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02 dezembro 2010

01 dezembro 2010

"Deus sabe quanto amei", de Vincente Minnelli


O título da obra-prima de Vincente Minnelli em português, Deus sabe quanto amei, vem a desmerecer o filme e pode fazer parecer se tratar de um melodrama banal. O original é Some came running e que, traduzido ao pé da letra, seria Alguns vieram correndo. Na França, foi chamado de Comme une torrent... (Como uma torrente...).
Longe das telas há muitas décadas (foi visto na época de seu lançamento e depois desapareceu), Deus sabe quanto amei, para a satisfação dos admiradores de Minnelli (entre os quais se inclui este comentarista), já saiu (há algum tempo) em DVD luzidio, em cópia muito boa distribuída pela Warner Bros como um dos integrantes da Coleção Frank Sinatra. Trata-se de acontecimento da maior importância para os minnellianos, os quais, infelizmente, são poucos no Brasil. Mas a sua revisão o coloca entre um dos melhores filmes americanos de todos os tempos.
O filme é um retrato da sociedade americana na década de 50, realizado com o requinte particular de Minnelli. Baseado no livro de James Jones (o mesmo escritor de A um passo da eternidade), Some came running, para ser melhor apreciado, precisa estar contextualizado na obra do diretor. Realizador de extremo bom gosto, Minnelli se dividiu, em sua trajetória de funcionário da Metro Goldwyn Mayer, entre os insuperáveis musicais que dirigiu (O pirata, A roda da fortuna, Sinfonia em Paris, Gigi, A lenda dos beijos perdidos...), os dramas ásperos (Assim estava escrito, A cidade dos desiludidos...), e as comédias românticas (Papai precisa casar, Teu nome é mulher, Brotinho indócil...).
Em Some came running, Frank Sinatra é um romancista frustrado que depois de longo tempo retorna à sua cidadezinha e reencontra, nela, seu irmão rico e mesquinho (o grande Arthur Kennedy). Na verdade, depois de uma grande bebedeira em Chicago, na qual houve briga e agressão, o personagem de Sinatra foi colocado no ônibus em direção à cidade natal. Junto, viaja uma prostituta, Shirley MacLaine, no papel que despertou os olhares da crítica internacional, que se apaixonara por ele. Quando chega, janta na casa do irmão (que lhe colocara ainda menino num orfanato de onde fugira para ficar on the Road), conhece uma professora de literatura que admira seus livros e pela qual tem um romance (Martha Hyer) e faz amizade com um bon vivant, jogador profissional (Dean Martin).
O filme caminha a passos lentos, mas rigorosos, em direção à tragédia final no parque de diversões, quando Minnelli exercita o fulgor de sua esplendorosa mise-en-scène, a utilizar, com grande estesia, a montagem paralela e as cores como um arabesco para a composição de seu painel trágico.
O que pode haver de tão especial num filme à primeira vista simples e até mesmo estruturado dentro da convenção estabelecida do estilo de representação do cinema americano? O diferencial reside, a rigor, na escrita minnelliana, no seu modo de estabelecer e articular a narrativa. Há, bem observado, um particular sentido de composição dos enquadramentos (e sendo o filme em cinemascope, Minnelli sabe encher a tela larga com eficiência dramática, a fazer com que seus personagens habitem-na com funcionalidade do espaço cinematográfico). E impressionante o seu conceito de duração das tomadas. A bem ver, o filme se estrutura, como se disse, a passos lentos, como se tudo estivesse preparado em função da catarse final, um grand finale no qual o artista que é Minnelli se mistura com a arte de um pintor e de um músico, já que a montagem é, no final das contas, pura pulsação, puro ritmo, puro timing.
O equilíbrio de composição da estrutura narrativa minnelliana (e não se está a falar apenas de Some came running, mas de todo o cinema deste realizador) é de uma extraordinária força dramática. No caso específico de Some came running, o melodrama é elevado ao patamar trágico. A tragédia do homem e da procura do amor. A tragédia de uma sociedade viciada e preconceituosa. A tragédia que enleva e que proporciona a ars poética.
