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26 outubro 2006

Vai-se hoje ao cinema?


Em 1953, a Fox, temerosa da concorrência da televisão, que fechou metade dassalas exibidoras dos Estados Unidos, lançou, com grande marketing, o formatoCinemascope e som estereofônico, ainda que já tivesse sido descobertodécadas antes pelo francês Henry Chrétien. O primeiro filme em Cinemascope foi O manto sagrado (The robe), de Henry Koster, com Richard Burton e JeanSimmons. Conta-se do espanto dos espectadores quando Burton, recitandoteatralmente, anda do lado direito para o esquerdo com a sua voz acompanhando (era o processo estereofônico). Nos primeiros filmes em Cinemascope, a predominância era dos planos gerais, geralmente ambientes amplos e repletos de personagens. Os filmes eram mais paisagísticos do que introspectivos. Quem trouxe o ser humano e o close up intenso para o Cinemascope, revolucionando-o, foi George Cukor em Nasce uma estrela (A star is born, 1955), com Judy Garland e James Mason. Mas não se poderia deixar de citar Aconteceu em Veneza, de Roger Vadim. Exibindo O manto sagrado na sua grade de programação, o Telecine Cult teve o acinte de apresentá-lo na abominável tela larga (ou cheia), full screen, destruindo todas as composições de enquadramento desse filme pioneiro, ainda que superado e velho, datado. De cult The robe não tem nada. Mas, a Paramount, para entrar na concorrência, inventou o Vistavision, cujo formato é menos largo do que o Cinemascope. Se, com a entrada deste formato todos os cinemas tiveram que se adaptar a ele, com as lentes anamórficas e mudança detelas, os exibidores, no entanto, não modificaram as janelas dos projetores adequados para o Vistavision. Resultado: todos os filmes da Paramount (incluindo a maioria dos de Hitchcock) foram exibidos no Brasil cortados pelos lados. Somente agora, com as cópías em DVD é que, pela primeira vez,os brasileiros estão a ver os filmes em Vistavision na sua integridade. Na foto ao lado, a apresentação dos créditos de Rastros de ódio (The seachers),de John Ford, filmado em Vistavision. Considero The seachers um dos pontos altos de toda a história do cinema.


Infelizmente a maioria das pessoas tá pouco se lixando para o formato dos filmes. O que interessa é a história, a trama, a intriga. Fiquei estarrecido quando ouvi de um jovem que prefere ver os filmes dublados porque tem preguiça de ler as legendas.A incultura cinematográfica cresce a passos largos. O cinéfilo do pretérito virou um simples consumidor de filmes e, como já disse aqui, o ir ao cinema atualmente é diferente do ir ao cinema no passado. O ir ao cinema hoje é uma das fases do processo do 'shoppear'. Não se vai mais ao cinema, mas se vai ao shopping e, estando nele, ao cinema. Os consumidores, débeis mentais, não possuem, portanto, um propósito estabelecido a priori de ir ao cinema ver determinado filme. Entra-se numa sala 'multiplexada' por causa de um cartaz, de um rosto bonito, de determinado ator ou atriz ou pela sugestão da ação, violência e sexo. Lembro-me que, em priscas eras, comprava o jornal para saber das estréias, estabelecendo, por exemplo, "amanhã, sem falta, vou ver "Matar ou morrer" logo na primeira sessão, às 14 horas, no cinema Guarany".


23 outubro 2006

James Stewart, pois não?


