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25 maio 2007

A miséria cultural na 'contemporaneidade'




Harold Bloom é um dos poucos críticos que se posicionam sobre a miséria cultural da chamada contemporaneidade. Uma miséria que se espraiou como metástase pelas universidades do mundo. A coragem de Bloom é a coragem de ser. O que vai abaixo saiu na Folha de S.Paulo em agosto de 1995 no caderno Mais! É muito importante e deve servir de alerta aos incautos e aos inocentes úteis. Bloom mostra que, atualmente, na 'contemporaneidade', não se leva mais em conta o valor estético. Como se pode ver a seguir:

Autor de 21 livros, professor catedrático nas universidades de Yale e Nova York, Harold Bloom é um dos mais importantes críticos literários do nosso tempo. Sua obra abrange desde um estudo sobre Shelley (1959), passando por grandes análises de Yeats (1970) e Wallace Stevens (1977), e pela monumental ``tetralogia da influência" (1973-76), até volumes mais recentes, de crítica cultural.Desde 1985, Bloom vem dirigindo, ainda, a publicação de cerca de 800 antologias de crítica literária (Chelsea House Publishers) _uma empreitada à altura de sua proverbial erudição e produtividade. Um novo projeto, recém-iniciado, consiste na elaboração de cerca de cem pequenos ``roteiros de leitura", sob forma de fascículos, para estudantes de curso secundário e de graduação.
Aos 65 anos (em 2007 deve ter 77), e com um novo livro sempre em andamento, ele continua escrevendo regularmente para jornais e revistas do mundo todo. E diz que espera dar aulas ``até que venham buscar meu cadáver".Foi na década de 70 que o nome de Bloom se tornou mundialmente famoso, por conta de seu conceito mais repetido: a angústia da influência (leia texto nesta página). De lá para cá, tem-se aproximado cada vez mais de um público não-acadêmico. Pode-se mesmo dizer que nenhum outro crítico é tão conhecido, hoje, dos leitores não-especializados.No ``Livro de J" (1990), um best seller, Bloomfaz uma leitura tão afrontosa quanto bem-humorada da ``Bíblia" como literatura. ``A Religião Americana" (1992) é uma tentativa de definir o espírito nacional dos Estados Unidos, com ênfase sobre a religião dos mórmons e dos batistas.Adversário contumaz do politicamente correto, publicou, no ano passado, ``O Cânone Ocidental", um volume majestoso, abarcando da Bíblia até Beckett, e que será lançado no próximo dia 14 no Brasil pela editora Objetiva. Nos Estados Unidos, em menos de um ano, já vendeu 65 mil exemplares. Seu próximo livro, ainda não publicado, vai-se chamar ``Augúrios do Milênio", que ele descreve como um ``estudo gnóstico sobre os sonhos, os anjos e a ressurreição". Vale dizer: uma resposta ao milenarismo.Em ``O Cânone Ocidental", Bloom estuda nada menos que 26 grandes autores, ao longo de mais de 500 páginas. Centrados sobre Shakespeare e Dante, e incluindo nomes como Cervantes, Montaigne, Goethe, Tolstói e Freud, os 26 servem para representar o cânone, que, segundo Bloom, está praticamente em vias de desaparecer dos currículos universitários. Combativo, ácido, mas acima de tudo muito engraçado, ``O Cânone Ocidental" é, de uma vez só, um dos maiores trabalhos de crítica literária do nosso tempo _uma façanha de dimensão gigantesca e enormes ambições_ e um dos mais corrosivos ataques à nova ordem acadêmica, sob o regime do multiculturalismo e do politicamente correto.
Eloquente, original, polêmico, Harold Bloom é admirado por seguidores e adversários, pelo conhecimento da literatura e a capacidade de renovar a interpretação de tantas obras. De sua autoria, foram publicados no Brasil ``A Angústia da Influência", ``Cabala e Crítica", ``Poesia e Repressão", ``Um Mapa da Desleitura" e ``O Livro de J" (todos pela Imago), além de ``Abaixo as Verdades Sagradas" (Companhia das Letras). Há um ano, ele colabora mensalmente com o Mais!.Num dia de julho, Harold Bloom recebeu a Folha em Nova York, para esta entrevista exclusiva. Nela, fala do ``desastre`` irreversível da crítica literária nas universidades americanas. Define-se a si mesmo como ``um crítico cômico" e relembra suas relações (e brigas) com Jacques Derrida e Paul de Man. Contrapõe sua leitura de Dante à do poeta T.S. Eliot, alvo também de muitas ressalvas. Afirma que Shakespeare ``é" o cânone, e mostra como ``todo intelectual do Ocidente, a partir de Hamlet, é Hamlet". Explica suas intenções com o livro sobre o cânone e critica a transformação gradual dos Estados Unidos numa nação ``neofascista".Certa noite de verão, em 1967, Harold Bloom teve um pesadelo. Sonhou que estava sendo sufocado por uma grande criatura alada. Levantou-se, lavou o rosto e começou a escrever ``A Angústia da Influência" (ed. Imago), até hoje seu livro mais importante.A criatura alada, no livro, aparece como o ``Querubim Cobridor", tomado de empréstimo ao poeta romântico Blake. Serve de símbolo à sensação angustiada de todo poeta, face ao peso dos precursores. A poesia não é outra coisa senão a tentativa do poeta de criar um lugar para si mesmo, lá onde não há mais espaço: na literatura. Para Bloom, portanto, a história literária é indistinguível da influência _das distorções e transferências na relação entre um poeta e seu precursor.Todo poeta nasce da relação com outros poetas e todo poema é a leitura de um outro poema, anterior. Mas esta não é uma leitura imparcial, porque o poeta forte está sempre se lendo a si mesmo, na obra dos outros. Vale dizer que não existem ``poemas" isolados, mas tão-somente relações entre poemas. Assim como não existe leitura, mas ``desleitura" _o deslocamento de uma obra anterior pela nova. O autor ``forte" é aquele capaz de inverter causa e efeito, criando a ilusão de que ele mesmo é o precursor do seu precursor.Cada novo autor torna-se, ele mesmo, um ponto de referência não só para as obras do futuro, mas também do passado. Como já escrevera Jorge Luis Borges, depois de Kafka, há autores kafkianos por toda a história da literatura. Bloom reconhece Borges como um antecessor, mas não aceita o ``idealismo estético" do autor argentino. A criação do precursor, para Bloom, não pode ser limpa de rivalidade e polêmica: ``Todas as coisas já têm nome. O esforço de apagar esses nomes é uma incitação às verdadeiras batalhas combatidas sob o estandarte da influência poética, guerras declaradas pela perversidade do espírito contra a riqueza reunida, a riqueza da tradição" (Introdução a ``Yeats", de 1970).Se o significado de um poema é outro poema, se cada poema é um ``ato de leitura" _menos um objeto do que um movimento em relação a outro poema anterior_, então a poesia não difere, essencialmente da crítica. Da mesma forma que a crítica é, ou deveria ser, poesia em prosa, neste sentido específico de ``poesia". Criação literária e leitura passam a ser sinônimos.Questões de influência estão intimamente ligadas à história literária.