Com o cinemascope, o registro visual que Minnelli estabelece é no sentido do aproveitamento do espaço maior com tomadas longas nas quais, ao invés de a câmera se movimentar, são os atores que habitam o espaço, que se deslocam neste para evitar o corte. Assim, tem-se as tomadas com maior duração em todo o decorrer do filme, à exceção do final do Carnaval no parque de diversões, quando o realizador muda o registro visual, e os cortes se sucedem com maior rapidez num festival de luzes e cores, ângulos insólitos, pulsação, ritmo. Nesta seqüência derradeira, vê-se o estilo minnelliano dos seus musicais primorosos e o cinema se estabelece como timing ou, melhor dizendo, o que se tem, nesta seqüência, é a beleza do cinema em sua quintessência. Um design visual de grande impacto.
Além da seqüência final do Carnaval, que é antológica, e já registrada como um dos momentos sublime da história do cinema, há uma outra também de sublimidade mais de um ponto de vista humanístico do que estético. É aquela quando Sinatra lê para MacLaine o seu conto que a professora de literatura consegue publicá-lo numa revista de Nova York.
Sentada no chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirleyestá toda nele e nada no que ele diz. A câmara fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumularam nele (tempo, décor, cidade, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. A personalidade da personagem de MacLaine é de uma humanidade e de uma generosidade capaz de dotá-la de uma singularidade e ser ela assemelhada a uma Cabíria, aquela prostituta de Fellini interpretada por Giulietta Massina que, por sinal, MacLaine também a viveu na versão musical deLe notti de Cabiria dirigida por Bob Fosse, Sweet Charity.
No final do filme, a câmera se desloca para mostrar, abalados, os personagens da tragédia durante o enterro dela. Dean Martin, o jogador inveterado, que nunca admitira tirar o seu chapéu, mesmo a dormir ou num hospital, tira-o para ela, ele que sempre criticara as mulheres, mas que, naquele momento, se rende e presta uma homenagem a seu modo à personagem de MacLaine. E a câmera millenniana se movimenta para observar a paisagem. A vida continua, afinal de contas.
Há cineastas, como observou o crítico lisboeta João Bénard da Costa, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de avis raras.
Os minutos finais de Some came running representam uma admirável lição de como integrar os esquemas narrativos do cinema musical dentro de uma estrutura estética fundamentalmente dramática

30 novembro 2010

Mario Monicelli, com câncer, pula a janela do hospital e morre

Morreu Mario Monicelli. Aos 95 anos, ainda em plena atividade, veio a descobrir que estava com um câncer no pâncreas e, internado num hospital, inconformado com o sofrimento, pulou a janela e se espatifou no chão. Suicidou-se, portanto. Monicelli, ainda que não faça parte do pódio dos gênios italianos do cinema (Fellini, Visconti, Antonioni, Rossellini), foi responsável por alguns filmes inesquecíveis. Destacaria, em primeiro lugar, a paródia Os eternos desconhecidos (I soliti ignoti, 1958), com Vittorio Gassman, Renato Salvatori, Claudia Cardinale, Totó, entre outros, uma deliciosa comédia à la italiana. Mas quem, de sã consciência, pode esquecer de Os companheiros, Guardas e ladrões, O incrível exército de Brancaleone, A grande guerra, Pais e filhos, Donatella? Vejam um momento precioso de Os eternos desconhecidos em meu outro blog Momentos da arte do filmehttp://setaroandreolivieri.blogspot.com/

28 novembro 2010

Em defesa de Claude Lelouch


Há, por parte da crítica, uma total indiferença diante dos filmes de Claude Lelouch, um certo preconceito em relação a este brilhante realizador do cinema francês. Convidado para participar da mostra internacional paulista ano retrasado, foi evitado pela imprensa, e apenas algumas notas insignificantes deram conta de sua importante presença no exitoso evento coordenado por Leon Cakoff. Em um festival ocorrido em Manaus, também não despertou o entusiasmo que merece por parte da imprensa, que lhe foi completamente indiferente, ainda que homenageado. Talvez a explicação para a marginalização do autor de Um homem, uma mulher esteja no fato dele falar mal da nouvelle vague e, apesar do seu público fiel, a chamada intelligentzia o colocou no index. Os críticos brasileiros, que se pautam muitas vezes pela autoridade crítica internacional, passaram a proceder da mesma maneira, determinado-lhe o desprezo e, pior ainda, a indiferença (e a indiferença também é crime, segundo diz William Shakespeare em Hamlet).