Mas você, disse-me um amanuense, está com mania de republicações! Sim, é verdade, confesso, pois o encontro narrado infra já foi publicado neste blog faz algum tempo. Considerando, porém, que este é um país sem memória, poucos, com certeza, haverão de lembrar. Assim, vai outra vez. Para mim, foi um momento significativo, pois James Stewart é um dos atores que mais admiro. Aliás, há poucos dias, vi, no Telecine Cult, um documentário sobre a vida desse intérprete legendário, apresentado pelo seu amigo Johnny Carlson - que, por muitos anos, foi o mestre de cerimônias da festa do Oscar. Mas, mudando de um polo a outro, gostaria de informar que o sítio Coisa de Cinema está com uma nova coluna de minha autoria. Para quem gosta de perder tempo, eis o link: http://www.coisadecinema.com.br/matNotas.asp?mat=2113
Em 1984, a CIC (Cinema International Corporation) – que, depois, se transformaria na UCI, lançou um pacote contendo cinco filmes de Hitchcock que, há vinte anos, se encontravam proibidos de exibição por exigência do mestre – não se sabe lá bem o motivo. O fato é que Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai, O Terceiro Tiro, O Homem que Sabia Demais e Festim Diabólico, obras imprescindíveis de Hitch, puderam, duas décadas depois, serem reavaliadas e vistas pela primeira vez por toda uma geração de cinéfilos. Para prestigiar o lançamento do pacote, James Stewart esteve no Rio de Janeiro reunido com jornalistas das principais capitais do Brasil, do Oiapoque ao Chuí. O gerente regional da CIC, em Salvador, resolveu me convidar como o crítico representante da Bahia – tinha, nessa época, uma coluna diária no jornal Tribuna da Bahia, onde entrei em 1974 e, ano passado (2005), cumpridos 31 anos de batente - já se encontra em fase de finalização um livro que reúne as minhas críticas.. Fiquei entusiasmadíssimo, alvoroçado, pela oportunidade que teria de passar, um dia inteiro, com um veterano e mitológico intérprete do cinema americano, uma legenda viva.

A empresa me reservou uma passagem de ida e volta – SSA-Rio-SSA, hotel de cinco estrelas – o mesmo onde ficaria hospedado o homem que matou o facínora, e a promessa de reembolso imediato nos gastos de locomoção e alimentação. Lembro-me bem do dia: 21 de outubro de 1984. Estava chovendo. Vento leste. Medo de voar naquelas condições que se foi vencendo com várias tulipas de chope no barzinho do aeroporto. Para um amante do cinema, um presente de Zeus.

Apertando o cinco, feita a aterrissagem, cheguei ao Galeão, descortinando, antes de pousar, a bela paisagem da Cidade Maravilhosa. O Rio de Janeiro é de uma beleza indescritível. Mas a chuva continuava. Pensava em James Stewart, relembrava seus filmes enquanto sorvia mais algumas tulipas, desta vez no bar do aeroporto do Rio. Telefonei para a CIC, que me mandou pegar um táxi, pois a reserva já se encontrava feita. Num hotel luxuoso em Copacabana – diria mesmo: seis estrelas. Quem sou eu, pobre comentarista de cinema, para gozar de tais mordomias! Gozei-as, entretanto. E como!

Cheguei num domingo. Dia livre, segundo a assessora de imprensa da CIC. Aproveitei para ver, no cinema Veneza, Janela Indiscreta (Rear Window). A sala estava lotada e, antes de entrar, fiquei observando as pessoas que saiam circunspectas, caladas ou comentando. Via pelas suas fisionomias que tinham acabado de assistir a um grande filme. Já na sala escura, as imagens de Janela Indiscreta me provocaram forte emoção – já o tinha visto nos anos 60 antes de sua retirada de circulação (e, contando isso, estou ficando é velho!). Apesar de uma matinée num domingo, havia silêncio na sala, respeito pelo que se estava a ver. Há 21 anos passados. A patuléia – leia-se: os aborrecentes dos complexos de salas Multiplex, porque não nascida, ainda não comandava o espetáculo!