Para Bloom, a influência é a própria força de formação do cânone. A resposta à pergunta ``quem canonizou Milton?" é, em primeiro lugar, o próprio Milton (ao se constituir como poeta), mas também outros poetas (ao fazerem da sua própria poesia uma maneira de resistir ou se desviar de Milton).É para a historiografia, portanto, que tendem a convergir os caminhos da influência. Da perspectiva aberta pelos trabalhos de Bloom, fica difícil manter padrões tradicionais de período, estilo, ou mesmo de autor, contestados ali pela exposição de uma ``vida privada" dos textos. Seu livro mais recente, sobre o cânone, foi escrito como uma reação às condições particulares da cultura e da política americana hoje; nem por isto fica menos claro esse arco de 20 anos e 15 livros, que liga, com toda a força de uma determinação poética, ``A Angústia da Influência" a ``O Cânone Ocidental".(Arthur Nestrovski)A crítica literária está morta, ou quase morta, na academia americana; para sobreviver, terá que mover-se para fora dali; a próxima geração de bons leitores e críticos virá de fora da universidade Grande conversador, tão generoso com suas idéias quanto impiedoso com os inimigos, Harold Bloom é um dos observadores mais agudos da situação cultural e política do seu país. De sua casa, em Washington Square, ele nos ensina a ver melhor toda a comédia amarga do que outro habitante mais antigo desta mesma praça, Henry James, já descrevia como ``a cena americana"
.Folha - Em seu livro, o senhor escreve que ``nós estamos destruindo todos os padrões intelectuais e estéticos nas ciências humanas e sociais, em nome da justiça social". ``Nós", aqui, significa presumivelmente ``eles", se não ``vocês".
Harold Bloom - Não sei como é o caso no Brasil. Para os países de língua inglesa, de maneira muito marcada, ``nós" significa simplesmente a academia. Nos Estados Unidos, como na Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, a situação foi tomada pela maré terrível do que eu chamo de Escola do Ressentimento.Fundamentalmente, o que ocorreu _e parece agora impossível de ser revertido_ foi uma coalizão de, entre aspas, ``feministas", ``marxistas", ``neo-historicistas", ``materialistas culturais" e teóricos de inclinação francesa _Lacan, pseudo-Lacan, pseudo-Derrida, pseudo-Foucault. Esta coalizão representa hoje cerca de 70% dos professores em meio de carreira, e mais da metade deles são cultuadores fanáticos da Escola do Ressentimento.Não estão interessados em literatura, ou na filosofia tradicional; decididamente não têm o menor interesse por interpretações convencionais da história ou pela história das idéias. Não têm interesse algum por aquilo que eu chamo de crítica literária, que é o que o mundo sempre considerou como tal, desde Platão, Aristóteles e Longino até uns 15 anos atrás.
Folha - Mas o ressentimento é contra o quê?
Bloom - Falo de uma Escola do Ressentimento, jogando com o sentido nietzscheano da palavra, porque a meu ver seu ressentimento está dirigido, antes de mais nada, contra a própria idéia da literatura como força da imaginação.Eles insistem que o valor estético é uma forma de mistificação burguesa: é simplesmente uma tentativa, por parte das classes dominantes, de encontrar maneiras de preservar o sistema econômico, político e social, ancorado em escritores ``homens, brancos e mortos", seja da América ou da Europa. O sistema, sem dúvida, está sendo preservado; mas parte do fascínio, ou melhor, do horror do que vem acontecendo é o fato de que essa gente de pseudo-esquerda não pode ser mais fraudulenta _porque não são, na verdade, de esquerda: são eles mesmos mistificadores burgueses, que se mistificaram ao ponto de se acreditarem revolucionários, quando, de fato, estão vivendo muito bem, por cima da carne seca.
Folha - Mas não há nada de autêntico neste movimento?
Bloom - Falo de pseudofeministas, por exemplo (e eu as conheço bem: muitas foram minhas alunas de doutorado, como aliás um bom número dos nomes mais importantes da Escola do Ressentimento inteira _hoje não falam mais comigo, nem eu com eles), porque nunca tomaram parte em qualquer manifestação a favor do aborto, nunca tentaram fazer qualquer coisa pelas mulheres pobres ou pela população carente em geral, nunca nem ao menos colaboraram com as ligas políticas pela defesa dos direitos da mulher.Do mesmo modo, não passam de pseudomarxistas: na verdade, pertencem à alta burguesia.Folha - Mas este movimento tem alguma força fora da universidade?Bloom - É um movimento espantoso, que acabou provocando as piores reações. Somos hoje os Estados Unidos da Gingríchia, governados por um partido republicano sulista, de extrema direita (liderado por Newt Gingrich), e que está aí para ficar. E isto se deve, em parte, a essa gente.A ação afirmativa (as várias políticas de compensação das minorias) começa a definhar na universidade, como na sociedade em geral, mas para eles já atingiu seus resultados. Estão aliados não só com os nacionalistas afro-americanos, que há muito tempo abandonaram qualquer critério estético _se é que jamais tiveram algum_, mas também com os assim ditos ``multiculturalistas". E o resultado é esta insanidade, a aceitação de que o teste de valor para uma obra literária _o teste canônico, por excelência, que é definir se uma obra deve ou não ser estudada enquanto texto_ resume-se à pergunta: a autora é mulher? O autor é americano-asiático ou americano ``nativo" (descendente dos índios)? Isto, em oposição a um anglo-saxônico ou um judeu _porque os judeus, de algum forma, são misturados no mesmo balaio dos anglo-saxões, como parte da assim chamada ``elite" ou ``estrutura corporativa da realidade".
Folha - Onde isto deixa a crítica literária?
