Seguidores

03 maio 2008

Hospitais mais matam do que curam

Passei, ano retrasado (novembro e dezembro de 2006), quase dois meses hospítalizado. Tive um cinematográfico enfarte agudo do miocárdio e penei até que fossem implantadas duas majestosas pontes de safena. A bem da verdade, fui muito bem tratado pelos médicos e enfermeiras, ainda que algumas destas, principalmente quando no inferno do centro de tratamento intensivo - as famigeradas UTIs, gostassem de exibir autoridade porque, frustradas, precisam, nestas oportunidades, exercer poder. E nada melhor para o exercício do poder do que em cima de um paciente, de um ser temporariamente inválido. Mas de um modo geral, feita a ressalva, sou muito crítico em relação a médicos, que, na sua grande maioria, tirante as sumidades de praxe, são arrogantes e ignorantes. Lembrei-me deste artigo ao ler a notícia de que a Faculdade de Medicina da UFBa foi considerada uma das piores do Brasil pelo MEC. A bem da verdade, esta faculdade era considerada um centro de excelência há algumas décadas atrás, com sumidades da área como Estácio de Lima, Fernando Carvalho Luz, Fernando São Paulo, entre muitos outros. O que está a acontecer? Estamos rolando ladeira abaixo? O texto que vai abaixo foi tirado da internet e quem o escreveu foi Sérgio Gwercman.
Dr. Vernon Coleman, tem 57 anos, gosta de escrever livros de ficção e já publicou 12 romances. Divide seu tempo entre o interior da Inglaterra e uma cobertura no centro de Paris. Sofre de "cotovelo de tenista" nos dois braços por causa da má postura ao digitar. Diz que os hospitais mais matam do que curam e que é preciso ser muito saudável para sobreviver a um deles.

Por Sérgio Gwercman
Um selo colado na testa advertindo sobre os perigos que podem causar à saúde. Se dependesse do inglês Vernon Coleman, esse seria o uniforme ideal dos médicos. Dono de um diploma em medicina e um doutorado em ciências, Coleman abandonou a carreira após dez anos de trabalho para ganhar a vida escrevendo livros com títulos sugestivos do tipo : "Como Impedir o seu Médico de o Matar" Autor de 95 livros, o inglês é um auto-intitulado defensor dos direitos dos pacientes. Em seus textos, publicados nos principais jornais do Reino Unido, costuma atacar a indústria farmacêutica - para ele, a grande financiadora da decadência - e, principalmente, os médicos que recusam tratamentos que excluam a utilização de remédios e cirurgias. Dono de opiniões polêmicas, Coleman ainda afirma que 90% das doenças poderiam ser curadas sem a ajuda de qualquer droga e que quanto mais a tecnologia se desenvolve, pior fica a qualidade dos diagnósticos.

Como um médico deve se comportar para oferecer o melhor tratamento possível a seu paciente?

Os médicos deveriam ver seus pacientes como membros da família. Infelizmente, isso não acontece. Eles olham os pacientes e pensam o quão rápido podem se livrar deles, ou como fazer mais dinheiro com aquele caso. Prescrevem remédios desnecessários e fazem cirurgias dispensáveis. Ao lado do câncer e dos problemas de coração, os médicos estão entre os três maiores causadores de mortes atualmente. Os pacientes deveriam aprender a ser céticos com essa profissão. E os governos, obrigá-los a usar um selo na testa dizendo "Atenção: este médico pode fazer mal para sua saúde".

Qual a instrução que pacientes recebem sobre os riscos dos tratamentos?

A maior parte das pessoas desconhece a existência de efeitos colaterais. E grande parte dos médicos não conhece os problemas que os remédios podem causar. Desde os anos 70 eu venho defendendo a introdução de um sistema internacional de monitoramento de medicamentos, para que os médicos sejam informados quando seus companheiros de outros países detectarem problemas. Espantosamente, esse sistema não existe. Se você imagina que, quando uma droga é retirada do mercado em um país, outros tomam ações parecidas, está errado. Um remédio que foi proibido nos Estados Unidos e na França demorou mais de cinco anos para sair de circulação no Reino Unido. Somente quando os pacientes souberem do lado ruim dos remédios é que poderão tomar decisões racionais sobre utilizá-los ou não em seus tratamentos.

Você considera que os médicos são bem informados a respeito dos remédios que receitam a seus pacientes?