Saindo do cinema, fui andando até o hotel no posto seis de Copacabana. Uma caminhada e tanto. Ia pensando no encontro da segunda, o Dia D, cujas atividades se estenderiam pelo dia todo: de manhã, de tarde e de noite. Atravessei o comprido túnel, e, adentrando a Av. Atlântida, a pé, andei pelas suas calcadas cheias de bares com aquele chopinho único e especial que só se encontra no Rio de Janeiro. Há uma cultura do chope entre os cariocas inexistente, por exemplo, na Bahia. Difícil – ou impossível – se encontrar, aqui, um chope que preste. Assim, não resisti, cervejeiro que sou –e que, naquele tempo, jovem e disposto, era mais ainda, e sentei-me, lembro-me bem, no Cabral 1500. Impossível se ficar em apenas um chopinho, que desce com uma leveza impressionante e, por isso, as tulipas se multiplicaram. Quando me levantei, a noite, ainda que uma criança, dava sinais de que precisava parar e ir para o hotel descansar para o grande dia.

Acordei com o dia e por causa de um telefonema da assessora, Hannath de não-sei-o quê. Ela me disse que ficasse esperando uma caminhonete no saguão do hotel. Para ir ao centro da cidade à cabine da Paramount. Quando desci, encontrei um monte de gente também esperando: os críticos de outros estados que, a julgar pelos seus gestos e palavras, estavam eufóricos. Um, de Manaus, estava com vários colares e cocares indígenas para presentear James Stewart.

Chegando à cabine, uma sala de projeção com poltronas de veludo, James Stewart estava lá ao lado da assessora de imprensa, que nos apresentou, um a um, explicando a ele o que as pessoas faziam e de onde vinham. Entramos na cabine onde ia ser exibido Um Corpo que Cai (Vertigo). O filme se iniciou com a fabulosa perseguição pelos telhados e, em seguida, a apresentação dos créditos feita por Saul Bass, uma novidade. De repente, minha atenção se perturbou, pois James Stewart se sentou, por acaso, a meu lado. Enquanto via-o na tela, sentia a sua presença. Não assistiu ao filme até o fim, retirando-se no primeiro terço e, na hora de sair, bateu em meu ombro e disse: “I see you later” (“Eu vejo você mais tarde”) Referia-se à grande entrevista coletiva que ia acontecer no salão do hotel no horário vespertino.

A tarde chegou cedo e o meu tempo, o psicológico, por fugaz, fez com que, mal terminada a projeção, já estivesse a postos no grande salão onde se realizaria a entrevista. Os lugares, todos marcados com os nomes dos jornalistas e, em cada cadeira, uma pasta contendo dados sobre os filmes e sobre Stewart, além de muitas fotografias. Lembro-me de Ruy Castro, que, naquele tempo, era free-lance da Folha de S. Paulo Cada jornalista tinha de esperar a sua vez. Quando chegou a minha, perguntei a Stewart qual o seu filme preferido de Hitch. Olhando-me com aqueles dois olhos azuis resplandecentes, respondeu-me que Janela Indiscreta, fazendo longas considerações pelo motivo de sua preferência.

À noite, um jantar no hotel. Conversei um pouco com Stewart, que, nessa ocasião, me apresentou à sua esposa, Gloria, de longa data. Fiquei de olho em Stewart e nas bandejas circulantes dos garçons, que continham copos, gelo abundante e scotch. Depois da quarta dose, aproximei-me dele, que estava em pé, disponível, ao lado da intérprete. Foi então que conversamos mais. Ele me falou de sua infância difícil, da conquista, nos anos 40 do Oscar de melhor ator, que o enviou ao pai, dono de uma loja comercial, que colocou a estatueta na vitrine. Falou-me de Hitch, de Capra, de John Ford (tinha medo de trabalhar com Ford e só entrou no cast de O Homem que Matou o Facínora por insistência de John Wayne, mas Ford gostou dele, convidando-lhe para mais filmes).

Dentro do avião de volta, peguei a Folha de S.Paulo para ler. Fui direto à Ilustrada, que estampava: “O melhor filme de Hitch para Jimmy é Janela Indiscreta”. Minha pergunta foi roubada, pensei com meus aflitos botões. Mas era tarde demais. Naquele tempo não havia computador, e-mails, e minha reportagem somente veio a ser publicada dias depois.

