Seguidores

30 dezembro 2012

Os melhores filmes de 2012


Publicado originariamente no Terra Magazine há duas semanas, republico aqui, neste ocaso do velho 2012, os melhores filmes que vi neste ano. Perdi alguns importantes, como parece ser o caso de Drive, do dinamarquês Nicolas Winding Refn, bastante apreciado pela crítica e que, apresentado em Cannes, foi aplaudido de pé. Não deixei esperar que o ano se findasse para a publicação de meus melhores (como deveria ser feito). E a pressa é sempre inimiga da perfeição. O aguardado Holly Motors, que, tudo indicava, parecia filme da relação tradicional dos melhores, deu-me impaciência e aporrinhação. Talvez seja a idade. Feliz 2013 para todos. Se há possibilidade disso.

1.) FAUSTO (Faust), de Aleksandr Sokurov, com Johannes Seiler (Fausto), Anton Adasinsky, entre outros. Discípulo de Andrey Tarkovsky, Sokurov, realizador notável pela maneira na qual se utiliza da linguagem cinematográfica (A arca russa é um exemplo de experimentalismo radical com o plano-sequência), encerra a sua tetralogia dos homens políticos numa reflexão sobre a ânsia humana da conquista do poder. A essência do mito de Fausto (tão bem exposta por Murnau numa obra-prima do expressionismo alemão ainda no tempo do mudo) encontra aqui a sua postura contemporânea. É o melhor filme de 2012.

2.) A SEPARAÇÃO (Jodaeiye Nader az Simin), de Asghar Farhadi, com Leila Hatami, Peyman Moadi, Sarina Farhadi. Depois do boom e certo esgotamento do neorrealismo iraniano dos sapatinhos perdidos, um filme adulto, denso, com uma visão ácida e crítica da sociedade iraniana. Um homem, após se divorciar, vê-se obrigado a contratar jovem para cuidar do pai que sofre de Alzheimer, mas ela se encontra grávida, trabalhando sem o consentimento do marido. A realidade pulsante de uma sociedade presa a grilhões da intolerância. Urso de Ouro no Festival de Berlim.

3.) MISTÉRIOS DE LISBOA, de Raoul Ruiz., com Adriana Luz, Ricardo Pereira, outros. Realizador barroco e com acentos surreais, dono de uma filmografia de 117 filmes, este filme surpreendente, ainda que seus 275 minutos de projeção (4 horas e 15 minutos), não perde o seu encanto no decorrer do tempo. Uma viagem em torno da Portugal de Camilo Castelo Branco a partir de uma condessa obcecada pelo ciúme e sedenta por vingança, um próspero homem de negócios com passado de pirata sanguinário, um padre que de aristocrata e libertino se converte em justiceiro, e um garoto órfão em colégio interno. Filme que se coloca à parte na mediocridade atual do cinema contemporâneo e um dos mais belos do ano que ora se finda.

4.) ESSENTIAL KILLING – MATAR PARA VIVER (Essential KillING), de Jerzy Skolimowsky, com Vincent Gallo, Emmanuelle Seigner. Thrillerangustiante e político, quase sem diálogos, realizado pelo talento incomum de Skolimowsky (O ato finalO Uivo...), obra de impacto pela condução da narrativa, pelo seu aspecto minimalista e pelo extraordinário uso das cores. Capturado pelo exército norte-americano no Afeganistão, um homem é enviado para um centro de detenção secreto situado  na Europa de Leste. Como um animal em fuga, perdido naquela paisagem branca e gélida, ele tem apenas uma opção de sobrevivência: obedecer aos seus instintos mais básicos.

5.) COSMÓPOLIS (Cosmopolis), de David Cronenberg, com Robert Pattinson, Kevin Durand, Sarah Gadon, Juliette Binoche, Mathieu Amalric, Paul Giamatti´. Nos insólitos filmes desse canadense inventivo e inconformista, geralmente há a questão dos limites humanos na sua ambiciosa intervenção científica para uma mutação dos homens e das coisas. (Gêmeos – Mórbida semelhançamosca etc). Aqui, um dia na vida de um milionário especulador numa Nova York assolada pelo capitalismo cada vez mais selvagem. Estranho, perturbador, outro Cronenberg sempre bem-vindo.

