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10 junho 2008

Coisas que tais



A seqüência, perto do final, da luta entre Jofre Soares e Leonardo Villar, onde se vê Maurício do Valle, como um padre, a rondar os dois, é puro Glauber Rocha. Estou a falar de A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos, baseado em Guimarães Rosa. Quando se fizer uma revisão mais apurada do Cinema Novo, ver-se-á a influência de Glauber a pairar por muitos filmes. Deus e o diabo na terra do sol é um marco divisório no cinema brasileiro, um divisor de águas, por assim dizer. A primeira exibição deste filme no Ópera, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, traumatizou duramente os realizadores brasileiros. Conta-se que, quando Glauber Rocha apresentou Deus e o diabo na terra do sol, numa manhã no cinema Guarany, em Salvador, terminada a projeção, houve um silêncio ensudercedor e choros convulsivos.

E onde anda Irene Stefânia? Em um determinado momento do cinema brasileiro, foi uma musa. Nascida em 1944, tem 64 anos. A pergunta pode ser respondida em O signo da cidade, de Carlos Alberto Ricelli e Bruna Lombardi. Mas Irene Stefânia, após o seu auge na segunda metade dos anos 60 (O mundo alegre de Helô, de Carlos Alberto de Souza Barros, Lance maior (1968), de Sílvio Back, Fome de amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos, As armas (1969), de Astolfo Araújo, Os paqueras (1969), de Reginaldo Farias, entre outros, de repente sumiu na década de 70 para ser resgatada por Carlos Reichenbach em Anjos do arrabalde. E agora este ressurgimento na fita de Ricelli.

Há algum tempo publiquei, aqui no blog, a relação dos meus dez favoritos filmes brasileiros e a maioria (80%) era da década de 60, excetuando-se dois. Um deles, Absolutamente certo, deliciosa comédia de costume que é a estréia do galã Anselmo Duarte como diretor. O filme é muito bom e mostra logo o talento de Duarte como metteur-en-scène, que foi, durante a sua vida profissional, bastante desprezado pelos seus colegas. Os cineastas brasileiros nunca lhe perdoaram a Palma de Ouro que ganhou no Festival de Cannes em 1962. O pagador de promessas foi, até hoje, o único filme brasileiro a ganhar uma Palma de Ouro. Houve outras palmas, nas nunca a de melhor filme como a obtida por O pagador de promessas. A de melhor filme de aventuras para O cangaceiro (1953), a de melhor diretor para Glauber Rocha em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (cuja cópia restaurada está sendo exibida nas principais capitais do país), a de melhor curta (Di Cavalcanti, de Glauber), de de atriz (Fernanda Torres em Eu sei que vou te amar, Sandra Corveloni em Linha de passe).

Anselmo Duarte fez um ótimo trabalho em Veredas da salvação, que realizou após O pagador de promessas. Mas a crítica lhe fez vista grossa. Há um filme dele, Quelé do Pajeú, que vi em 70mm, mas que, li em algum lugar, encontra-se desaparecido.
A fotografia é de O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha. Vê-se Rosa Maria Penna ao lado de Lorival Pariz (que na década de 60 era um dos atores mais expressivos do proscênio baiano), e de Mário Gusmão (outro baiano de grande força no teatro soteropolitano e também no cinema baiano. Entre seus filmes, O caipora, de Oscar Santana, e O anjo negro, de José Umberto).
Por falar em Pariz e Gusmão, dois intérpretes notáveis da cena baiana nos anos 60. Lembro-me do primeiro em montagens teatrais como A escolha, de Ariosvaldo Mattos, autor baiano, que fez, na época, algum sucesso entre os frequentadores de teatro da comunidade baiana. Pariz, se não me engano, era descendente de espanhóis, e tinha uma presença cênica admirável com seu porte atlético, seu tom de voz bem colocado. Mário Gusmão foi outro ator importante da cena baiana. Tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente. Até hoje está marcada na minha memória a sua imagem no palco do Teatro Vila Velha a interpretar um dos personagens (o demônio?) de Huis Clos, de Jean-Paul Sartre, cuja direção esteve à cargo do brilhante João Augusto. Se não falha a memória, esta peça era montada juntamente com outra, O pelicano, de Strindberg. Em Huis Clos, no seu elenco, Othon Bastos, Martha Overbeck, entre outros. Era um momento de glória do teatro baiano hoje esfacelado em besteirol e besteirola, evidentemente com as honrosas exceções de praxe.