A maior parte das informações que eles recebem vem da companhia que vende o produto, que obviamente está interessada em promover virtudes e esconder defeitos. Como resultado dessa ignorância, quatro de cada dez pacientes que recebem uma receita sofrem efeitos colaterais sensíveis, severos ou até letais. Creio que uma das principais razões para a epidemia internacional de doenças induzidas por remédios é a ganância das grandes empresas farmacêuticas. Elas fazem fortunas fabricando e vendendo remédios, com margens de lucro que deixam a indústria bélica internacional parecendo caridade de igreja. Acompanhando didaticamente alunos do 6º ano (prestes a entrar na vida profissional) constatei que apenas 5% conhecia a farmacocinética dos produtos que propunham aos pacientes. Entre profissionais experientes não consigo estimar, no entanto suponho ser porcentagem menor, pois a prática usual em vários empregos com períodos extensos e irregulares diminuem a possibilidade de aprender, especialmente bioquímica e farmacologia. Para aumentar este problema, temos alterações periódicas na composição dos produtos comerciais com vistas a aumentarem o preço, por serem considerados medicamentos novos. O que dificulta mais ainda o escasso tempo médico dedicado à atualização.

E o que os pacientes deveriam fazer?

Enfrentar doenças sem tomar remédios?É perfeitamente possível vencer problemas de saúde sem utilizar remédios. Cerca de 90% das doenças melhoram sem tratamento, apenas por meio do processo natural de autocura do corpo. Problemas no coração podem ser tratados (não apenas prevenidos) com uma combinação de dieta, exercícios e controle do estresse. São técnicas que precisam do acompanhamento de um médico. Mas não de remédios.
Receber remédios não é o que os pacientes querem quando vão ao médico?É verdade que muitos pacientes esperam receber medicamentos. Isso acontece porque eles têm falsas idéias sobre a eficiência e a segurança das drogas. É muito mais fácil terminar uma consulta entregando uma receita, mas isso não quer dizer que é a coisa certa a ser feita. Os médicos deveriam educar os pacientes e prescrever medicamentos apenas quando eles são essenciais, úteis e capazes de fazer mais bem do que mal.

Que problemas os remédios causam?

Sonolência, enjôos, dores de cabeça, problemas de pele, indigestão, confusão, alucinações, tremores, desmaios, depressão, chiados no ouvido e disfunções sexuais como frigidez e impotência.
Em um artigo, você cita três greves de médicos (em Israel, em 1973, e na Colômbia e em Los Angeles, em 1976) e diz que elas causaram redução na taxa de mortalidade. Como a ausência de médicos pode diminuir o risco à vida?
Hospitais não são bons lugares para os pacientes. É preciso estar muito saudável para sobreviver a um deles. Se os médicos não matarem o doente com remédios e cirurgias desnecessárias, uma infecção o fará. Sempre que os médicos entram em greve as taxas de mortalidade caem. Isso diz tudo. Aqui no Brasil pudemos constatar o mesmo durante greve prolongada de médicos no Rio de Janeiro


Muitas pessoas optam por terapias alternativas. Esse é um bom caminho?

Em diversas partes do mundo, cada vez mais gente procura práticas alternativas em vez de médicos ortodoxos. De certa maneira, isso quer dizer que a medicina alternativa está se tornando a nova ortodoxia. O problema é que, por causa da recusa das autoridades em cooperar com essas técnicas, muitas vezes é possível trabalhar como terapeuta complementar sem ter o treinamento adequado. Medicina alternativa não é necessariamente melhor ou pior que a medicina ortodoxa. O melhor remédio é aquele que funciona para o paciente.

Em um de seus livros, você afirma que a tecnologia piorou a qualidade dos diagnósticos. A lógica não diz que deveria ter acontecido o contrário?
Testes são freqüentemente incorretos, mas os médicos aprenderam a acreditar nas máquinas. Quando eu era um jovem doutor, na década de 70, os médicos mais velhos apostavam na própria intuição. Conheci alguns que não sabiam nada sobre exames laboratoriais ou aparelhos de raios-X e mesmo assim faziam diagnósticos perfeitos. Hoje, os médicos se baseiam em máquinas e testes sofisticados e cometem muito mais erros que antigamente. Infelizmente tenho constatado mais agravantes neste aspecto de exames:

1- 70% dos resultados de exames onde os pacientes referem que estão normais (ditos pelos médicos que solicitaram) tenho encontrado alterações documentadas no próprio exame (constado nos valores de referência). Isto reflete dupla negligência; do médico que não valorizou a alteração e do paciente que não se dignou a comparar seus resultados com os valores de referência fornecidos.

