia, principalmente as sessões das 18 horas. Era o momento da oportunidade.

Mas "Spartacus" provocou no adolescente que eu era um assombro. Aquela tela grande, o épico-histórico narrado com ênfase dramática precisa, a amplidão dos espaços, os intérpretes carismáticos (Laurence Olivier, Kirk Douglas, Tony Curtis, Peter Ustinov...). Mas as circunstâncias externas determinaram muito a envolvência, a idade, etc. Atualmente, mesmo que ainda admire muito "Spartacus", não me vem aquela emoção de tempos idos, principalmente porque falta as tais circunstâncias e vê-lo em DVD não é a mesma coisa que assisti-lo na tela imensa e em cinemascope das salas de exibição.Em meados dos anos 60, em torno de 15 anos, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, que era programado pelo grave e sisudo (e grande ensaísta) Walter da Silveira, que, nesta época, exibia filmes especiais aos sábados pela manhã no cine Guarany. O assombro que tive com "Spartacus" teve recaída quando vi, pela primeira vez, "Hiroshima, mon amour", numa dessas sessões matinais. A partir daí vim a entender que o cinema era também uma expressão artística e não mero "divertissement", embora nunca tenha encarado os filmes como puro entretenimento, mas como fontes de emoções puras.

É preciso, portanto, ver e ver filmes. Mas a visão deve ser intensa e não desinteressada - como acontece, atualmente, com a horda de debilóides que freqüenta os complexos de salas instalados em shoppings. Se a pessoa não se interessa pelo filme, e pensa, durante a sua projeção, no encontro que terá com o namorado e com o vestido que irá usar em determinada balada, dias depois não vai mais se lembrar dele.

Minha formação cinematográfica se deu, portanto, nos cinemas soteropolitanos, e, a seguir, no contato com as obras-primas oferecidas nas exibições matinais do Clube de Cinema da Bahia. A partir daí, nasceu o cinéfilo, que se completou com leituras, investigações e reflexões.