Introdução ao Cinema (1)


Semanalmente, este blog pretende oferecer, para desinformar e aborrecer aos leitores, um curso de "Introdução ao Cinema" em 'capítulos', que serão substituídos num dia incerto de cada semana. Na verdade, uma republicação, pois já veio ao espaço quando do início do blog há dois anos e meio.
A partir de hoje, vou tentar apresentar os elementos básicos da linguagem cinematográfica com um objetivo precípuo: introduzir o espectador nos meandros desta linguagem, considerando que a maioria das pessoas que vai ao cinema apenas se contenta com a história, desconhecendo por completo que o cinema tem, também, uma narrativa, e esta se expressa pela capacidade do realizador em articular os elementos lingüísticos próprios da arte do filme. Trata-se, na verdade, de uma introdução ao cinema com um cunho didático e com um propósito de esclarecimento. A introdução será feita em partes que serão desenvolvidas através de várias semanas.
Para se atingir a especificidade da linguagem cinematográfica, três são os elementos básicos, fundamentais, com os quais o realizador precisa saber articulá-los se quiser obter, no filme, força expressiva. São os elementos determinantes da especificidade da linguagem fílmica: a planificação, os movimentos de câmera e a angulação, havendo um quarto elemento, a montagem, que também determina a especificidade, ainda que, hoje, não possua mais a primazia do passado, quando era considerada a expressão máxima da arte do filme - a introdução das tomadas demoradas (Michelangelo Antonioni, o cinema iraniano atual, Theo Angelopoulos...) a partir dos anos 50 e o advento da profundidade de campo (Orson Welles, William Wyler, etc) tiram da montagem a sua supremacia no processo de criação cinematográfica. Antes dos anos 40, porém, quando do seu auge, é necessário salientar que nem todos os filmes dessa época se submetiam à estética da montagem. Juntamente com a vanguarda francesa, o cinema soviético é, talvez, o único a levar a montagem a seu paroxismo, principalmente com os filmes de Serguei Eisenstein - O Encouraçado Potemkin, 1925, Outubro, 1927, etc. Os elementos componentes da linguagem cinematográfica , apesar de imprescindíveis, não lhe determinam, contudo, a sua especificidade. O roteiro, texto escrito é, ainda, uma peca literária, uma pré-visualização do filme futuro. A fotografia ajuda a compor e a melhor definir o estilo, algumas vezes com função dramática especial - Vittorio Storaro, iluminador de Bernardo Bertolucci (O Último Imperador, O Céu Que Nos Protege...) assume uma função de quase co-autoria , mas, na maioria dos casos, o diretor de fotografia segue os ditames do realizador. A cenografia, ainda que, em raros filmes, surja como elemento deflagrador da evolução temática - Vincente Minnelli em Deus Sabe Quanto Amei/Some Came Running, 1958, usa a cenografia como determinante da explosão dramática, é elemento componente, assim como a parte sonora, os ruídos, os diálogos, a música - casos existem, como em Os Guarda-Chuvas do Amor/Les parapluies de Cherbourg, 1965, e Duas Garotas Românticas/Les Demoisselles de Rochefort, 1966, ambos de Jacques Demy, nos quais a música tem tanta importância quanto a mise-en-scène, chegando mesmo a se falar de uma mise-en-musique para estes filmes. Se a literatura se exprime por meio de palavras, vale dizer, signos arbitrários, e o teatro, além do texto, tem a presença física dos atores, a cenografia e os efeitos de iluminação, o cinema também dispõe dos recursos do teatro e da literatura e ainda de um recurso próprio, importantíssimo, que é a variação do ponto do espaço de onde são fotografadas as imagens exibidas na tela. Assim, toda cena de um filme é formada por muitos instantâneos vistos de diferentes perspectivas e denominados de planos. Chama-se variação do ângulo visual essa particularidade do cinema. Quando alguém vai ao teatro, a cena é vista do mesmo ângulo, o ângulo visual do lugar em que se está sentado. A variação do ângulo visual é, portanto, a base da linguagem e determina a sua especificidade.O exemplo do espectador do teatro é ilustrativo: este, se quiser ter uma perspectiva diferente do palco, tem que mudar de lugar. No cinema, não, o espectador, ficando no mesmo assento, vê a cena de muitos modos diferentes, porque a câmera cinematográfica se encarrega de mudar de lugar - de ângulo - para ele. O que significa dizer: o espectador vê o filme por intermédio da câmera, vendo sempre aquilo que ela viu na rodagem do filme. Tudo o que se vê na tela - no enquadramento - é o que se chama de realidade profílmica: aquilo que se encontra no campo visual abarcado pela objetiva da câmera. Um cineasta, quando pretende fazer determinada tomada, escolhe um fragmento da realidade, recortando-o através do enquadramento, fixando uma parcela maior ou menor do campo visual. A parcela contida nos limites desse campo visual é o que se denomina quadro fílmico. No filme, o quadro fílmico é a área do fotograma. Na operação de filmagem, o campo da objetiva e, na projeção, a superfície da tela. Assim, conforme a câmera fique mais próxima ou mais distante - ou mais inclinada ou mais à direita - tem-se, no seu visor e, depois, na tela, diferentes aspectos ou enquadramentos da realidade profílmica. Nunca se vê, portanto, uma imagem do mesmo ângulo visual por mais de alguns segundos, pois a câmera sempre muda de lugar., selecionando e enquadrando diferentes parcelas da realidade profílmica. A mais simples das cenas é vista como uma articulação de diversos instantâneos, filmados de diversos ângulos e mostrando aspectos da realidade profílmica, instantâneos que são, precisamente, os planos, os quais possibilitam a extraordinária variedade de pontos de vista oferecida pelo cinema. A conquista da linguagem cinematográfica foi sendo feita aos poucos, ela não nasce com a invenção do cinema em 1895 pelos Irmãos Lumière.
Se a projeção de filmes neste ano, em Paris, inaugura o registro das imagens em movimento, o que se descobre, no entanto, é uma técnica foto-reprodutora da realidade, mas a linguagem ainda não existe, desenvolvendo-se aos poucos até que o americano David Wark Griffith sistematiza, em 1914/15, os diversos elementos determinantes da especificidade fílmica em O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1914) e, também, com maior forca em Intolerância (Intolerance, 1916).