2- Alguns exames esclarecedores muitas vezes não são solicitados ou valorizados, entre eles cito dois que são pungentes: marcadores tumorais e pesquisa de sangue oculto nas fezes.

3- Realizam exames que já não têm nexo em nosso contexto, como, por exemplo, a mamografia (o ultrassom de mamas é muito mais sensível nos processos iniciais, como tem noticiado fartamente nossa imprensa popular há 3 anos e as publicações técnicas há 7 anos).

4- Solicitam exames caros e arriscados sem indicação clínica adequada (o exemplo aqui é do cateterismo cardíaco - embora eu sempre insista neste assunto, aconteceu com minha família dois acidentes com o contraste durante cateterismo, um por indicação monetária e não clínica e o outro com indicação clínica que resultou em óbito durante o exame)

5- Aonde é importante os exames laboratoriais ao invés de exame físico, a maioria insiste no exame físico. Aqui o exemplo mais pungente é o toque retal para avaliar próstata, pois o ultrassom pode mostrar dezenas de vezes melhor do que a palpação, indicando nodulações (ou outras alterações) internas ou na face anterior onde não é possível palpar. Semelhante perspectiva podemos assumir perante o toque vaginal para avaliar útero e ovários.

6- Solicitam exames complexos e/ou arriscados sem terem realizados os exames mais simples e inócuos previamente. Aqui podemos utilizar o exemplo do ecocardiograma (ultrassom cardíaco) sem Eletrocardiograma ou Rx de tórax prévios. Aqueles que quiserem entender melhor sobre exames, sugiro o link indicado nos meus link favoritos: Guide to Clinical Preventive Services, of Columbia University Medical Center

Você faz ferrenha oposição aos testes médicos realizados com animais em laboratórios. De que outra maneira novas drogas poderiam ser desenvolvidas?

Faz muito mais sentido testar novas drogas em pedaços de tecidos humanos que num rato. Os resultados são mais confiáveis. Mas a indústria não gosta desses testes porque muitos medicamentos potencialmente perigosos para o homem seriam jogados fora e nunca poderiam ser comercializados. Qual o sentido de testar em animais? Existe uma lista de produtos que causam câncer nos bichos, mas são vendidos normalmente para o uso humano. Só as empresas farmacêuticas ganham com um sistema como esse.

O que você faz para cuidar da saúde?

Eu raramente tomo remédios. Para me manter saudável, evito comer carne, não fumo, tento não ficar acima do peso e faço exercícios físicos leves. Para proteger minha pressão, desligo a televisão quando médicos aparecem na tela apresentando uma nova e maravilhosa droga contra depressão, câncer ou artrite que tem cura garantida, é absolutamente segura e não tem efeitos colaterais

01 maio 2008

Entre umas e outras, aquelas



Sou de uma época em que se falava muito em Almiro Fialho, que Jonga lembrou ser o nome verdadeiro daquele que ficou conhecido como Alex Viany. Nunca um ensaísta, como Walter da Silveira ou Paulo Emílio Salles Gomes, mas um grande historiador e pesquisador. Memória prodigiosa, sabia, de cor, algumas filmografias de diretores pouco importantes. Esteve em Salvador algumas vezes, sem contar a sua vinda para fazer Sol sobre a lama. Que me lembre veio para participar das jornadas baianas organizadas por Guido Araújo. Lembro-me dele na de 1973, ainda muito bem disposto, e na de 1981, também muito bem, mas já um pouco neurastênico. Foi a época do lançamento de A noiva da cidade, seu último filme, com Elke Maravilha, no qual quis, com toda a sinceridade, homenagear Humberto Mauro e, para isso, filmou um roteiro deste. O resultado é um desastre colossal, um filme sem ritmo, destituído de timing, pleno de defeitos estruturais. A crítica da época se calou, pois amiga de Viany. Poucos aqueles que tiveram coragem de mostrar que o rei estava nu.