Bloom - A crítica literária está morta, ou quase morta, na academia americana. Haverá de sobreviver, porque é parte da literatura e a literatura vai sobreviver, mas terá de mover-se para fora da academia.Eu agora digo a todos os meus melhores alunos de graduação para não cursarem pós-graduação nessa área. Façam qualquer outra coisa, garantam a sobrevivência do jeito que for, mas não como professores universitários. Sintam-se livres para estudar literatura por conta própria, para ler e escrever sozinhos; porque a próxima geração de bons leitores e críticos terá de vir de fora da universidade.Virá de outros ambientes, como as editoras, a mídia, as agências de publicidade e de relações públicas e outras esferas profissionais, como direito ou medicina. E, talvez, a longo prazo, isto seja mesmo saudável.
Folha - Talvez, mas as perdas também não serão pequenas.
Bloom - Hoje em dia, só o que se pratica na universidade americana é um teste de filiação ideológica. Se você acredita que a obra de Faulkner é, como é mesmo, mil vezes superior aos últimos romances de Toni Morrison, não terá lugar na universidade. Não será nem aceito como aluno de pós-graduação nas melhores escolas.Só restam, agora, uns dois ou três refúgios. Harvard está lutando, mas basicamente já foi tomada pela Escola do Ressentimento. Yale permanece um bastião de resistência, com mais um ou outro lugar. Mas eu diria que, das aproximadamente 200 universidades em nosso país, 190 renderam-se incondicionalmente.Princeton, por exemplo. O departamento oferece aos alunos uma lista dos 20 professores que ensinam literatura. Pois bem: desses, 16 _12 deles meus ex-orientandos_ indicam como principal linha de pesquisa os ``estudos de gênero" (masculino/feminino). Isto quer dizer que o departamento de literatura na universidade de Princeton tornou-se, agora, na prática, um departamento de estudos de gênero!Parece piada, mas o fato é que o estudo da literatura nos Estados Unidos transformou-se em estudos de gênero, estudos étnicos, estudos raciais. O que mais se pode dizer?
Folha - Mas o que, afinal, se lê nesses cursos?
Bloom - Nós temos hoje dezenas de milhares de alunos de graduação em literatura e milhares de pós-graduação que jamais leram Shakespeare, jamais leram Wordsworth, jamais leram Cervantes _frequentemente nem sabem de quem se trata_, mas já leram Foucault! São verdadeiras autoridades em Foucault.Minha sentença favorita no livro é a seguinte: se multiculturalismo significasse Cervantes, quem poderia reclamar? Mas o problema é que não significa. Significa algum autor sem expressão, geralmente do sexo feminino, mas com algumas exceções para homens porto-riquenhos e chicanos. Autores da pior qualidade, cujos nomes nem vale a pena mencionar.Folha - Dê ao menos um exemplo.Bloom - No livro eu menciono um caso, sem dar o nome, mas trata-se do escritor chicano-americano Gary Soto. Foi este senhor o escolhido, por voto, na Universidade de Chicago, para substituir, como tema de estudo no curso de introdução à literatura, o senhor Ernest Hemingway.Folha - O ``Cânone Ocidental" tem sido muito atacado especialmente pelas listas de ``obras canônicas" no final do livro.Bloom - Nao consigo entender por que as listas vêm desviando a atenção do livro. A coisa mais importante nem ao menos é a polêmica (sobre o cânone e o multiculturalismo). É o que tenho a dizer sobre os 26 autores, que estão ali, implicitamente, representando o cânone.A polêmica é secundária. Restringe-se a uma seção elegíaca no começo e outra, ainda mais breve, no fim. E tenho uma certa tendência, ao longo do texto, de me animar um pouco, fazendo piadas à moda de Jonathan Swift, castigando inimigos. De maneira geral, são piadas bem humoradas.Folha - Talvez fosse bom explicar, de uma vez por todas, o sentido das listas.Bloom - Há um ponto importante sobre as listas que eu devo deixar claro, especialmente para os leitores brasileiros. Como digo no livro, elas foram pensadas, muito particularmente, para leitores norte-americanos e, secundariamente, para leitores de outros países de língua inglesa.Sei que existem alguns romancistas e poetas brasileiros de primeira grandeza, mas estão muito mal representados em tradução para o inglês. Portanto, não estão na lista.A tradução de Guimarães Rosa, por exemplo, é um absurdo completo. Não dá para ler; é um inglês semiletrado. Até a regência verbal tem erros. O mesmo se passa com Euclides da Cunha.Meu português, hoje em dia, já dá para ler um jornal. Com apoio de traduções, posso ler Carlos Drummond de Andrade. Mas não sou capaz de ler um português mais difícil. Sem uma tradução lúcida e inteligente, que me dê ao menos algum senso da qualidade literária da obra, como posso recomendá-la para um leitor americano?Hoje me pergunto se não teria sido melhor deixar a lista de fora desde o início. Por outro lado, queria mostrar, especialmente na lista de autores contemporâneos, que há toda sorte de obras da moda, incluindo as politicamente corretas, que não têm lugar ali. Mas não sei mais o que pensar, meu caro. Acho que as listas causaram mais mal do que bem. Só posso repetir que não há razão alguma para a lista ser publicada no Brasil (ela será editada no volume brasileiro).
Folha - Podemos falar um pouco sobre a importância de Shakespeare no livro?
Bloom - O ``Cânone Ocidental" é, de muitas maneiras, um livro sobre Shakespeare. Sobre a sua presença avassaladora nas literaturas do nosso mundo e também sobre o fato de que Shakespeare, como eu digo em certo ponto, é o primeiro, o único, o verdadeiro autor multiculturalista. Mais do que Dante, porque Dante só é lido, basicamente, por outros poetas, não pelo leitor comum. Mais do que Dickens, mais até do que Cervantes, embora esse seja um rival considerável. Shakespeare é o nosso verdadeiro multiculturalista.
Folha - A questão do cânone, no fundo, não está ligada à poética da influência, isto é, à forma como os autores se lêem uns aos outros e assimilam e desvirtuam as obras uns dos outros através da história? Neste sentido, não se pode dizer que o senhor vem pensando sobre o cânone desde o princípio?
Bloom - Sempre fui fascinado pela questão do cânone, desde minha tese de doutorado. Só cheguei a um entendimento do processo da influência por meio do processo canônico.Foi ficando cada vez mais claro para mim que o motivo por que um poeta como Wordsworth, o poeta canônico por excelência, jamais teve a mesma penetração na Europa que Byron e Shelley é porque Byron, que detestava Wordsworth, e achava que detestava sua poesia também, mesmo assim fica reescrevendo essa poesia.

