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20 agosto 2013

Intriga Internacional


Filme-síntese de Alfred Hitchcock, obra-prima (se é possível que um autor tenha mais de uma), “Intriga internacional” (“North by Northwest”), lançado nos Estados Unidos em 17 de julho de 1959, acaba de completar, semana passada, 54 anos de existência.

Realizado entre “Um corpo que cai” (“Vertigo”, 1958) e “Psicose” (“Psycho”, 1960), “North by Northwest” é, a rigor, a narrativa de uma iniciação onde o herói é uma criatura de ficção - Roger Thornhill/Cary Grant - que se revolta contra um destino imposto pelas circunstâncias e luta contra uma encenação que lhe é determinada e da qual procura escapar.

Desde a abertura dos créditos, com as linhas que se cruzam, para a emergência de edifícios, um magnífico e inovador projeto de Saul Bass, com a partitura dissonante de Bernard Herrmann, a "mise-en-scène" se insinua, a abastecer o espectador com um trato raro das possibilidades expressivas da arte do filme.

Fonte de inspiração para a maioria dos "thrillers" dos anos 60 (inclusive os primeiros filmes de James Bond, o agente secreto 007, que, segundo François Truffaut, não existiriam sem o advento de “North by Northwest”), “Intriga internacional” é uma obra de gênio e sintetiza toda a primeira fase americana de Hitchcock, assim como “Os 39 degraus” (“The thirty-nine steps”,1935) pode ser visto como uma súmula de seus primeiros filmes ingleses.

Roger Thornhil é um americano típico de meia-idade que faz parte da maioria que caracteriza a sociedade de consumo estadunidense. Na opinião de Noel Simsolo, exegeta da obra hitchcockiana com tese de doutorado na Sorbonne sobre o autor, Roger não é totalmente adulto, desenvolveu-se por preguiça, não tem uma personalidade marcante, não tem alma. As forças dos espiões e, indiretamente, da polícia, fazem com que se transforme em um outro: Kaplan, bode expiatório, criação fictícia das forças do serviço secreto. Por causa dessa identificação, como observa Simsolo, Thornhill terá o seu calvário, o que o levará à união com Eve - a possibilidade de uma vida real para ele.

Na primeira parte do filme, Thornill é vítima dos outros e encontra Eve/Eva Marie Saint, agente duplo, mas não consegue perceber a realidade na qual se encontra envolvido. “Intriga internacional” é brilhante como idéia e como execução, porque puro cinema, pura "mise-en-scène" e, como narrativa de um itinerário, de um percurso, é, também, uma luta contra a encenação à qual o personagem é forçado a combatê-la. Hitchcock, com seu gênio, com a sua astúcia, com a sua inteligência, não estaria a fazer, neste filme admirável, uma reflexão sobre o próprio espetáculo cinematográfico?

A partir do meio, Roger abandona o combate impossível contra a representação (caça e a morte em questão) para se refugiar junto à polícia e aceita uma encenação tendente a salvá-lo e a fazer com que mereça Eve. No último terço do filme,  Roger, ainda segundo Simsolo, recusa as consequências da representação que aceitou, e segue seu impulso, age sozinho e merece não apenas viver como ganhar Eve.

(A minha admiração por “Intriga Internacional” é enorme. O impacto inicial se deu quando o vi pela primeira vez nos anos 60, algum tempo depois de seu lançamento. A partir daí, anos sem o ver, com o filme apenas na memória, quando, em 1977, houve o seu relançamento em cópia nova. A constatação de sua grandeza não apenas se ratificou como aumentou muito, porque já um pouco mais afinado com a expressão cinematográfica. O tempo passou. Nos anos 80, “North by Northwest” é lançado em VHS, mas antes o tinha revisto em cópia espúria dublada na televisão. O seu lançamento em DVD restituiu a sua majestade. Comprei-o imediatamente e sempre o revejo. Pelo menos três vezes por ano. É quase uma terapia.)

“Intriga internacional” assombra o cinéfilo, e é uma lição fecunda de cinema, de "mise-en-scène". Atestado do que disseram Claude Chabrol e Erich Rohmer no livro que escreveram sobre o mestre, “Le cinema selon Hitchcock” (que nunca saiu em tradução no Brasil): "Em Hitchcock, o conteúdo é a forma". Hitchcock, porém, se, atualmente, pode ser considerado uma unanimidade da crítica especializada, nas décadas de 40 e 50, no entanto, não era visto como um autor, mas como um habilidoso mestre do suspense. Foi preciso esperar a sua consagração pela revista francesa Cahiers du Cinema, que lhe descobriu as potencialidades expressivas como um dos maiores autores do cinema de todos os tempos. Por todo o respeito que tenho, por exemplo, em relação ao ensaísta baiano Walter da Silveira, em seu livro - uma belíssima reflexão sobre a arte cinematográfica, “Fronteiras do cinema”, não soube, porém, no ensaio “As vertigens de Alfred Hitchcock”, compreender a sua importância e a sua essência.