O fato é que são poucos os filmes de Lelouch, nas últimas décadas, que tiveram lançamentos bem colocados, e nunca é citado nos círculos mais intelectualizados do pensamento cinematográfico. Considerado um virtuoso, maneirista, superficial, dotado de uma poética do vazio, Lelouch, no entanto, é um talento, um poeta, que sabe, como poucos, envolver o espectador com sua mise-en-scène única e particular. Os filmes de Claude Lelouch sempre me deram conta de estar diante de um artista criador, que emociona, que, como poucos, tem um método de dirigir os atores, deixando-os espontâneos, verdadeiros, convincentes. Um filme de Claude Lelouch, para mim, é um bálsamo capaz de deixar a impressão de se ter contemplado a beleza em movimento, os pequenos gestos significantes, a emoção surpreendida em seu momento exato. Mas, não se pode negar, o que vem a ser considerada crítica cinematográfica oferece, para ele, as opiniões mais deprimentes. E Lelouch é, antes de tudo, um antidepressivo fundamental, que trata dos seus temas, aparentemente superficiais, com o vigor de uma mise-en-scène que os torna envolventes e perfuratrizes na alma do espectador. Ver um Lelouch é sempre um prazer, uma descoberta da vida e do amor.
Parisiense de nascimento, 71 anos e meio (30/10/1937), Claude Lelouch chamou a atenção internacional, quando, em 1966, ganhou a cobiçada Palma de Ouro do Festival de Cannes, derrotando realizadores poderosos. Un homme et une femme, se, por um lado, rendeu a Lelouch uma bilheteria assombrosa pelo mundo todo, não se constituiu, porém, numa unanimidade crítica. Já começou aí a inveja de outros cineastas pretensiosos e menos dotados, que deram início à difamação de Lelouch como cineasta menor. A partitura envolvente de Francis Lai, a técnica de improvisação na direção dos atores, o realizador como seu próprio cameraman com notável segurança, a fotografia deslumbrante, a poesia que emana de sua articulação da linguagem, a mise-en-scène que transforma objetos em novos significantes determinaram a Un homme et une femme um estrondoso sucesso, uma fascinação irresistível. E além da Palma, o diretor também conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de muitos outros prêmios em festivais internacionais.
Vale repetir que, no cinema, assim como na literatura, e em outras artes, o que importa não é o tema em si, mas a maneira com que ele é tratado pelos procedimentos cinematográficos. Em Um homem, uma mulher, Lelouch filma o romance de um piloto de corridas automobilísticas (Jean-Louis Trintgnant) e uma continuísta de cinema (Anouk Aimée). Os dois, viúvos, têm filhos, e o encontro inicial se dá na escola onde estes estudam. O relacionamento amoroso se desenvolve pela perspectiva de uma segunda chance e é marcado por lembranças (vindas em flash-backs). O diretor mistura imagens coloridas com imagens em preto e branco e o roteiro, bastante fragmentado, influenciou uma geração de publicitários. Destaque para a presença de Pierre Barouh, que canta "O samba da benção", de Baden Powell e Vinicius de Morais. Barouh, no filme, é visto nas recordações da mulher (fora o seu primeiro marido e morre num acidente de filmagem). Pode ser visto facilmente em DVD.