De qualquer mandeira, a contribuição de Alex Viany é muito importante, principalmente para o cinema brasileiro. Sua obra-prima é a Introdução ao cinema brasileiro, editada em 1959 pelo INL (Instituto Nacional do Livro). Teve mais duas edições. Quando o Jornal do Brasil tinha um conselho de críticos, Alex Viany fazia parte dele ao lado de Alberto Shatovsky, Ely Azeredo, José Carlos Avellar, José Wolff, Valério Andrade, Sérgio Augusto, Ronald F. Monteiro, entre outros que posso estar a esquecer. Mas que luxo!! Um jornal ter um conselho de críticos para toda sexta, página inteira, letra miúda, um filme ser analisado por todos os seus integrantes. Era muito interessante quando acontecia as polêmcias. Recordo-me de que quando O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha, foi lançado, Ely Azeredo (poucos os críticos que sabiam escrever tão bem como ele) deu bola preta, enquanto a maioria cinco estrelas, provocando, com isso, um contraste bem forte. Ely disse sobre o filme e a propósito de sua premiação em Cannes (Palma de Ouro de melhor diretor): "Queremos ver a premiação do cinema e não a sua aniquilação" (mais ou menos assim, pois cito de memória). E, para não deixar em dúvida aquele que me lê, gosto muito desse filme de Glauber filmado em Milagres, que agora foi restaurado e está sendo exibido em mostras e festivais em cópias luminosas (seu colorido é fora de série).

O Correio da Manhã, na boa época em que existia uma crítica de cinema no jornalismo impresso (raros aqueles que escrevem bem sobre cinema hoje na imprensa e, entre eles, podendo aqui omitir algum valor, Inácio Araújo, Luiz Carlos Merten) tinha também, no seu Quarto Caderno, uma conselho de críticos. Forçando a memória, Ironildes Rodrigues, Paulo Perdigão, Salvyano Cavalcanti de Paiva, Fernando Ferreira, Carlos Fonseca, Van Jaffa, Antonio Moniz Viana, José Lino Gruenwald, etc. A crítica de cinema, hoje, ativa apenas nos grandes jornais do sul, transferiu-se para os sites do espaço virtual onde se podem ver exegetas da sétima arte (concorde-se ou não com eles) que são sérios e preparados como aqueles que fazem parte das revista Contracampo, Cinética, Moviola, etc.

Quando se escreve sobre Domingos de Oliveira (agora tirou o "de"), nunca há referência a um filme dele feito em 1969, É Simonal!, um documentário sobre o cantor que, na segunda metade da década de 60, virou um fenômeno a ponto de ser capaz de entusiasmar um maracanãzinho inteiro a repetir, com ele, um determinado refrão. Acontece que Wilson Simonal foi acusado, logo na descida dos 70, de ser agente da ditadura. Isto o destruiu. Mas nada tem a ver com o fato de Oliveira ter realizado um documentário sobre ele. Questão de memória? Lembro-me que o filme foi, inclusive, lançado comercialmente.

Revi, no Cult, Julia, de Fred Zinnemann, cuja última visão foi em 1978, portanto há trinta anos. Jane Fonda faz o papel da escritora Lillian Hellman, e Vanessa Redgrave é a personagem título. Hellman era casada com o famoso escritor policial Dashiell Hammett (interpretado por Jason Robards). Quando vi Julia não conhecia ainda Meryl Streep, que trabalha aqui bem jovem no papel de Anne Marie. O filme tem ótimo elenco. Além dos citados, Maximilian Schell (o ator alemão que deu um show em Julgamento em Nuremberg, de Stanley Kramer), Hal Holbrook, Rosemary Murphy (fazendo Dorothy Parker), Cathleen Nesbitt (a vovozinha de Tarde demais para esquecer/An affair to remember, obra-prima de refinamento, atriz bem característica e longeva), entre outros. Zinnemann ficou na história por Matar ou morrer (High noon), mas nunca foi bem visto pela crítica, apesar de seus inegáveis méritos como carpinteiro da narrativa. Julia, por exemplo, é um filme muito bem narrado, muito agradável de se ver, muito bem interpretado. E o que deixa de se ver quando o iluminador é um mestre como Douglas Slocombe e a música de George Delerue? Não creditada a participação de Lambert Wilson, que trabalhou recentemente em Medos privados e lugares públicos (Coeurs), de Alain Resnais. O Cult tem Julia em sua grade mas o está exibindo sem nenhum alarde, em silêncio. A imagem que ilustra este post é uma homenagem a Jane Fonda, atriz que me foi contemporânea e à qual devo boas recordações fílmicas.