08 junho 2008

Dino Risi para sempre

Se houve uma época em que o cinema italiano tinha uma galeria de monstros sagrados, verdadeiros gênios do cinema (Rossellini, Antonioni, Fellini, Visconti...), outros cineastas, que não se postavam em pé de igualdade com estes, eram, porém, também geniais, a exemplo de Dino Risi, que morreu ontem aos 91 anos de idade. O que resta, ainda, do cinema italiano neste momento de total decadência? Risi proporcionou momentos de intensa felicidade por se estar no cinema em filmes como Aquele que sabe viver (Il sorpasso), com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintgant, Vejo tudo nú (Vedo nudo), com Nino Manfredi, Nós, mulheres, somos assim, com a beleza da Monica Vitti, Fèrias à italiana (L'ombrellone), com Enrico Maria Salerno, entre muitos outros. Dino Risi era um verdadeiro mestre da comediografia. Não há, ninguém, no cinema italiano contemporâneo, que se lhe possa comparar. Mas já tinha passado dos 90 e foi chamado pela Implacável. Deve ter rido dela.

Introdução ao cinema (7)

Afinal, chegamos a um momento decisivo do processo de criação cinematográfica: a montagem.

Planejado no roteiro, que contém todas as tomadas em ordem cronológica e precisamente numeradas, a filmagem, não obedece, todavia, ao que está estabelecido no papel. O cineasta, tendo em vista, além de outros fatores, a exequibilidade e a viabilidade econômica, começa a filmar a partir de qualquer tomada do roteiro - pelo meio, pelo fim, pelo começo. A tarefa de ordenar os diversos fragmentos de um filme cabe a uma etapa do processo de criação do cinema muito importante, qual seja a montagem. Que, grosso modo, pode ser definida como o trabalho de reunir as partes do material filmado de acordo com a ordem estabelecido no roteiro. O montador edita o filme, isto é, faz uma reconstituição da primeira à última imagem, colando ponta com ponta e na ordem numérica os diferentes pedaços de película, que foram revelados e impressos numa "cópia de trabalho". Geralmente são colados em seguida pedaços de filme que reproduzem planos diferentes, até completar uma cena. Há, portanto, dentro da mesma cena, diversas mudanças de plano - e de um plano para outro se verifica uma descontinuidade rápida chamada corte.

A montagem não se limita - longe disso - a um simples trabalho de cortes e colagens: é também, e sobretudo, uma criação. Linguagem do realizador, ela, a montagem, impõe um estilo e revela uma visão original do mundo. A montagem, segundo a ótica de Bretton, preside a organização do real visando satisfazer simultaneamente a inteligência e a sensibilidade, provocando, com isso, a emoção artística, o efeito dramático ou onírico: faz malabarismos com o tempo e o espaço, com cenários e personagens (trucagens e dublês). É o elemento mais específico da linguagem cinematográfica, "o fundamento estético do filme", segundo Pudovkin. Os grandes cineastas e estetas (Eisenstein, Pudovkin, Balazs, Arnheim, etc) esforçaram-se em estabelecer a nomenclatura dos diversos processos de montagem e em analisar seus efeitos psicológicos.

Geralmente classifica-se os tipos de montagem em três categorias principais: (1) a montagem rítmica, (2) a montagem intelectual ou ideológica, (3) a montagem narrativa, sendo que esta última compreende quatro tipos - a) a montagem linear, (b) a montagem invertida, (c) a montagem alternada, e, (d) a montagem paralela.