23 maio 2007

Baiano não respeita a sua memória

Peço licença a Fernando Conceição, editor do Jornal da Facom, para transcrever aqui neste modesto blog reportagem que saiu no seu último número sobre a agonia de dois cinemas que muito frequentei durante a minha adolescência e juventude. A reportagem é de autoria da aluna Lívia Nery. Acredito que Fernando não vá me processar pela transcrição, mas, se assim quiser, tenho advogado já contratado para me defender. O título da matéria é Memória negligenciada mas tomei a liberdade de trocá-lo, aqui, para Baiano não respeita a sua memória. Para os poucos que me lêem (que são muitos), aconselho dar uma olhada no jornal faconiano que se encontra em edição 'on line' neste link: http://www.jornaldafacom.ufba.br. A foto é de Nery e mostra o majestoso Jandaia em ruínas. E para que existe, então, Minc? Vamos abrindo as aspinhas para não haver compromisso de autoria da coisa:

“Ele é tão alto... De cima dele dá pra chegar no céu!”, comentou Douglas Silva, de seis anos. Enquanto falava, ele apontava para o cine-teatro Jandaia, que fica em frente à janela de sua casa, na Baixa dos Sapateiros. Apesar de saber que ali funcionou um cinema, Douglas não faz idéia de que aquele lugar, décadas atrás, já foi chamado de “Palácio das Maravilhas”, tamanha sua grandiosidade e imponência. Hoje, motoristas e pedestres passam sem notar o velho Jandaia, que está fechado há uma década e com suas instalações completamente deterioradas.
Na última vistoria feita no prédio pela Coordenadoria Especial de Defesa Civil da Prefeitura de Salvador (Codesal), em 2003, o engenheiro Roberto Casqueiro identificou que o telhado estava danificado, as paredes úmidas e com infiltrações e as tubulações enferrujadas. “Na época não eliminamos o risco de desabamento”, ressaltou, embora a estrutura do prédio seja toda de concreto. Ele afirma que enviou o relatório à Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo (Sucom), que interditou o imóvel e notificou os donos, sem que até agora eles tenham “tomado providências”. Casqueiro acrescenta: daquele ano para cá, as condições do antigo cinema devem ter sido agravadas.O engenheiro levantou a hipótese de o prédio ser desapropriado pelo governo para o projeto de restauração e revitalização da Baixa dos Sapateiros. Segundo ele, a velha casa de espetáculos “está numa área de preservação rigorosa”. A rigorosidade a qual se refere, no entanto, não é tão evidente assim. A região está abandonada pelo poder público e o projeto de revitalização e restauração não chegou a ser concretizado em nenhum dos seus prédios da área.
Cláudio Valansi, sócio comercial da empresa Savinal S/A, atual proprietária do Jandaia, afirma que nunca recebeu nenhuma notificação da Sucom sobre a interdição do prédio. Declarou à reportagem que sua empresa tem participado das discussões com o governo estadual em torno da revitalização. O prédio, segundo ele, faria parte da reforma do Centro Histórico, que incluiria toda a Baixa dos Sapateiros. “Ficaram de fazer um estudo e me falar, para fazer uma parceria para um centro cultural no lugar, mas até hoje estou aguardando”, disse. Valansi também é dono do prédio do antigo cine Tupi e diz possuir outros cinemas antigos espalhados pelo país.
“A gente não esqueceu do caso da Bahia, mas precisamos ter uma ajuda do governo”, disse ele, anunciando que agora, com a mudança governamental, pretende retomar os contatos. Questionado sobre o motivo de não ter dado atenção e manutenção ao imóvel do Jandaia, afirmou que já estava contatando uma empresa para fazer os reparos do imóvel. Garante que agora, a partir de maio, vai dispensar mais atenção ao Jandaia e a outros cinemas da região Nordeste dos quais é dono.Decadência da Baixa dos Sapateiros foi crucial