6.) HABEMUS PAPAM (idem), de Nanni Moretti, com Michel Piccoli, Nanni Moretti, Jerzy Stuhr, Franco Graziosi. Um conclave no Vaticano para escolher um novo Papa não chega a um  consenso e decide por um desconhecido cardeal, que, não se achando preparado para a alta função, tem ataque de pânico e foge pelas ruas de Roma. O cinema italiano, que já foi, décadas atrás, um dos melhores do mundo, na sua decadência atual colhe poucos frutos, a exemplo desse filme de Nanni Moretti (que também trabalha como ator no papel do psiquiatra).  Sátira que oscila entre o trágico e o cômico, com acentos tchechovianos, pode ser considerado um dos melhores do ano.

7.) 007 – OPERAÇÃO SKYFALL (Skyfall), de Sam Mendes, com Daniel Craig, Judi Dench, Javier Bardem. A inclusão deste filme, entre os melhores do ano, é uma homenagem ao cinema-espetáculo tão banido quando a aferição do que é bom cinema se atrela mais à sisudez temática que, muitas vezes, detona uma operação fílmica mais voltada para a aporrinhação do que para o prazer. Dentro dos limites de seu gênero – cinema de gênero, portanto, e não de autor, Skyfall, que comemora os 50 anos do agente secreto criado por Ian Fleming nas telas, é um espetáculo que seduz pelo ritmo e pela repaginação de seus elementos de fábula.

8.) A MÚSICA SEGUNDO TOM JOBIM, de Nelson Pereira dos Santos. Exceção se faça a poucos documentários brasileiros (e, entre eles, os de Eduardo Coutinho), o que os caracteriza é o feijão-com-arroz do amontoado de entrevistas articuladas numa estrutura audiovisual gasta e repetitiva. O veterano Pereira dos Santos soube driblar a mesmice num filme feito somente com imagens e música sem a adição de vozes distantes a não ser aquelas que cantam as canções. E a música do maestro Tom Jobim promove a linguagem musical brasileira a um patamar de excelência e exclusividade. Não resta a menor dúvida: Jobim é o melhor compositor brasileiro de todos os tempos e o filme faz uma homenagem à altura de seu gênio.

9.) INTOCÁVEIS (Intouchables), de Olivier Nakache e Eric Toledano, com François Cluzet, Omar Sy. Após acidente de pára-quedas, rico aristocrata contrata jovem recém-saído da prisão para ajudá-lo no infortúnio. Apesar de gênios incompatíveis aparentemente, o passar do tempo determina que eles se compreendam, nascendo, daí, uma grande amizade. Os realizadores demonstram aptidão para a análise de comportamentos e o resultado é, simplesmente, surpreendente, revelando um excelente momento do cinema francês contemporâneo. O filme é pleno de observações interessantes sobre as idiossincrasias do ser humano.

10.) A INVENÇÃO DE HUGO CABRET (Hugo), de Martin Scorsese, com Asa Butterfield (Hugo Cabret), Bem Kingsley (Méliès), Sacha Baron Cohen (Inspetor da estação), Christopher Lee (Monsieur Labisse), Emily Mortimer (Lisette), Jude Law (pai de Hugo), Bem Addis (Salvador Dali),  entre outros. A ação se passa em Paris nos anos 30. Singela homenagem ao gênio de Georges Méliès feita por um ardoroso cinéfilo e cineasta. Méliès é o pai da ficção (Voyage dans la lune…) enquanto os irmãos Lumière do registro sem artifício. Scorsese, em seu primeiro filme em 3D, usa o processo para potencializar os efeitos mágicos dos filmes de Méliès. Magia e encanto. Encanto e magia.

Hors concurs: 
ESSES AMORES (Ces amours-là), de Claude Lelouch, com Audrey Dana, Laurent Couson, Samuel Labarthe. Lançado no ano passado, e, por não tê-lo visto, omitido da relação dos melhores, apenas o vi em 2012 em DVD, mas não poderia deixar de citá-lo aqui nesta relação. Quadragésimo terceiro filme de Lelouch, poeta das imagens e da mise-en-scène, do qual sou admirador inconteste, e que assinala os cinqüenta anos desse realizador na atividade cinematográfica, o filme é um painel sobre os encontros e desencontros de pessoas que abrange um tempo dramático de um século – aliás bem ao gosto do autor (Retratos da vida, Toda uma vida etc). Ces amours là, além do painel histórico, é, sobretudo, um filme sobre o amor e uma homenagem ao cinema e ao próprio realizador. Inspirado, sensível, poético, com partitura do sempre presente Francis Lai e Laurent Couson. A sequência final é um testemunho  de sua grandeza.