30 abril 2008

"Sol sobre a lama", de Palma Netto/Alex Viany

O cinema baiano teve seu Século de Péricles no alvorecer da década de 60, quando aconteceu uma verdadeira efervescência de produções cinematográficas. O ponto de partida, Redenção (1959), de Roberto Pires, o primeiro longa baiano, obra pioneira, e filmada com lente anamórfica (inventada pelo próprio diretor). A partir daí um grupo de produtores liderado por Rex Schindler resolve criar uma infra-estrutura para que pudesse haver uma produção sistemática e continuada. Apareceram A grande feira (1961), Tocaia no asfalto (1062), ambos de Roberto Pires, Barravento (filmado em 1959 e somente montado, por Nelson Pereira dos Santos, em 1962), de Glauber Rocha. Outros produtores, entusiasmados, bancaram O caipora (1963), de Oscar Santana, O grito da terra (1964), de Olney São Paulo. Não se deve esquecer Bahia de Todos os Santos (1960), de Trigueirinho Neto, e alguns filmes curiosos como Aviso aos navegantes, de Aloísio T. de Carvalho, e filmes de diretores estrangeiros que aqui vieram para aproveitar o décor exuberante da paisagem: O santo módico, de Jacques Viot, A montanha dos sete ecos, filmado em Cachoeira por um português. Nelson Pereira dos Santos, que ia filmar Vidas secas, com a chuvarada que desabou em Alagoas, veio para a Bahia e aqui filmou, com atores locais e ele de mocinho, Mandacarú vermelho (vendo recentemente Os cafagestes, quando Valadão espera Bengell na porta do cine Alvorada, no Rio, o cartaz é de Mandacarú vermelho). Há muitos outros filmes.
Sol sobre a lama, o único filme do Ciclo Bahiano de Cinema colorido, em eastmancolor, realizado em 1964, constitui-se numa espécie de resposta de seu produtor, Palma Neto, a A grande feira. Palma, que fora marinheiro em sua mocidade, e conhecia os problemas sindicais, achou que Pires e Schindler não trataram com acerto a problemática do sindicalismo na Feira de Água de Meninos. E, com o dinheiro do próprio bolso, resolveu produzir Sol sobre a lama, que foi, na época do seu lançamento, um grande sucesso de bilheteria. Ao contrário dos dias atuais, quando um filme baiano interessa apenas a um pequeno círculo, a província da Bahia compareceu em peso para ver as vistas de sua cidade, os problemas de seu povo, os artistas locais.
Pretensioso, Palma Netto não achou, na Bahia, um diretor que pensasse à altura de seu projeto (Pires, diretor de A grande feira, estava descartado e, mesmo assim, já tinha ido embora para o Rio, onde filmou Crime do Sacopã, entre outros). Resolveu chamar um cineasta do Rio. Convidou Alex Viany, famoso crítico de cinema que fora correspondente em Hollywood e também era realizador de filmes (Rua sem sol, Agulha no palheiro e, no derradeiro momento de sua vida, no seu crepúsculo, o intragável A noiva da cidade, com Elke Maravilha e roteiro, por incrível que possa parecer, de Humberto Mauro). Homem temperamental, desabusado, desde o início não aceitou com paciência as indicações de Palma Netto, que, como produtor, metia-se muito na direção dele. Conta-se que, uma vez, aborrecido, a tomar umas e outras, deu um ex-abrupto e arrebentou um bar nas cercanias dos sets de filmagem.
Viany estava apaixonado pelos filmes japoneses e quis imprimir às imagens de Sol sobre a lama um estilo nipônico de representação da realidade, com tomadas um pouco demorados, enquadramentos ousados. Pronto o filme, Palma Netto ficou extremamente aborrecido com o resultado e resolveu remontá-lo, desfigurando a concepção dada por Alex Viany. O caso foi parar na Justiça. Acredito que a cópia existente de Sol sobre a lama é a remontada por Palma Netto.
Produzido por João Palma Neto e Álvaro Queiroz Filho, Sol sobre a lama é um filme que merece uma revisão. E se trata de uma obra genuinamente baiana. No elenco, Geraldo D'El Rey (o grande ator da terra que brilharia intensamente como o Manoel vaqueiro de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha), Glauce Rocha, importada por Alex do Rio, Gessy Gesse (que anos depois se casaria com Vinicius De Morais), Dilma Cunha, Antonio Sampaio (que mudou o nome para Pitanga), Carlos Petrovich (o velho Petrô), Roberto Ferreira (o inesquecível Zé Coió), Othon Bastos, Lídio Silva (o beato Sebastião de Deus e o diabo), Milton Gaúcho, Carlos Lima, Garibaldo Matos (o garoto prodígio do cinema baiano que depois se tornaria um carismático juiz de futebol, mas veio a ter ainda jovem morte prematura). Participações especiais de Jurema Penna e Tereza Raquel.
O diretor de fotografia é o aclamado Ruy Santos, que conseguiu uma tonalidade colorida toda especial. A música, de Pixinguinha, mas foi nesta época que Vinicius de Moraes colocou a letra em Lamento. E o roteiro de Miguel Torres e Alex Viany.
Clique na imagem para ver melhor o cartaz.