Quem passa pelo prédio do ex-cine Jandaia e se aventura a entrar pelas aberturas existentes, fica surpreso com o mau estado de conservação do antigo cinema. Quando chove, a água entra pelas brechas do telhado que desabou, e que a cada dia ameaça ceder mais um pouco. Os balcões, que outrora serviam de camarote aos espectadores da alta sociedade baiana, hoje estão cobertos de lodo e escoram partes do teto.Como as portas eram facilmente arrombáveis, pessoas entraram no lugar e roubaram tudo o que havia de valor, como os corrimões e esculturas de latão italiano, os móveis dos camarins, o granito das escadarias e todo o maquinário abandonado no cinema. O lugar até pouco tempo servia de abrigo para moradores de rua e traficantes, conforme alegam comerciantes da região. “A malandragem entrava e está tudo destruído, roubaram tudo aí dentro. Precisou a gente e as outras lojas ao lado cimentar a porta para evitar que as pessoas entrassem”, afirmou Severino Cortizo, cuja família é proprietária há quase 80 anos de uma loja de ferragens na parte térrea do prédio onde estava o cinema.
Cortizo lamenta a decadência que afetou o Jandaia e, na sua opinião, toda a Baixa dos Sapateiros. Sua irmã, que trabalha na loja e viveu o tempo áureo dos cinemas da região, recorda-se com saudades de quando o lugar era o centro econômico e cultural da cidade. “Isso aqui era uma riqueza. Aqui só entrava a alta sociedade. Eu assisti muitas matinês no cine Jandaia, e minha mãe, na época, vinha de chapéu e de luvas pra cá”, relembra.
Fundado em 1910 pelo comerciante sergipano João Oliveira, um apaixonado por cinema, o cine-teatro Jandaia até os anos 70 funcionou em plena atividade. Naquela época, os cinemas espalhados pelos bairros eram uma procurada opção de lazer para os baianos. A Baixa dos Sapateiros, movimentado centro comercial no período, abrigava as salas mais importantes, como o cine Pax, o Aliança e o Jandaia, que dispunha de 2.200 lugares. Como teatro, o Jandaia recebeu artistas ilustres: Carmem Miranda, Elis Regina, Riachão, entre outros.
Na década de 70, com o deslocamento do centro comercial de Salvador para outras regiões, a família encontrou dificuldades em manter o cinema e vendeu o prédio para a Savinal S/A, atual proprietária, que o arrendou, já nos anos 80, para a Orient Filmes. Depois de um período exibindo filmes de pornografia e artes marciais, a empresa de exibição desistiu do Jandaia, com o crescente aparecimento dos cinemas nos shopping-centers. Desde 1998 está abandonado.Cine Tupy está em litígio
Outros dois cinemas da Baixa dos Sapateiros, o Cine Pax e o Cine Tupy, que também sofreram com a decadência da Baixa dos Sapateiros, podem ser alvo de mudanças em breve. O arrendamento do Cine Pax, pertencente à Ordem Terceira de São Francisco, está sendo negociado com uma empresa que quer transformá-lo em espaço de eventos, enquanto a Savinal S/A, proprietária do Cine Tupy, afirmou estar com um processo contra a Orient Filmes, atual locatária, alegando falta de pagamento.Segundo Roseneide Cerqueira, funcionária da comunidade Franciscana, “a reestruturação do Cine Pax não é fácil, por demandar muito dinheiro com reformas”. Mas ela garantiu estar negociando com uma empresa interessada em fazer dele um lugar de eventos. “O nome eu não posso revelar, porque ainda não fechamos o contrato”, completou. Esta não foi a primeira proposta de revitalizar o lugar. Em 2003, Daniela Mercury anunciou que iria arrendar o espaço e transformá-lo em casa de show. Não deu certo.
No processo de decadência, na década de 80, o cine Pax passou também a exibir filmes pornôs, quando foi interditado pela Sucom por apresentar problemas nas instalações elétricas. Em 2005, foi invadido por integrantes do Movimento dos Sem-teto. Apesar da interdição, o espaço não está com sua estrutura comprometida.
Para o Tupy não foi anunciada nenhuma proposta de revitalização. Os atuais donos declararam estar com uma ação na justiça para rescindir o contrato e despejar a Orient Filmes, que estaria há cinco anos sem pagar o aluguel pela exploração do prédio. Cláudio Valansi, um dos donos da Savinal, declarou não ter mais interesse em abrigar um cinema pornô no lugar, mas não deixou claro o que pretende promover.Procurada pela reportagem, a Orient Filmes não quis se pronunciar sobre a ação. O diretor de marketing, Franklin Mônaco, respondeu ao telefonema dizendo que este assunto seria “sigiloso”, e que a vida jurídica da empresa “não é assunto para a imprensa”. Ele chegou a ameaçar abrir um processo contra o jornal caso este tema fosse abordado na reportagem."