Antes de Un homme et une femme, Lelouch já tinha feito dois ou três longas sem expressão e alguns curtas, mas é neste que se inicia, realmente, como cineasta e desponta no cenário internacional. Logo a seguir dirigiu um dos episódios de Loin de Vietnam (1967), ao lado de monstros sagrados do cinema (que dirigiram os outros, a exemplo de Jori Ivens, Jean-Luc Godard, William Klein, Alain Resnais, Chris Marker, e Agnès Varda), que ficou inédito no Brasil. No mesmo ano, tentou reeditar o sucesso de Un homme, une femme com Viver por viver (Vivre pour vivre), com Yves Montand, Annie Girardot, a belíssima Candice Bergen, que representou a França no Festival de Mar Del Prata de 68, onde conquistou o prêmio de melhor atriz para Annie Girardot. Montand, aqui, um ator charmant, é um repórter de televisão cujo casamento com Girardot se encontra estagnado e vem a conhecer, numa viagem a Quênia, Candice Bergen, pela qual se apaixona. Estão presentes a dinâmica característica da mise-em-scène lelouchiana, a espontaneidade dos intérpretes e a poesia flutuante de suas imagens.
A seguir, Lelouch realizou A vida, o amor e a morte (La vie, l'amour, la mort, 1969), drama contra a pena de morte que representou a França no II Festival Internacional do Filme do Rio (organizado por Antonio Moniz Viana, o único evento cinematográfico verdadeiramente internacional que o Brasil já teve em sua história), em 69, conquistando o prêmio de melhor ator para Amidou. Que interpreta François Toledo, acusado de ter assassinado prostitutas. Condenado à pena de morte, ao caminhar para a guilhotina, lembra-se sua vida pregressa. A primeira imagem de La vie, l'amour, la mort é a da morte violenta de um touro, e o último plano é da morte violenta de um homem, sob a lâmina afiada da guilhotina (faz lembrar os excelentes Quero viver! (I want to life), de Robert Wise, e Não matarás, de Kieslowski). Filme arrematado com final agônico e de forte emoção. Será que os detratores contumazes de Claude Lelouch viram este filme?
Depois deste, Lelouch filma O homem que eu amo, com Belmondo e Girardot, Um homem como poucos (Le voyou, 1970), que considero sua obra-prima e uma das obras-primas do cinema francês em todos os tempos, e a deliciosa sátira políticaA aventura é uma aventura. Mas fica para a próxima coluna na terça vindoura estes e o resto da filmografia desse artista singular.
Em 1969, O homem que eu amo (L'homme qui me plait), com Jean-Paul Belmondo e Annie Girardot, procura repetir a fórmula estabelecida em filmes anteriores. Trata-se, evidentemente, de um love story, e Belmondo, numa cena dentro de um jatinho, repete, em mímica, para uma Girardot apaixonada, os tiques de Michel Poiccard, o seu personagem de Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, filme que detona a Nouvelle Vague e está a completar, neste ano em curso, o seu cinquentenário.
A obra-prima de Lelouch, contudo, é Um homem como poucos (Le voyou, 1970), filme que se perdeu no esquecimento coletivo e que necessitaria de uma urgente revisão para reavaliá-lo em sua dimensão certa. Thriller que sucede a L'homme qui me plait, Le voyou, desde a apresentação dos créditos, uma sequência musical de delirante movimentação cênica, já desperta o entusiasmo do espectador. Radiografia de certos podres das grandes organizações financeiras, assim como do cultivo do sensacionalismo pela imprensa e pela publicidade, Um homem como poucos é um filme engenhosamente construído. Jean-Louis Trintgnant faz um advogado que trapaceia com o banqueiro interpretado por Charles Denner (em seu melhor papel e numa performance inexcedível) o rapto do filho deste a fim de obterem do banco a recompensa.
Mas Trintgnant, ao invés de repartir a grana conforme a combinação inicial, devolve o menino e esconde o dinheiro. Achando-se traído, Denner o denuncia, e Trintgnant é condenado a doze anos de prisão, mas cinco anos depois consegue se evadir do cárcere e vem a conhecer uma mulher, Danièle Delorme, pela qual se enamora, e, através de seu cúmplice personificado pelo ator Charles Gerard, remete o dinheiro para ficar bem guardado na Suíça. Seu objetivo é se vingar de Denner, que acaba preso pela polícia. Trintgnant e seu sócio partem, então, para Nova York, alegando viagem para Montreal, onde a polícia os aguarda. O mau tempo, porém, desvia a rota do avião para Montreal. Neste final, Trintgnant recebe a notícia pela voz da aeromoça e um close up, mostrando todo a sua apreensão, fecha o filme.