22 outubro 2006

Introdução ao cinema de Godard


Nascido em 1930, é um realizador, hoje, com 76 anos, mas que continua na ativa, fazendo filmes, reclamando e polemizando, nunca deixando de causar controvérsias – como se pode observar em Elogio do amor, que não é uma unanimidade, pois há quem o adore e quem o deteste. Se, na última fase, por uma certa radicalidade com os procedimentos cinematográficos, causou uma 'diáspora' incontornável entre os cinéfilos, não se pode negar, porém, que seus filmes dos anos 60 são significativos e ‘divisores-de-água’ para o cinema contemporâneo. Detona a Nouvelle Vague com Acossado em 1959 juntamente com François Truffaut em Os Incompreendidos, entre outros, provocando um trauma duradouro no cinema francês.

As primeiras letras, fê-las na Suíça, mas logo se transfere para Paris a fim de estudar no tradicional Liceu Buffon e, em seguida, forma-se em Etnologia pela Sorbonne. Em inícios da década de 50, vem a conhecer, na Cinematheque Française, Henri Langlois, com quem faz logo amizade. Publica em La Gazzette du Cinema suas primeiras críticas, que despertam curiosidade em cinéfilos aguerridos como François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette, André Bazin, que o convidam para ser crítico permanente da revista Cahiers du Cinema. Resolvido a conhecer os Estados Unidos, abandona suas atividades críticas e, na volta, emprega-se como operário na construção da represa da Grande-Dixence, na Suíça, apesar de diplomado com nível superior. Quer, na verdade, “sentir-se operário” e, findo o trabalho, o que ganha, emprega na produção de seu primeiro exercício fílmico: o documentário ‘Operation Béton’ (1954). Volta para a revista e, desta vez, a praxis conduz o crítico, pois, em Genebra, faz, em 16mm, Une femme coquette. No campo curtametragista realiza, ainda, Tous les garçons s’apellent Patrick (1957), Charlotte e son lules, em 1958, e, neste mesmo ano, Une histoire d’eau, em co-direção com François Truffaut.