A Jornada Baiana na Idade da Razão



O texto que vai abaixo, escrevi-o em 2003, e, ao retirar do world para o colar aqui, neste blog, os parágrafos desapareceram. Mas estou com preguiça de desembaraçá-lo. Que fique assim mesmo embolado. Desembolar-se-á em outro dia, quando tiver mais vagar na consciência. A publicação se deve pela constatação da passagem rápida do tempo, pois participei das três primeiras jornadas, sendo que, a primeira, aconteceu em janeiro de 1972, quando Salvador, que hoje é uma cidade insuportável, ainda era uma província muito agradável, muito interessante, como poucas no Brasil e no mundo. Sem incluir na conta que a jornada não se realizou em dois anos, ela existe há exatos 35 anos. Daí o assombro. Guido Araújo ainda usava calças curtas. Para Jean-Paul Sartre, 35 anos, com ele escreveu em L'âge de raison, é quando o homem entra na idade da razão.


Com a realização da trigésima Jornada Internacional de Cinema da Bahia, agora em setembro, entre 11 e 18, é tempo de se fazer um pequeno balanço de sua trajetória, que, na verdade, já dobrou as três décadas, porque em 1989 e 1990 não se realizou por falta de recursos. Assim, tendo se iniciada em 1972, se não houvesse a interrupção referida, já estaria a Jornada no seu número 32. Excetuando-se o Festival de Brasília, é o evento cinematográfico mais velho do país. As sementes das jornadas começaram a ser plantadas quando Guido Araújo, egresso da Tchecoslováquia, onde permaneceu por mais de dez anos, em 1967, ingressou na Coordenação de Extensão da Universidade Federal da Bahia, que se chamava, na época, Departamento Cultural da UFBA. Walter da Silveira, o ilustre ensaísta cinematográfico baiano, sempre desejou que a Universidade tivesse um curso de cinema e, com a presença de Valentin Calderón de la Barca, um entusiasta da idéia, na direção do departamento, encampando a sugestão, viu-se idealizado o projeto acalentado por Walter. E, em 1968, estabeleceu-se um Curso Livre de Cinema com duração de um ano e uma carga horária de quatro horas semanais, com aulas às terças e às quintas. O ensaísta ensinaria ‘História e Estética do Cinema’ e Guido Araújo, chamado para compor o corpo docente do curso, ‘Teoria e Prática’. O curso foi um sucesso e dele saíram alguns dos principais realizadores e críticos futuros do cinema baiano: André Luiz Oliveira – que realizou, ainda em 1969, ‘Meteorango Kid, o herói intergalático’, clássico do chamado Cinema Marginal, entre outros filmes, José Umberto – que, além de curtas, fez ‘O anjo negro’, longa metragem, em 1972, Carlos Vasconcelos Domingues, Geraldo Machado, José Frazão, autor de um longa baiano desconhecido e perdido, ‘Akpalô’, em 1971 e, no Rio, ‘O mistério do Colégio Brasil’, ‘O último herói do gibi’..., Ney Negrão – que tem um curta clássico, ‘O carroceiro’, de 1965, entre muitos outros, inclusive este colunista.Walter da Silveira não pôde continuar à frente do curso em 1969, por motivos de doença, um câncer que viria a matá-lo em novembro de 1970. Mas Guido Araújo, formando o GEC (Grupo Experimental de Cinema), continuou-o por alguns anos. Vale ressaltar, que ainda no primeiro semestre de 69, Walter e Guido conseguiram do Reitor da UFBa, Dr. Roberto Santos, que o Salão Nobre da Reitoria fosse destinado, aos sábados, à exibição de filmes selecionados, com a distribuição, na porta, de uma análise escrita pelo ensaísta. Um feito e tanto, pois significou o reconhecimento pela Universidade da natureza artística do cinema, que, a partir de então, se punha em pé de igualdade, perante a academia, às demais artes.O passo seguinte foi a estruturação de um modesto festival, que Guido Araújo, desde logo, insistiu em chamar de Jornada, que teve início nos anos de chumbo da ditadura Médici, em 1972, janeiro, na semana da festa do Bomfim e restrita à Bahia. O seu organizador, Guido Araújo, ampliou-a para Nordestina no ano seguinte e, em setembro, mês no qual ela se estabeleceu definitivamente. Contou, para isso, com duas ajudas fundamentais: a de Cosme Alves Neto, diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, e a de Roland Schaffner, que, naquela época, tomava posse na direção do Instituto Goethe e iria transformá-lo nos anos 70 num pólo aglutinador das artes na Bahia, fazendo história. Apesar de patrocinada pela Universidade Federal da Bahia, esta, com algumas exceções - como a do reitorado de Germano Tabacoff e o atual, de Naomar Almeida, nunca deu o apoio financeiro necessário, precisando Guido Araújo captar recursos em outros lugares. O ponto de partida da Jornada, realmente, foi no último dia da Bahiana, em 1972 quando, depois da entrega dos prêmios na Reitoria, Roland Schaffner reuniu alguns convidados em seu apartamento na rua Banco dos Ingleses. Foi aí que Guido teve a conversa propulsora com Cosme e Schaffner, viabilizando um projeto, que, a seus olhos, poderia ser exeqüível e realmente viável.A inexistência de eventos culturais por causa do arrocho ditatorial foi importante para o sucesso da Jornada, que se beneficiou enormemente do espaço quase consular do Instituto Goethe - também chamado de Icba, no Corredor da Vitória. Os melhores anos da jornada foram na década de 70 quando tudo se concentrava no Goethe. Acolhedor, o lugar também servia para que os cineastas de outros estados pudessem se reunir mais à vontade, discutir seus problemas. Também os cineclubistas desbaratados pela ditadura puderam planejar novos rumos para seus trabalhos. A Associação Brasileira de Documentaristas (ABD) foi criada na Jornada, em 1973, e nesta, com festa e encontros, comemora seus 30 anos. E alguns filmes, que eram exibidos livremente na Jornada, quando apresentados em outras capitais, sofriam a intervenção da censura. Tudo por causa do espaço icbano que os agentes da ditadura possuíam uma espécie assim de cerimônia em relação a uma intromissão invasiva.Os anos 70 viram nascer o ‘boom’ superoitista e, com ele, uma nova geração de cineastas, como Edgard Navarro, Marcos Sergipe (por onde anda?), Fernando Beléns, Póla Ribeiro, Joel de Almeida, José Araripe Jr, entre outros. As discussões eram acaloradas no cine-teatro do Icba, transformando-se, algumas vezes, em verdadeiros ‘happenings’. Fernando Cony Campos bradava em alto e bom som suas diatribes bem construídas com humor e anarquia. E anarquia maior fazia Edgard, o Navarro, que, certa ocasião, para protestar, tirou a roupa e nu, com a mão no bolso, provocou frenesi numa inesquecível noite da Jornada.Houve também o incentivo, pois os cineastas tinham seu calendário sui generis estipulado entre setembro e setembro. A Jornada os incentivava a filmes, à expressão pelas imagens em movimento. Com o passar do tempo, no entanto, a abertura democrática, a descentralização dos espaços e o surgimento de outros festivais curta-metragistas espalhados pelo país, a Jornada perdeu a sua exclusividade, quando reinava, absoluta - pela, como já se disse, sua característica consular, na ditadura como foco de resistência. Se de Baiana passou logo a Nordestina e mais rápida ainda a ter uma dimensão nacional, por outro lado esperou mais de uma década para se tornar Internacional, em 1985. No itinerário da Jornada houve também sístoles e diástoles. Em 1979, transferiu-se para a Paraíba, em 83 e 84, para Cachoeira, e quase termina em 89 e 90.Há muito tempo que a Jornada não apresenta a afluência de público que tinha nos anos 70 e mesmo nos 80. Dizem que o estilo ‘concentracionista’ de Guido Araújo impede a participação da comunidade cinematográfica, que seu modelo de evento está defasado pela passagem do tempo, que repisa os mesmos tempos, que não aderiu à pós-modernidade - neste particular, ainda bem! que a estrutura de sua administração precisa ser reformulada, que continua com uma idéia de festival já há muito superada. Que pensa a Jornada nos mesmos moldes dos anos 70. Intrigas típicas, entretanto, de uma oposição que se dilui. Neste 2003, há um clima de apoio irrestrito às jornadas setembrinas mesmo por aqueles que a viam com olhos restritos.O fato é que Guido Araújo é um obstinado. Sua tenacidade, não se há de contestar. Carrega a Jornada nas costas por três décadas, uma vida.