Pierre Uytterhoeven é quem assina todos os roteiros dos filmes de Lelouch, mas se desconfia que se trata de um pseudônimo do próprio diretor. Lelouch sempre pilota a sua câmera e, como de hábito, aqui em Um homem como poucos, a música é de Francis Lai (que ao lado de Michel Legrand e George Delerue é um dos maiores partituristas do cinema francês). O filme como que propõe a questão: comparado a essa gente que vive da exploração da ingenuidade popular culturalmente desamparada, o voyou desta obra de Lelouch não chega a ser umméchant. A seguir, o diretor realizou Smic, smac, smoc, que ficou inédito no Brasil e não foi distribuído comercialmente, e que tem o premiado Amidou (ator lelouchiano por excelência e Catherine Allégret). Em 1971, uma sátira política que se constituiu num de seus maiores sucessos: A aventura é uma aventura(L'aventure c'est l'aventure), co-produção entre a França e a Itália, é uma aventura de humor crítico cuja inspiração o realizador atribui a Os três mosqueteiros e aos Pieds Nickelés - famosa história em quadrinhos francesa. Cinco criminosos (os franceses Lino Ventura, Jacques Brel e Charles Denner, os italianos Charles Gerard presença constante nessa fase lelouchiana, Aldo Maccione), certos e confiantes de que as clássicas fontes de sustento do submundo estão exauridas (os bancos estão vazios, as prostitutas se rebelam - a idéia e o roteiro são do realizador), decidem atualizar-se, adotando a técnica empresarial do neocapitalismo e, sobretudo, dando cobertura ideológica às suas atividades. Começam sequestrando Johnny Halliday e fazem o mesmo com um embaixador suíço e um general latino-americano, obtendo sempre altos resgates. A última de suas vítimas consegue entregá-los à justiça. Processados, condenados e finalmente salvos pelo clamor público - que vê neles paladinos da "contestação", os cinco se recolhem à África, onde são recebidos como heróis. Postos a serviço dos corruptos governantes locais, não renunciam, contudo, à mais sensacional de suas proezas: o sequestro do papa, por cujo resgate exigem e obtêm um franco por cabeça de todos os católicos do mundo.
Comédia dramática de fundo policial, A dama e o gangster (1973) é o filme imediatamente posterior a L'aventure c'est l'aventure. Ainda que não seja um de seus melhores, La bonne année, título original, fascina pela segurança da narração e por um cuidadoso registro de surpresas sem que a partitura entre em ação. A música, que seria a música do filme, é cantada numa boite, mas todo o desenrolar das reviravoltas com suspense a tem ausente. Também, aqui, em La bonne année, o uso das imagens em preto e branco e a cores revela a constante lelouchiano de significar por meio do cromático.
Em dezembro de 1973, o diretor de uma prisão dá liberdade condicional a Lino Ventura, ladrão de jóias, na esperança de, por seu intermédio, apanhar Charles Gerard, seu cúmplice no roubo de uma joalheria Van Cleef seis anos antes. Conseguindo iludir a polícia, Ventura (ator clássico da tradição cinematográfica francesa), se prepara para celebrar o ano novo com a bela Françoise Fabian, sua antiga amante, mas, ao chegar ao apartamento desta só encontra seu atual companheiro. A desilusão toma conta dele. Esgueirando-se sem ser visto, vai-se a lembrar dos lances do roubo (o filme quase todo é em flash-back, excetuando-se o momento presente no princípio e no final), da separação (quando foi preso) e da promessa que Françoise lhe fizera de esperar por ele.