A sorte grande de Jean-Luc Godard é ter encontrado o produtor Georges Beauregard, que, interessado em bancar filmes para a renovação do cinema francês, aposta no cineasta e produz, para ele dirigir, Acossado (About de souffle), com argumento escrito por Truffaut, obra marcante e que inaugura a Nouvelle Vague. A seguir, já em 1960, O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat), filme sobre a trágica aventura – e uma tanto ridícula, convenha-se – de um agente secreto ocasional em luta contra as forças revolucionárias argelinas. Neste filme, já afirma precocemente seu caráter de autor, curiosa síntese de cinéfilo e cineasta.

No ano seguinte, um de seus melhores trabalhos, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme), 1961, comédia ácida sobre a nostalgia do filmusical americano com alusão a Vincente Minnelli, entre outros, e com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina. Este filme merece ser destacado pela sua inusitada importância na época de seu aparecimento e pelo elogio ao cinema musical clássico realizado em Hollywood. A seguir, em 1962, vem Viver a Vida (Vivre sa vie), apólogo sobre uma mulher - Anna Karina, como de hábito – que vende seu corpo para, paradoxalmente, conservar a sua alma, dotado de profunda humanidade e de uma emoção insólita e pura.
A construção polifônica destes filmes, baseada numa tensão dialética entre a realidade e a fantasia, na qual se sintetizam vários planos superpostos – um relato fictício, um elemento autobiográfico, uma reflexão sobre a natureza do cinema, um tratamento documental, etc – dá origem ao que se pode considerar um novo gênero cinematográfico: o ensaio filmado. Este caráter dialético se faz mais patente nos “sketches” que realiza para vários filmes com um propósito claramente experimental: A preguiça, de Os Sete Pecados Capitais (Les sept péches capitaux, 1961), Rogopag (1962), Montparnasse-Levallois, episódio de Paris visto por... (Paris vu par..., 1964).

Segue Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963), outro apólogo, mas, desta vez, feroz e sarcástico, num filme sobre a guerra, baseado numa comédia de Beniamino Joppolo, que adapta de Roberto Rossellini, A “escritura” de Godard se transforma, adquirindo mais virulência, com uma ressonância trágica e desencantada cada vez maior. Como prova, o admirável O Desprezo (Le Mépris, 1963), harmoniosa síntese de classicismo e modernidade. Reflexão sobre o cinema, este filme utiliza, com grande propriedade artística, os recursos da tela larga, do cinemascope, sendo indispensável ser visto e contemplado na sala de exibição em celulóide. Em alguns momentos, os corpos dos atores se transmudam em esculturas paralelas aos volumes arquitetônicos. Assim como a belíssima Brigitte Bardot, cujo corpo adquire, neste filme, um “teor escultural”. Beleza enquanto explicação da beleza, arte enquanto explicação da arte, cinema enquanto explicação do cinema.

A partir de 1963, a carreira de Jean-Luc Godard adquire uma atividade intensa, um ritmo febril, rodando dois ou três filmes por ano e saudado pela platéia dos ‘cinemas de arte e ensaio’ como um revolucionário, um “desconstrutor” da linguagem, um entusiasta do cinema enquanto ensaio fílmico. Uma geração chega a se formar, no Rio de Janeiro, para discutir Godard, constituída de jovens cariocas que, após as sessões de seus filmes, sentam-se nos barzinhos da rua Paissandú – a sala exibidora tem este nome – para discutir o último “travelling” do cineasta. A “godarmania” atinge a juventude nos tresloucados anos 60 e se espraia pelas principais centros intelectuais do planeta.