"Esses moços" entra em cartaz



Esses moços, longa de estréia de José Araripe, afinal entra em cartaz (sexta em bom circuito: salas multiplexadas e alternativas), mas não somente aqui na Bahia como também em São Paulo (HSBS) e na Academia de Tênis de Brasília. O fato é que Araripe, com o lançamento de seu filme em três estados simultaneamente, marcou um tento, pois como sabem todos aqueles, que se aventuram no fazer cinema, o nó górdio da cinematografia brasileira é o tripé produção-distribuição-exibição. Pronto o filme, para a maioria dos cineastas é como se estivesse a partir da estaca zero. Como colocá-lo no mercado, como marcá-lo em boas salas se todas estas sob controle das empresas multinacionais?

Tiro do release o que se segue para dar uma idéia do filme (que vou vê-lo assim que chegue aos cinemas baianos, porque, infelizmente, perdi-o nas suas sessões especiais): "Nas ruas soteropolitanas, entre o Comercio e o Subúrbio ferroviário, existe uma cidade esquecida, pedindo socorro. O outrora fausto do porto e da ferrovia à beira da baía de todos os santos, foi substituído por vilas decadentes de operários, ferroviários e pescadores que lutam pela sobrevivência e pela atenção do poder público. É nesse universo que mescla abandono e profunda beleza natural, onde Esses Moços se desenrola. Trata-se de uma fábula urbana sobre amizade, memória, e o poder sublime da música. Darlene, menina adolescente que já vive na rua, chega à cidade trazendo sua irmã pequena; reproduzindo o que aprendeu com os adultos, usa a irmã para pedir esmolas.Quando encontram Diomedes, um senhor idoso que foi agredido e encontra-se em choque, resolve ajudá-lo à pedido de Daiane, a irmã; assim arrastam o desconhecido – que acham ser cego, surdo e mudo - pela cidade, e o exploram como pedinte dando início a uma relação que suprenderá a todos.