Em 1974, um filme fascinante: Toda uma vida (Toute une vie), afresco sobre o cinema, o tempo que passa, a vida e o amor. E vejam que achado: o começo do filme é em preto e branco e seu estilo vai variando de acordo com a evolução da técnica cinematográfica; nas seqüências finais é em Technicolor. Um interlúdio de 20 minutos em que o casal no avião imagina o nosso mundo no fim do século foi eliminado pelo diretor nas cópias de exportação.
Marthe Keller e André Dussolier (um dos atores preferidos de Alain Resnais) sentam-se lado a lado num avião e apaixonam-se à primeira vista. Cada qual passou por várias situações dramáticas. Keller já tentara o suicídio, casara-se e se divorciara, tentando, depois, revolucionar os métodos de trabalho na indústria do seu falecido pai. Dussolier vivera de expedientes, estivera preso, sofrera um desastre ao sair da cadeia, aprendera a técnica fotográfica, fizera filmes pornográficos e comerciais e planejara realizar um filme que cobriria o espaço de tempo entre 1900 e o ano 2000.
Marriage (1975) parece que não foi lançado no Brasil. O gato e a rainha (Le chat et les souris, 1975), comédia com Jean Pierre Aumont, Serge Reggiani, Michèle Morgan, não foi visto por este comentarista. Mas a filmografia de Lelouch não pára por aqui.
 Em meados dos anos 70, o fôlego de Lelouch se arrefece para ressurgir mais forte nos 80 (Retratos da vida/Les uns et les autres, 1981) e nos 90 (com o admirável Os miseráveis, 1993, versão livre, e totalmente lelouchiana do livro homônimo do célebre Victor Hugo), além de Tem dias de lua cheia.
Em 1976, Se tivesse que refazer tudo... (Si c'était à refaire), melodrama que marca o retorno da atriz Anouk Aimée (de Um homem, uma mulher), e assinala o primeiro trabalho de Catherine Deneuve com o diretor, trata, como sempre, do amor ("L'amour toujours l'amour"). O argumento gira em torno de uma presidiária, Deneuve, que, condenada aos 19 anos pelo assassinato de um banqueiro, sai da cadeia aos 35. Que fazer para recomeçar a vida? Ansiosa para encontrar o filho que somente veio a conhecer na prisão, Deneuve une-se, então, a uma antiga companheira de cárcere, Aimée, mas, para sua surpresa, vem a saber que o filho é amante da amiga. E se torna uma estranha entre eles.
Nada a acrescentar de especial a Si c'était à refaire, além da sempre competência formal do autor e do brilho de suas imagens. No elenco, além das citadas, os atores de sempre, como Charles Denner (que teria atuação marcante em O homem que amava as mulheres, de François Truffaut), Francis Hustler, Jean-Pierre Kalfon. A música, como de hábito, quem a assina é Francis Lai, e há uma canção de autoria de Pierre Barouh. Lançado em 1977 no Rio de Janeiro, o filme passou em brancas nuvens com a indiferença habitual da crítica, que sempre gostou de massacrar o cineasta.

Outro homem, outra mulher (Une autre homme, une autre chanche, 1977) é um Lelouch bem menor, um melodrama sentimental em ambiente de western e falado em inglês e francês. A tendência crítica, no entanto, de acusar o cineasta pela repetição não tem correspondência com a verdade do artista, pois todo autor, na verdade, se repete, constituindo-se seus filmes singulares como variações sobre um mesmo tema (Bergman, Fellini...).
Co-produção com capital francês e americano, Un autre homme, une autre chanche tem seu início em 1870, quando a França está em guerra com a Prússia. Os contratempos advindos do conflito bélico forçam Geneviève Bujold a fugir com o namorado (Franços Huster) para os Estados Unidos. Entrementes, na América, o veterinário interpretado por James Caan vê sua mulher violentada por um bandido que rouba seu bracelete índio. Caan, perdida a esposa, embarca, com o filho pequeno, para o sul. Passa-se um tempo e este se matricula no mesmo colégio no qual estuda o filho de Bujold e não se precisa dizer que vai nascer, entre Caan e Bujold (que está viúva), um relacionamento amoroso
Por uma dessas incompreensíveis injunções do mercado exibidor, a maioria dos filmes de Lelouch não foi importada no Brasil, e muitos permanecem inéditos. A considerar, também, sua extensa filmografia, vai-se aqui citar en passant alguns títulos para uma concentração maior naqueles que são considerados os mais brilhantes das duas últimas décadas - e não se quer, também, entrar numa quarta parte sobre o autor.