P.S: Entre os filmes nacionais, a neo-chanchada deu o tom negativo do cinema brasileiro, com mixórdias como Os penetras, De pernas p'ro ar 2, E aí, comeu?, entre outras, que fazem das antigas chanchadas obras-primas da arte do filme. As neo-chanchadas se utilizam da linguagem televisiva e não há, nelas, nenhum apuro cinematográfico. Destaco dois filmes do cinema nacional como os melhores do ano: O homem que não dormia, do baiano Edgard Navarro, e Febre do rato, de Cláudio Assis.

Clint Eastwood no princípio


Considerando que existem três espécies de realizadores cinematográficos, o autor, o estilista, e o artesão, Clint Eastwood  seria o caso de um artesão que aos poucos foi se moldando como um autor de filmes. E um dos mais expressivos e significativos do cinema contemporâneo. Para se detectar um autor, é necessário que o realizador tenha já alguns filmes, a fim de que, na análise comparativa de suas obras, possa se estabelecer as constantes temáticas e estilísticas. Para que se configure como um autor, o cineasta precisa ter uma visão de mundo e uma visão de cinema, isto é, um universo ficcional próprio e uma maneira peculiar de explicitar o seu repertório temático através das imagens em movimento. Autores marcaram a história da arte do filme e, também, provocaram polêmica, principalmente quando da emergência, na França, via Cahiers du Cinema, da Política dos Autores (Politique des Auteurs). São autores de filmes, para ficar apenas em poucos exemplos, Ingmar Bergman, Fellini, Chaplin, Welles, Hitchcock, entre tantos outros, pois realizadores que possuem, nítidas, constantes temáticas e constantes estilísticas.

Já o estilista não possui universo ficcional próprio, mas tem uma maneira muito sua de articular os elementos da linguagem cinematográfica, um estilo particular, uma marca registrada. Não seria Steven Spielberg, por exemplo, um estilista? Ainda que em sua filmografia possam ser notadas preocupações relativas à necessidade do conforto familiar, do retorno à infância, do imaginário construído em torno dacélula mater, etc. Mas o que tem a ver Parque dos dinossauros com A lista de Schindler? O que tem a ver Os caçadores da arca perdida com Amistad? Não se colocaria Spielberg no panteão dos autores nem dos artesãos. Estes se caracterizam pela ausência de constantes temáticas e pela inexistência de um estilo, de uma marca. Realizadores sem estilo, os artesãos, no entanto, sabem contar uma história, desenvolver uma narrativa em função da fábula e estão confinados à falta de ambição e propósitos outros que não estejam conectados com o desenvolvimento do roteiro. É verdade que um grande autor pode ser de mais valia para a história da arte do filme do que um grande artesão. Mas o fato de o realizador ser um autor não o credencia a ser melhor do que o artesão. Tudo na vida, como no cinema, é relativo. Muitas vezes, melhor um afiado artesão do que um autor chato, pachorrento, pretensioso, do qual o cinema está cheio pelas bordas.

Mas o objeto deste artigo é Clint Eastwood, caso um pouco raro de artesão que, aos poucos, foi se construindo como autor, e autor, diga-se de passagem, do primeiro time. Clint nasceu numa ladeira da cidade de San Francisco em 31 de maio de 1930. Vai fazer, portanto, 81 anos, e ainda em plena forma, ativo, lépido e fagueiro, prestes a iniciar um novo longa metragem. Família pobre, de parcos recursos, a obrigar o menino ao exercício da sobrevivência como entregador de pizzas, faxineiro de armazém, entre outros trabalhos do gênero. Rapaz, perambulava pelas ruas de San Francisco (com suas ladeiras celebrizadas em Bullit, de Peter Yates, ou, mesmo, no delirante Um corpo que cai/Vertigo, do mestre Hitch), a namorar as garotas nos anos dourados dos 50, mas com o pensamento nas telas do cinema. Em 1954, após muito batalhar, consegue participar de um sem número de seriados da Universal, fazendo pontas sem sucesso. Foi preciso esperar uma década para, em 1964, num intervalo do seriado Rawhide receber um convite para trabalhar num filme na Itália. Era Por um punhado de dólares, de Sergio Leone. Com este, participou de mais alguns filmes: Por uns dólares a mais, Três homens em conflito. De volta aos Estados Unidos, teve a sorte de encontrar Don Siegel, cineasta de grande dinamismo, detiming envolvente, que, pode se dizer, ensinou a Clint muitos dos segredos da arte de contar uma história com ritmo, eficiência, economia narrativa. Clint abriu uma produtora, a Malpaso, em 1968, e bancou alguns filmes de Siegel e, enquanto atuava, aprendia, perguntando, olhando, curioso. Perseguidor implacável (Dirty Harry, 1971), de Siegel, pode ser considerado – ao lado de Meu ódio será tua herança/The wild bunch, de Sam Peckinpah, o detonador da violência no cinema contemporâneo. Filme de ação irretocável, que marcou a década de 70, Dirty Harry estabeleceu a figura do policial lacônico interpretado por Clint, Harry Callaghan, que seria continuado em uma série de outros filmes (sem a marca de Siegel, entretanto). O “homem sem nome” dos filmes de Leone encontrara um novo posto na pele de Callaghan. Dirty Harry tem um precursor, que é Meu nome é Coogan (Coogan’s buff, 1968), do mesmo Siegel, com Clint como um policial interiorano que vai a Nova York buscar um criminoso que se evadira. A estruturação psicológica de Coogan é, mutatis mutandis, a mesma de Callaghan.