29 abril 2008

Do eixo da câmera


O eixo da câmera, meu caro Bruno, é uma espécie de regra básica que determina a margem de deslocamentos da câmera no espaço, capaz de preservar a continuidade dos movimentos. Recorro aqui a Arlindo Machado (Eisenstein, a geometria do êxtase, Brasiliense, Encanto Radical) para poder melhor lhe explicar. Segundo ele, "se num determinado plano mostro um trem se deslocando da esquerda para a direita do quadro, todos os demais planos da seqüência devem necessariamente manter esse sentido, inclusive aqueles tomados no interior do veículo. Mas se eu colocar a câmera no lado oposto àquele sob o qual foi feita a tomada anterior, a direção do trem vai aparecer invertida na tela, e isso irá desorientar o espectador viciado na linearidade do cinema dominante. Tal espectador, provavelmente, traduzirá essa inversão para o seu repertório tradicional e pensará que o plano invertido mostra outro trem, que vem na direção contrária ao primeiro. Pois bem: O encouraçado Potemkin, fita na qual Eisenstein radicaliza a sua concepção de montagem, quebra programaticamente o eixo da câmera, gerando uma complexa descontinuidade na evolução do filme."

27 abril 2008

Introdução ao cinema (3)


Domingo é dia de introdução ao cinema, conforme estabelecido quando da sua primeira republicação.
Antes de entrarmos no outro elemento determinante da linguagem cinematográfica, os movimentos de câmera, necessário, para uma melhor compreensão do processo de criação, saber distinguir entre PLANO e TOMADA. Cada filmagem de um plano qualquer é uma tomada. Tem-se uma tomada a partir do momento me que a câmera é acionada até o momento me que ela é desligada - no tradicional corta do diretor. Assim, a tomada é este fragmento de tempo entre o acionamento do registro e o seu término. A tomada pode variar quanto a seu tempo. Já o PLANO se caracteriza pela distância entre a câmera e o objeto filmado. É a unidade básica da obra cinematográfica. Os planos se reúnem em cenas que, por sua vez, se reúnem em seqüências. Assim cenas se constituem de uma série de planos ligados a uma só ação ou situados num mesmo cenário É a forma cinematográfica mais próxima do teatro. Já as seqüências contêm uma série de cenas. Do ponto de vista mais geral, tem-se uma funcionalidade bastante específica de certos planos fundamentais. Cabe ao realizador saber dosa-los com força expressiva, pois é na articulação dos elementos determinantes da linguagem fílmica que se estabelece a artisticidade da obra cinematográfica. Assim, podemos dizer que, no que concerne unicamente aos planos, o geral valoriza a paisagem como espaço físico e sugere uma comunhão psicológica entre os personagens e a natureza. O PLANO MÉDIO inscreve os indivíduos no espaço físico em que vivem e instaura um equilíbrio dramático entre a ação e o cenário. Já o PLANO AMERICANO destaca os personagens em sua proximidade física e a intensidade de sua presença moral. E o CLOSE UP instala a pujança do valor dramático e psicológico determinante. A natureza dos planos é governada pela distância relativa entre o ator e a câmera. assim, quanto maior a distância, maiores parcelas do cenário são mostradas. diminuindo a distância, as formas do ator crescem de tamanho na tela e, neste caso, há a necessidade de uma mudança de posição da câmera tendo me vista a obtenção de planos mais distantes ou mais próximos. Outro método consiste me empregar lentes de distâncias focais diferentes, isto é, as diversas objetivas que fazem parte do equipamento da câmera. Nesse caso, o resultado almejado é conseguido com uma simples troca de objetiva.