Mas como escreveu Truufaut: “Porque domina os elementos de um filme e impõe idéias pessoais em todas as etapas da direção, Alfred Hitchcock possui de fato um estilo, e todos reconhecerão que é um dos três ou quatro diretores em atividade que conseguimos identificar só de assistir a poucos minutos de qualquer filme seu.”

O mestre, ao perceber que o vilão não poderia estar concentrado somente na figura de James Mason, um ator de “finesse” insuperável, decidiu reparti-lo em três. Assim, há uma trindade na personificação da vilania: o próprio Mason (Vandamme), Martin Landau (Leonard) e um outro com cara sempre zangada e com um físico de origem germânica. No DVD que se encontra disponível, o roteirista genial Ernest Lehman comenta o filme cena por cena.

Mas, e a pedir a ajuda da exegese de Noel Simsolo (que está no livro “Alfred Hitchcock”, de Noel Simsolo, editado da Distribuidora Record na coleção “Grandes Cineastas”, tradução de Wilson Cunha do original publicado em Paris, 1969, pela Seghers), que se veja aqui a beleza dos significados que podem ser extraídos desta obra-prima: “O tema do filme, meditação sobre a vertigem de criar e amar uma obra de arte, explode no início da segunda parte, quando Thornill dialoga com o chefe dos espiões (James Mason). Conversa sobre o papel do objeto de arte ou sobre as possibilidades da alma. Diálogo em que aceitamos Eve como uma obra de arte, meio de transição entre o sonho e a realidade, entre o corpo e o espírito, entre a passividade e o movimento, entre as trevas e a luz, a ignorância e o conhecimento. No fim do filme, o plano de um trem entrando em um túnel marca a posse sexual de Eve por Thornill e a posse da vida e do filme por esta personagem de ficção. “North by Northwest, portanto, é o negativo de “Vertigo”.

Duas seqüências, pelo menos, são antológicas: a do teco-teco que persegue, em amplo espaço aberto, num campo de trigo, Roger Thornill, e a da fuga do casal pelos Montes Rushmore. Nesta última, há notória influência de Eisenstein, principalmente no que se refere à disposição, dentro do plano, dos volumes e da arte de significar pelo espaço cinematográfico. Hitchcock disse certa vez em uma entrevista a “Le Monde” logo após o lançamento de “North by Nortwest” em Paris: “Faço o máximo para ligar o “décor” à ação. Em “North by Nortwest”, situei a perseguição nos Montes Rushmore onde estão esculpidos os rostos dos presidentes dos Estados Unidos. Parece-me interessante mostrar a silhueta e a figura dos atores tão pequenos contra os grandes narizes e orelhas dos presidentes. Eu gostaria de ter filmado todas as cenas lá, mas não me permitiram. Pensei mesmo em fazer com que Cary Grant entrasse pelas narinas de Abraham Lincoln, mas é claro que isto era impossível.”


E mais: “Minha lógica é uma lógica de mórmon. Vocês conhecem os mórmons? Quando as crianças fazem uma pergunta difícil, eles respondem: “Vá brincar, menino”. Existe algo de mais importante do que a lógica, é a imaginação. Se pensamos primeiramente na lógica, não podemos imaginar mais nada. Frequentemente, trabalhando com meu roteirista, eu lhe dou uma idéia: “Mas isto é possível!”. A idéia é boa, apesar de ela ir contra a lógica. A lógica deve ser jogada pela janela.”

18 agosto 2013

Inácio, o vendedor de ilusões

            Obrigado, Modesto
Por Carlos Modesto

Quando o cinema, como casa de projeção, possuía o encantamento de atrair para os seus salões a diversidade de público, nasceu entre este, um tipo exclusivo do verdadeiro cinéfilo de carteirinha, denominado devorador de filmes, ou seja, aquele amante dos celuloides, maratonista, frequentador assíduo dos vários cinemas dos bairros e do centro da cidade.

A criança e adolescente desse pretérito, atualmente na terceira idade, passando pelo crepúsculo da vida, enquadrado no perfil acima, há de recordar rapidamente da personalidade humana, ora tributada e participante ativo da história dos cinemas de Salvador.