Ter uma empresa produtora ajudou muito a Clint na sua escalada como diretor. O seu princípio, no entanto, a julgar pelos seus filmes anunciadores da trajetória como cineasta, não oferece sinais do realizador que viria a ser. Em 1971, consegue financiamento para rodar Perversão paixão (Play misty for me), thriller sobre um radialista que se vê perseguido por ouvinte apaixonada, um exercício de suspense sem que se enxergue, nele, nada de extraordinário, mas a rotina comum aos filmes do gênero. Já a segunda tentativa, a de fazer um western fantasmagórico em O estranho sem nome (High plains drifter, 1972), com ele próprio e Verna Bloom, tem um cuidado visual que lembra Leone, e uma dinâmica no estabelecimento da ação que remete a Siegel, além do tema que beira, na tradição do gênero, o sobrenatural. O terceiro empreendimento,Interlúdio de amor (Breezy, 1973), melodrama sobre um homem de meia-idade (William Holden) que se apaixona por jovem (Kay Lenz) faz parecer que Clint, além de híbrido, é prolixo, considerando a salada de gêneros nos filmes dirigidos: um thriller fraquinho, um western com ponta inteligente, e um melodrama com clima seco.

Seria preciso esperar alguns anos para se ver em Clint um cineasta, pois Escalado para morrer (The eiger sanction), ação, cinema em movimento, de 1975, ainda não apresenta nada para surpreender. Josey Wales, o fora-da-lei (The outlaw Josey Wales, 1976), outro western, apesar de passar batido por uma crítica em busca das celebridades já carimbadas, e incapaz, como acontece sempre, salvo as exceções de praxe, de descobrir talentos, é filme interessante e muito acima da média, capaz de fazer ver o nascimento, em The outlaw Josey Wales, de um verdadeiro cineasta (e quem não acreditar pode tirar a dúvida no DVD). Clint trabalha ao lado de sua então esposa Sondra Locke (que depois viria, também, a dirigir, mas filmes insignificantes, à sombra do marido), que também aparece no filme seguinte, Rota suicida (The gauntlet, 1977), thrillerde grande força, que, além de proporcionar excelente entretenimento, dá a seu diretor a oportunidade de conjugar ação e ironia, ironia e ação. Os que se seguem são fitas menores, obrigatórias, porém, na missão da sobrevivência: Bronco Billy (1980), Firefox, a raposa de fogo (Firefox, 1982), Impacto fulminante (Sudden impact, 1983), uma aventura de Callaghan dirigida por ele mesmo, que Clint filma para fazer caixa para um projeto mais ambicioso e com menos possibilidade de ser apoiado por um grande estúdio.

Para os que não enxergaram, e não conseguiram ver, que a semente do Clint cineasta estava em Josey Waley, seu filme de partida foi considerado em outro western, sombrio e magnífico, autoral, O cavaleiro solitário (Pale rider), em 1985. Neste, já se mostra que existe uma narrativa que transcende o mero entrecho fabular, fazendo despontar um pensamento que se faz imagem em movimento. Com o gênero em franca decadência, para não dizer desaparecido, a bilheteria lhe foi madrasta, precisando corrigir as burras de sua produtora com produto para consumo rápido: O destemido senhor de guerra (Heartbreak ridge, 1986).

É a partir de Bird, filme sobre o músico Charlie Parker, em 1988, que surpreende o público do Festival de Cannes, tornando-se, a partir daí, um cineasta a considerar. Quatro anos depois ganharia os principais Oscar com sua releitura do western em Os imperdoáveis (Unforgiven).