Consegue-se a variação do ângulo visual das imagens por meio das sucessivas mudanças de plano. Em geral, a rigor, qualquer mudança de plano corresponde a uma mudança de posição da câmera ou a uma troca de objetiva, obrigando, com isso, a uma interrupção nos trabalhos de filmagem. Ao contrário do que pensa a maioria dos espectadores, o filme é construído a partir de muitos fragmentos e, apesar de dar a impressão de continuidade, tem, no seu processo de criação, uma total descontinuidade. Para cada tomada (take) de alguns minutos e, às vezes, alguns segundos, há, forçosamente, de se interromper as filmagens. Assim, o resultado na tela é uma sucessão de dois planos articulados por uma descontinuidade chamada CORTE. O corte (cut) é o que caracteriza visualmente uma mudança de plano, sendo também a palavra que o diretor usa para interromper a tomada. Não é só pelo corte, no entanto, que se efetua uma mudança de plano. Como a câmera pode executar movimentos, deslocando-se suavemente durante a tomada, ela, a câmera, pode passar sem interrupção de um plano geral a um plano médio e deste ao close, bem como seguir o caminho inverso, aproximando-se ou afastando-se gradualmente da realidade profílmica. Tem-se,então, aqui, uma mudança contínua de planos. O mais simples dos movimentos de câmera é a PANORÂMICA (Pannning), movimento no qual o aparelho, fixado em sua base, gira sobre si mesmo na direção horizontal (nos dois sentidos) ou na direção vertical. A câmera como que olha ao seu redor (panorâmica horizontal) ou à sua frente (panorâmica vertical). Se, por exemplo, um personagem está no alto de uma montanha e divisa a paisagem, a câmera confunde-se com sua vista, executando uma panorâmica horizontal. Se está na base de um edifício, e olha para uma janela elevada, correndo a vista pela altura do prédio, a câmera mostra o que o personagem enxerga por meio de uma panorâmica vertical. A forma mais simples de panorâmica - da direita para a esquerda - ou vice-versa - pode cumprir várias funções qualificantes. Pode, por exemplo, afastar gradualmente a nossa vista de uma cena resolutiva e reconduzi-la a ela, carregada de curiosidade, provavelmente após o seu desfecho.

Em Trágico Amanhecer(Le jour se lève, 1939), de Marcel Carné, na cena de amor entre o protagonista e a mulher dentro da cabana enquanto lá fora chove, mal os dois começam a reclinar-se sobre o leito abraçados, uma panorâmica conduz o espectador, lentamente, para o exterior diante de uma goteira pela qual se escoa um abundante caudal de água de chuva. A imagem, então, dissolve-se, até que, finalmente, reaparece a mesma goteira, desta vez, porém, apenas gotejante. O temporal findou. Uma outra panorâmica reconduz o espectador ao interior, mostrando o par que se prepara, agora, após uma noite de paixão, para abandonar o refúgio. É uma maneira indireta de apresentar as coisas, rica de sugestão, no entanto, e que não deixa de aludir ao destino adverso que paira sobre o acontecimento. Elevando-se sobre os personagens me movimento, a câmera também pode informar ao espectador de algo que o espera mais adiante, colocando-o me posição de vantagem me relação às personagens da trama. É o que acontece em No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford, onde a presença dos índios é revelada ao espectador antes de os ocupantes da diligência dela se aperceberem. A câmera pode, igualmente, ligar fatos pertencentes a diferentes dimensões temporais, prolongando-se numa outra panorâmica que evolui no mesmo sentido mas que se refere a um acontecimento ocorrido no passado e que se liga ao primeiro por meio de uma recordação neutra,, invocada, através de um objeto de dupla referência espaço-temporal. É o procedimento que, em Morangos Silvestres(Smultronstallet, 1958), de Ingmar Bergman, provoca uma constante confusão do presente com o passado sem que a linearidade narrativa e dramática do relato fique comprometida. Ainda temos mais exemplos de panorâmicas e de outros movimentos de câmera - como o travelling. Mas fica para o próximo capítulo.