Os cinemas pululavam em cada canto urbano, e para ser completo o local tinha por obrigação de existir nele, pelo menos uma casa exibidora de filmes. Nossa cidade, embora fosse uma capital, sua característica era provinciana. A vida era bela, os bondes deslizavam sobre seus trilhos de aço, distribuídos através de suas linhas traçadamente delineadas. O technicolor das raças, ainda era bem visível na população. O chapéu de Panamá, o brim Diagonal de cor branca vestia do mais seleto cavalheiro ao mais simples operário. A famosa Rua Chile, a mais chic da cidade, com suas lojas inesquecíveis, era o recanto dos milionários e da classe média. Todos se conheciam, não existia a violência nem drogas, e nessa vivência democrática, os tipos populares complementavam a alegria de viver da população baiana. E entre esses últimos bradava em alto e bom som o nome de Cuíca de Santo Amaro, através dos seus folhetins de cordel.

Nesse espaço multicor, não poderia jamais esquecer a amizade de um homem, semeador das minhas imensas alegrias, durante o verdejante tempo da minha adolescência: o velho e inesquecível Inácio. Ele foi um dos últimos tipos populares da nossa antiga urbe. Na juventude foi sorveteiro de cantimplora (recipiente ainda utilizado para resfriamento e até hoje visto nas calçadas da subida da Ladeira de São Bento, no inicio da Avenida Sete de Setembro), onde em frente aos colégios principais dos diversos bairros vendia o seu sorvete. No curso da profissão abarcada, foi contaminado pelo bacilo da tuberculose, obrigando-o a deixá-la. Após a cura da enfermidade, procurou outros meios de sobrevivência, através de trabalhos diversos, como entregador de panfletos das propagandas dos filmes, em porta em porta das residências e bilheteiro de casa de projeção. E, finalmente, vendedor de fitas de cinema.

Inácio era um conhecedor de cinema, havia frequentado suas sessões na fase silenciosa, recordando os velhos filmes de sucessos e seriados desse período, familiarizando-se com os nomes dos astros e estrelas famosos. Na separação dos fotogramas para o seu comércio, distribuía com certos critérios, e, sabia escolher os mais valiosos para oferecer aos mais exigentes cinéfilos, buscadores de close-ups de artistas famosos e de seus filmes marcantes, para completarem suas coleções.

Quando conheci o Inácio, o mesmo já passava dos cinquenta anos de idade. Ele era descendente afro e fazia ponto nas portas dos salões cinematográficos mais frequentados. Um dia era no saudoso “Jandaia”, no dia seguinte, partia para o “Aliança” ou “Pax”, situados na Baixa dos Sapateiros. E, assim, na sua maratona, corria pelas principais casas exibidoras, vendendo o seu produto sedutor, os inesquecíveis pequeninos fotogramas de 35 milímetros, embutidos em caixas de fósforo e, também, binóculos de madeira, adaptados com uma lente de óculos e num corte retangular na parte frontal, proporcional ao tamanho da fita, sendo a mesma presa por dois suportes para segurá-la. Olhando através do orifício se via uma imagem ampliada do quadro em questão. Essa peça artesanal era projetada e manufaturada pelas suas próprias mãos. A meninada, além de gostar das histórias em quadrinhos, o procurava no intuito de comprar as caixinhas com fotogramas de cenas dos diversos filmes da época. O Inácio conseguia esses pedaços ou rolos de películas, através dos refugos de trechos danificados das distribuidoras, ou com operadores de cinema, conhecidos.

Assim conheci esse espécime humano, educado, bondoso, e fazia de tudo para alegrar a criançada amante da arte cinematográfica. Tornei-me seu assíduo comprador e amigo, onde no fim da sua vida quando ele vivia no Asilo D. Pedro II, fiz-lhe uma justa homenagem com um simples documentário sobre ele, denominado, INÁCIO, O ÚLTIMO VENDEDOR DE ILUSÕES.   

Levava-me ele aos possuidores de projetores de cinema caseiro, resolutos em vendê-los, e entre esses, alguns eu consegui negociar através do seu intermédio, sem nenhuma remuneração da sua parte como comissão.

Para os mais interessados em adquirir sua mercadoria, nos dias de semana, ele podia ser encontrado sentado num banco da Farmácia Duarte (se não me falha a memória), instalada na Baixa dos Sapateiros, em frente à Rua 28 de Setembro, e colada à Praça dos Veteranos, acompanhado de um usado saco de cimento, com os acessórios de venda dentro. Quando não se achava ali, estava ele em seu outro ponto, ao lado do Relógio de São Pedro.

No final da década de 1950, parti para viver na cidade do Rio de Janeiro, e nas vezes quando ia assistir a um filme, lembrava-me sempre dele.  Retornando em 1963, procurei vê-lo, no entanto, não o encontrei. Seguindo informações sobre seu paradeiro através de diversos amigos, fui achá-lo no albergue acima citado, passando a visitá-lo periodicamente. Antes de morrer deixou-me como herança, sua caixa metálica com um binóculo de madeira, algumas caixas de fósforo composta de fotografias de celuloide, que guardo com carinho até hoje.