01. A Montagem Rítmica: visa criar ritmo ao filme, alternando os tempos fortes com os tempos fracos, dando ordem e proporção no espaço e no tempo. O ritmo resultado do movimento das imagens entre si e da convergência entre o movimento da atenção do espectador e o das imagens. Um plano, conforme observou o ensaísta francês J. P. Chartier, não é percebido da mesma maneira do começo ao fim. A princípio, é reconhecido e situado; é, digamos, a exposição. Vem então um momento de atenção máxima em que a significação, a razão de ser de um plano, é captada: gesto, palavra ou movimento fazem o desenvolvimento progredir; em seguida, a atenção baixa, e, se o plano se prolongar, nasce um momento de aborrecimento, de impaciência. Se cada plano for cortado no momento exato da baixa da atenção para ser substituído por outro, a atenção será sempre mantida, o filme terá ritmo. O que chamamos de ritmo cinematográfico não é, portanto, a apreensão das relações de tempo entre os planos, mas a coincidência entre a duração de cada plano e os movimentos de atenção que ela suscita e satisfaz. Não se trata de um ritmo temporal abstrato, mas de um ritmo de atenção", conclui Chartier. A percepção intuitiva do ritmo pelo espectador nasce da sucessão dos planos, segundo as relações precisas criadas pelo cineasta (e montador). É do ritmo que a obra cinematográfica extrai sua ordem e sua proporção, sem o que não teria ela as características de uma obra de arte. Diferentes fatores intervêm na criação do ritmo, especialmente o movimento no plano (conteúdo estático ou dinâmico da imagem), a extensão do plano (uma sucessão de primeiros planos cria uma elevada tensão dramática). Mas o ritmo é sobretudo uma questão de distribuição métrica, sendo a extensão dos planos o elemento decisivo para mostrar (valor documentário), através de certos detalhes, ou para sugerir efeito dramático. Assim, num filme, os acontecimentos, que se precipitam num ritmo rápido de ação, são traduzidos por uma seqüência de planos curtos (ritmo nervoso, dinâmico, violento, trágico, etc), enquanto que uma seqüência lenta, num filme psicológico é, ao contrário, representada por uma sucessão de planos longos que dão uma impressão de languidez, de tédio (vide A Noite, de Antonioni), de ociosidade, de tristeza, de monotonia, de sensualidade, etc. Planos cada vez mais curtos traduzem, em princípio, um aumento da intensidade dramática em direção ao nó ou a reviravolta da ação. Os planos cada vez mais longos provocam, normalmente, a impressão inversa: volta à calma, relaxamento progressivo, abrandamento da angústia, etc. Finalmente, uma seqüência de planos breves e longos numa ordem qualquer provoca um ritmo sem tonalidade dramática ou psicológica especial. É alternando as durações e variando com freqüência a extensão dos planos que o filme adquire diversidade e vida. A evolução recente de um certo cinema de autor, principalmente a partir dos anos 60, caracteriza-se pelo recurso sistemático do plano - seqüência, muitas vezes ligado à grande duração do filme, como podem ser exemplos, para ficar em apenas dois, Memórias de uma mulher de sucesso (Souvernirs d'en France), de André Téchiné, e Com o passar do tempo (Im lauf der zeit), de Wim Wenders. Essa evolução foi preparada pelas pesquisas de alguns mestres do underground, particularmente Andy Warhol e Michael Snow, que realizaram filmes extremamente longos (seis ou oito horas de duração, no caso de Warhol) e contendo, estes filmes, pouquíssimos planos (às vezes um só) e, sempre, fixos .
No próximo domingo, as outras categorias de montagem. A imagem ilustrativa é de A guerra acabou (La guerre est finie), de Alain Resnais, com Yves Montand, Ingrid Thulin, e, além de outros, numa ponta Michel Piccoli.