Cada novo filme de Jean-Luc Godard se constitui numa ambiciosa experiência em terrenos tão diversos como o poema romântico (Bande à Part, 1964) – inédito no Brasil, o ensaio psicológico (Uma Mulher Casada/Une Femme Mariée, 1964), e a ficção-científica (Alphaville, 1965). Por sua vez, O Demônio das Onze Horas (Pierrot, Le Fou, 1965) se estabelece como uma suma antológica de toda a sua obra, o ponto limite de uma série de experiências, num intento de recapitulação que parece anunciar o começo de uma nova etapa. Autor existencialista por excelência, sua obra se caracteriza por uma unidade profunda, ainda que a aparente disparidade de seus elementos. Seus filmes singulares – pelo menos os da primeira fase – podem ser integrados numa espécie de “macrofilme”, considerando-se a coerência de seus temas, seus personagens e seu estilo – e, como dizia Buffon, o estilo é o homem! Cineasta do instante, seus filmes resultam da justaposição de uma série de ‘momentos de verdade’ privilegiados, obtidos por meio de uma técnica de improvisação que tende a confundir os atores com seus personagens. A linguagem destes deixa de ser meio de comunicação para se converter em elemento expressivo – vide Belmondo em Pierrot, Le Fou a se dirigir aos espectadores quando uma estupefata Anna Karina lhe pergunta com quem está falando enquanto dirige um carro veloz pelo interior da França.

A síntese godardiana se encontra na “collage” dialética a meio caminho entre a montagem de atrações de Eisenstein e a estética da pop art. Suas obras se incluem entre aquelas de estrutura narrativa complexa e de fragmentação, com a união dos elementos mais díspares: rupturas de tom de comédia a tragédia e vice-versa, sempre na busca desesperada da representação de um equilíbrio instável entre o personagem e o mundo circundante.

A revolução godardiana determina uma interferência na sintaxe cinematográfica. O realizador de ‘Acossado’, após conhecer profundamente o cinema clássico, principalmente o americano do ‘grande segredo’, pôde, então, efetuar uma evolução nesta sintaxe através de modificações nos procedimentos cinematográficos, a exemplo da estruturação fragmentada de seus filmes com a inclusão de material de origem diversa da icônica, como livros abertos, atenção à palavra que está sendo dita ou lida, a montagem sincopada que não obedece a uma continuidade narrativa, etc. Na verdade, Godard expande a linguagem, possibilitando-lhe um maior campo de expressão como é exemplo o ensaio fílmico. A sua influência é devastadora, notadamente nos cineastas adeptos de uma “nova vaga”. Note-se que A Ilha das Flores, de Jorge Furtado, tem muito do Godard de Duas Ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux Ou Trois Choses Que Je Sais D’elle).

Poder-se-ia dizer que a trajetória de Jean-Luc Godard se divide em três fases, cabendo, num critério mais rigoroso, até a inclusão de uma quarta fase. A primeira é aquela que começa vibrando com ‘Acossado’ – que este comentarista considera ainda a sua obra-prima – e termina, mais ou menos, em A Chinesa (1968) ou Week-end à Francesa. Maio de 1968 é um tempo de mudança, de rupturas e o cineasta considera que nada mais tem a dizer com a ficção, pois o cinema, para ele, deve partir para uma “ação armada”. A opção preferencial determina-lhe um engajamento num “cinema coletivo” sem concessões que denomina de “Grupo Dziga Vertov”, cujos filmes devem incitar à revolução do homem, presa das armadilhas do destino e das vicissitudes de uma sociedade injusta.

A característica apontada de um cinema de “collage” pode ser ainda melhor observada nos filmes mais recentes do cineasta. Jean-Luc Godard antecipa a pós-modernidade com seus ensaios fílmicos que permitem à linguagem cinematográfica uma força expressiva que vai além do mero suporte para o desenvolvimento fabulístico. Neste particular, o cinema de Jean-Luc Godard é um cinema “avant la lettre”.