Outras informações podem ser obtidas no site do filme: http://www.essesmocos.blogspot.com/


20 maio 2007

Cinema e a magia perdida


Texto escrito para o jornal 'Tribuna da Bahia' e publicado em 17 de maio de 2007.

Atualmente os anos se passam e cada vez fica mais difícil que um filme consiga empolgar o comentarista, este que aqui apõe a sua firma. Quando jovem, talvez pela descoberta do cinema como uma expressão da arte e, também, um divertimento sem precedentes, a emoção pudesse aflorar com mais facilidade. A cada nova descoberta, uma nova emoção. Mas também, e se convenha, o cinema, mesmo o mais comercial, tinha outra envergadura, um nível de produção muito melhor. Atualmente a indústria cultural de Hollywood está entregue a executivos de multinacionais que nada entendem de cinema. No passado, com os grandes estúdios (Metro, Columbia, Warner, tantos!), seus chefes eram pessoas que amavam o cinema, ainda que produtores ansiosos pelos lucros, pois se o filme é uma arte, como costumava dizer o historiador George Sadoul, o cinema é uma indústria (ou seria o contrário?)

O cinema entrou numa grande crise. Para se ter uma idéia, na década de 60, por exemplo, para se fazer a seleção dos dez melhores do ano era uma dificuldade para escolher os filmes, pois se tinha em torno de vinte, trinta para escolher. Atualmente ocorre exatamente o contrário: para se selecionar dez, encontra-se quatro, cinco, que realmente são merecedores. E, muitas vezes, se preenche a lista com filmes bons, mas não obras exponenciais. Mas também há algumas décadas, tinham-se cineastas de verdade fazendo filmes. Basta o exemplo da Itália: monstros sagrados, gênios irrefutáveis como Federico Fellini, Luchino Visconti, Michelangelo Antonioni, Píer Paolo Pasolini, Vittorio De Sica, Valério Zurlini, entre outros. Quase todos mortos, algum que reste já se aposentou. Inexistem substituídos.

Gustavo Dahl conta, no programa Tarja Preta, de Selton Mello, que, em 1960, quando chegou a Roma para estudar cinema no Centro Sperimentale di Cinematografia, estavam em cartaz simultaneamente A aventura (L'avventura), de Antonioni, A doce vida (La dolce vitta), de Fellini, e Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli), de Luchino Visconti, três marcos da história do cinema, obras de referência para o estudo da arte do filme. Atualmente, o que se pode ver em cartaz senão filmes descartáveis, que serão esquecidos com grande velocidade? No mundo contemporâneo, a velocidade das coisas é impressionante. Lançado um filme hoje, mês seguinte já saiu de cartaz, ninguém fala mais dele. Não acontecia isso em época pretérita. Um filme ficava na mente de seus admiradores por anos e anos. Durante toda a infância desse comentarista E o vento levou sempre foi uma referência, uma presença, ainda que somente viesse a contempla-lo aos 17, quando relançado em cópia 70mm no saudoso Tupy.

O cinema se encontra em profunda decadência. Claro, existem ainda bons cineastas e bons filmes, mas não se tem mais a qualidade que se tinha e não se pode cobrir o sol com a peneira. Para a nova geração, há uma impressão de que o cinema continua o mesmo. Mas não é verdade. A própria recepção do espetáculo cinematográfico mudou, é completamente diferente, e está hoje centrada num consumismo desenfreando, associando ver um filme ao consumo de guloseimas, pipocas, etc. Não existe mais a contemplação desinteressada, e o filme visto é um complemento, não o que se busca primeiro, pois o ‘ir ao cinema’ é uma das fases do processo de ‘shoppear’ (passear no shopping center). Vai-se ao cinema, hoje, como se vai a um shopping, como se olha uma vitrine, como se come um big mac. O que está a se ver na tela é algo sem importância que deve apenas impulsionar a descontração e distrair, sem, contudo, dar nenhuma emoção estética, ou qualquer contribuição ao engrandecimento do homem. O humanismo, por exemplo, parece que sumiu e atualmente um ensaio como Cinema: Um instrumento do humanismo, do grande Walter da Silveira, parece algo, infelizmente, anacrônico, de tempos idos, quando o cinema era, realmente, um instrumento do humanismo e tinha singular status político.

O imaginário do homem do século passado, o XX, foi povoado pelas imagens em movimento, pelas imagens cinematográficas. Estudar o comportamento humano na sociedade dessa época exige que se estude seus filmes, pois são reflexos da sua personalidade. Se, antigamente, o cinema era apenas um divertissement, impossível de ser levado a sério por pessoas ditas cultas, atualmente o que se vê é o estudo do cinema incluso nos currículos das universidades de todo o mundo, pois para se estudar o homem é necessário também estudar o cinema que ele produziu.

A magia, no entanto, das imagens em movimento foi se perdendo por causa da ‘vulgarização’ da própria imagem, que, antes restrita à sala escura de uma casa de espetáculos, hoje está ao alcance de qualquer um graças ao progresso tecnológico. O homem que nasce nos dias de hoje nasce vendo imagens: o DVD, a internet, etc. Reina, portanto, absoluto, o império do audiovisual, mas a magia da imagem foi se deixando acabar com a sua proliferação e conseqüente ‘presentificação’ na vida moderna.