Muitos foram essas crianças e adolescentes que se tornaram adultos e famosos nas diversas profissões a artes, adquirentes em potencial desses pequenos “Box” de fósforo, cheias com pedaços de fitas cinematográficas, cujo prazer de possuí-las era de uma emoção indescritível, e, só será entendido, no interior, daqueles que um dia conheceram essa alma sincera. Mas morreu só, esquecido, no asilo que o amparou em seus últimos momentos de vida, mas o verdadeiro cinéfilo daquela era dourada guardará para sempre em seu coração, a imagem de INÁCIO, o vendedor de ilusões.

P. S. – Esta pequena crônica é dedicada ao meu amigo André Setaro, feita na manhã de domingo, 16-08-2013, em Salvador, Bahia. 



Um Barlan ninguém esquece

Carlos Modesto, fotógrafo, cineasta, homem de mil instrumentos, nostálgico de boa cepa de um tempo cinematográfico que o vento já levou, enviou-me o texto abaixo. Resolvi publicá-lo aqui em meu blog.

Por Carlos Modesto
Fui convidado pelo meu amigo Roque Araújo, para ver a sua exposição de equipamento fotográfico/cinematográfico, realizada no DIMAS, no prédio da Biblioteca dos Barris. Ao passear pelos diversos aparelhos ali colocados, minha visão de repente aproximou-se de uma rudimentar peça de projeção, cujos olhos imediatamente encheram-se de lágrimas e me fez recordar imediatamente do meu tempo de criança, no início da década de 1950, do século passado, quando o cinema possuía ainda uma tamanha força de encantar, onde a civilização de então entrava num salão umbroso, sentava em frente de uma tela prateada vendo as imagens fluir, e, assim, durante o tempo de duas ou mais horas esquecia seus dramas e suas dores. O cinema era a catarse das multidões. 

A criança, que entrava pela primeira vez numa casa exibidora de filmes, ficava perdidamente apaixonada pelo ritual de uma projeção cinematográfica. A cabine do operador da projeção mexia com seus sentidos, principalmente, quando tinha a possibilidade de entrar em alguma e presenciar o manuseio de como o mesmo colocava o filme no projetor. E, o que mais intrigava o menino (por não possuir ainda certo conhecimento de física), era o de ver a imagem invertida no aparelho e a mesma ser mostrada com perfeição na tela.

O cinema produzia na criança um efeito de sedução sem precedentes, levando-a sonhar acordado com os filmes de ação e seus mocinhos de “faz de conta” dos seriados, Tarzan e faroeste.

Sendo assim, apareceu naquele pretérito um projetor simples e caseiro denominado “Barlam”. Na verdade, o protótipo era um brinquedo de plástico duro (baquelite) de uma ou duas cores, possuindo uma manivela que arrastava o filme e se a memória não me engana feito de papel encerado tipo o amanteigado onde se desenhavam as figuras.

Foi então um Barlan que meu pai deu-me de presente no dia do meu aniversário de oito anos de idade. Morava na cidade de Estância/SE.  Quando o pacote chegou as minhas mãos e foi aberto, vi aquela peça encantadora, à alegria foi tão intensa a ponto de querer abraçar o meu querido pai como agradecimento, mas como era bastante tímido, ficou apenas na intenção.

A emoção sentida ao possuir aquele simplório brinquedo só pode ser entendida por àqueles que da mesma forma tiveram um exemplar de qualquer espécie de projetor e que de fato tinham amor pelo cinema.

Os filmes acompanhantes na compra do referido aparelho eram três e se o adquirente quisesse outros, era obrigado a recorrer a capital do Estado, ou mandar buscar pelo correio em São Paulo e Rio de Janeiro. Recordo-me de Branca de Neve e os Sete Anões entre os primeiros conseguidos. Devido à dificuldade encontrada em achar outros títulos, recorri então ao estratagema de cortar as figuras das revistas em quadrinhos coloridas e assim adaptar como se fossem filmes.

Naturalmente, existiam modelos mais avançados de projetores nas bitolas “8” e “16” milímetros, movimentados a manivela e a motor, mas eram bem mais caros. E só os filhos de pais ricos podiam tê-los. O meu pai se encaixava como de situação plausível de me comprar um desses exemplares, porém fiquei de certa forma muito satisfeito com o meu Barlan, principalmente pela analogia que fiz entre este e os anteriores projetores artesanais feitos pelas minhas próprias mãos, com caixas de sapatos, lâmpadas transparentes cheias de água que servia como lente e uma lanterna que iluminava os fotogramas para a projeção.

Com a continuidade da vida fui conseguindo diversos tipos de aparelhos nas diversas bitolas, mas nenhum deles me proporcionou tantas alegrias quanto o meu querido Barlan.