Robert e Robert (1978), com Charles Denner (sempre ele) e Jacques Villoret, é inédito em território brasileiro, assim como Edith et Marcel (1983), Vive la vie(1984), com Michel Piccoli e Charlotte Rampling, Attention bandits (1987), La belle histoire (1992), Hommes, femmes, mode d'emploi (1996), Hasards et coincidences (1998), entre outros menos notáveis.
Foram mal lançados, quase escondidos: Brindemos a nós dois (À nous deux), com Catherine Deneuve e Jacques Dutroc, Ir, voltar (Partir, revenir, 1983), com Annie Girardot e Jean-Louis Trintgnant, Um homem, uma mulher - vinte anos depois (Un homme, une femme, vingts ans déja, 1986), Itinerário de um aventureiro (L'enfant gâté, 1988), com Jean-Paul Belmondo, Amantes & Infiéis(...And now ladies and gentlement, 2002), com Jeremy Irons, Claudia Cardinale, entre poucos.
Em Les uns et les autres, Lelouch retoma, de certa forma, a idéia - base de outro de seus melhores filmes - Toda uma Vida (1974): uma história que passa por várias gerações e que tem alguns personagens-base. Em Toute une vie é a personagem interpretada por Marthe Keller que conduz os fatos. Aqui, é a sensibilidade artística de quatro famílias de Moscou, Paris, Berlim e Nova Iorque. Elas são unidas por uma linguagem comum - a música. Enfrentam as tragédias da II Guerra Mundial e do após-guerra. E se reúnem, num final apoteótico, em Paris, num concerto de gala aos pés da Torre Eiffel, em benefício da Unicef e da Cruz Vermelha, quando o coreógrafo Maurício Bejart coloca em cena todo seu imenso talento, para uma longa seqüência de verdadeiro delírio visual. Por causa desta sequência apoteótica, quando um dançarino executa o Bolero de Ravel, o filme, nos Estados Unidos, veio a se chamar Bolero. A partitura vem assinada por Francis Lai e Michel Legrand.
A palavra mais certa para definir Tem dias de lua cheia (Il y a des jours...et des lunes, 1992) é que é um filme simplesmente encantador. O dia de mudança no horário de verão altera o comportamento de várias pessoas numa cidade interiorana da França. Situações insólitas e inusitadas passam a acontecer: um crime sem um móvel visível, casais que se desentendem. A narrativa, que compreende um grande número de personagens envolvidos em várias situações, é de natureza polifônica. No elenco, Gerard Lanvin, a grande Annie Girardot (inesquecível como a Nádia de Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti), François Hustler, Philippe Leotard. A poesia reina em todo o seu desenrolar. A poesia e a música que abraçam este filme singular.
Leitura original de Os miseráveis, famosa obra de Victor Hugo, numa versão completamente livre e adaptada a outros tempos, o filme é um delírio na composição de sua estrutura narrativa, de sua mise-en-scène. Belmondo faz um ex-pugilista analfabeto que ajuda uma família de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e vem a encontrar paralelos significativos entre a sua vida e a do personagem do escritor francês. A rigor, não se trata propriamente de uma adaptação, mas o livro é tomado como marca referencial. Les miserables apresenta o comportamento dos franceses durante a guerra, a perda de valores morais provocada pela opressão em suas diversas formas, e a idéia de que a História é um ciclo que se repete de tempos em tempos. Além de Belmondo, tem-se novamente Annie Girardot.
Entre seus últimos filmes, um episódio (segmento: França) de uma obra coletiva sobre o 11 de setembro dirigida por vários cineastas, A coragem de amar (Le courage d'aimer, 2005) e Crimes de autor (Roman de gare, 2007).
Publicado originariamente na revista eletrônica TERRA MAGAZINE.