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02 fevereiro 2012

Walter Pinto Lima: agente cultural


Cineasta, pintor, e, principalmente, agente cultural, José Walter Pinto Lima, mais conhecido como Waltinho, já está a fazer quase meio século de vida cinematográfica na província da Bahia. Conheço-o desde meados dos anos 60, quando participava ativamente de grupos ligados a cinema e era frequentador das sessões do saudoso Clube de Cinema da Bahia. Para ser exato, vim a conhecê-lo quando de um curso de cinema na Escola de Sociologia e Política (fechada logo depois pela ditadura), em 1967, que ficava logo no princípio da Ladeira da Barra. Um curso de um mês, mas que reuniu quase todas as pessoas interessadas pela arte do filme. Yves de Oliveira, sociólogo, diretor da escola, aceitou a sugestão de Carlos Alberto Vaz de Athayde e cedeu uma sala para a realização do curso, que foi ministrado pelo próprio Athayde, Orlando Senna, e Carlos Vasconcelos Domingues. Walter Lima, nesta época, estava envolvido com as filmagens de O carroceiro, de seu amigo Ney Negrão, que se encontrava em processo de pós-produção.

Assistente de direção do consagrado Meteorango Kid, o herói intergalático, de André Luiz Oliveira, no qual também aparece como ator, Walter Lima pautou sua vida no desejo de fazer cinema. E o fez, apesar de todas as dificuldades da expressão cinematográfica numa cidade como Salvador. Foi o primeiro a gravar em VHS um documentário de collage chamado Brasilianas. Seu registro sobre o músico Walter Smetak, O alquimista do som, é hoje um documento sobre o extraordinário instrumentista. Outro filme de Walter, uma ficção meio godardiana, Nós, por exemplo, tem Edgard Navarro como um dos intérpretes. E, recentemente, reconstituiu um longa que estava inacabado há vinte anos: O império do Belo Monte, com acréscimos atuais, mas conservando as tomadas do pretérito, que mudou de nome e foi apresentado como Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão.

O cinema de José Walter Pinto Lima é um cinema com fortes acentos de Glauber Rocha e Pier Paolo Pasolini, como pode ser observado em Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão, obra poemática, cujo ritmo se estabelece mais pela retórica do que pela fabulação. Admirador de Jean-Luc Godard, a influência deste não se faz notar na obra citada, porque uma temática mais chegada aos arroubos glauberianos, que pedia um discurso cinematográfico mais retumbante em sua sintaxe, que acumula materiais de procedências diversas: animação, fotos, narração em off em alguns momentos, declamações poéticas etc.

Mas o que gostaria de ressaltar em José Walter Pinto Lima é seu lado de gestor cultural. Muita gente não sabe (ou finge não saber), mas Waltinho, desaparecido o Clube de Cinema da Bahia sob a regência de Walter da Silveira (que morreu em novembro de 1970), foi quem deu continuidade à sua proposta de difusão do bom cinema através da exibição de filmes no Auditório da Biblioteca Central, que depois, em 1986, viria a se chamar Sala Walter da Silveira.

Iniciadas as exibições no Auditório da Biblioteca Central em 1977, a princípio feitas na bitola de 16mm e apenas uma vez por semana, os primeiros anos foram tímidos em termos de programação, ainda que, no ano seguinte, já se projetasse em 35mm e de quarta a domingo. Foi a partir do advento de Walter Lima como Coordenador da Imagem e do Som (antigo nome para o diretor do atual DIMAS) que houve um impulso considerável. Walter Lima conseguiu ampliar os dias de exibição e trazer para a Bahia mostras de cineastas como Jean-Luc Godard, Luis Buñuel, Robert Bresson, Sergei Eisenstein, entre tantos, e, principalmente, a partir da denominação de Sala Walter da Silveira, esta virou um cinema lançador de filmes raros e expressivos que não interessavam ao mercado exibidor.

Naquela época, anos 80, não havia ainda o DVD nem mesmo o VHS, e a nova geração não conhecia os filmes de um Godard, de um Buñuel, de um Bergman etc. O cinéfilo ficava ao sabor das circunstâncias do mercado exibidor. Conhecia-se mais cinema pela leitura de livros e revistas (falo do cinema mais autoral) do que pela visão dos próprios filmes. Se hoje, por exemplo, é muito fácil se ver qualquer filme (basta baixá-lo da internet em 5 minutos com computador de banda larga com 2MB) ou ir à locadora mais próxima, há vinte anos, perdido o filme no seu lançamento, dificilmente se teria a oportunidade de vê-lo novamente. Quando Walter Lima exibiu, por exemplo, Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, o público lotou completamente o auditório, com gente saindo pelo ladrão.

José Walter Pinto Lima, promotor cultural, realizou um grande trabalho à frente da Coordenação da Imagem e Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Ninguém mais, depois dele, ousou tanto e promoveu tantos eventos. Os concursos de roteiros, outro exemplo, foram iniciados por ele, antes dos editais governamentais do terceiro milênio. A origem do tão festejado Três histórias da Bahia está num concurso de roteiros para a premiação de uma trinca de curtas que depois foram reunidos no longa citado.

E, para não esquecer, Walter Lima conseguiu solucionar um impasse quase intransponível para que a Sala Walter da Silveira pudesse lançar filmes. A burocracia estatal, como se sabe, trabalha na base de empenhos e demora para pagar. E as distribuidoras não aceitavam lançar filmes na sala dos Barris. Walter conseguiu uma reformulação para que fosse aberta uma exceção e da renda da bilheteria pudesse ser retirada a parte que cabia a distribuidora sem a necessidade do pachorrento empenho. A gestão seguinte, porém, desfez a exceção tão necessária, ocasionando a decadência da Sala Walter da Silveira, que não pode mais lançar filmes novos nem velhos de distribuidoras comerciais, contentando-se com filmes de embaixadas e consulados, apesar dos esforços do atual programador Adolfo Gomes, crítico e estudioso do cinema. Sobre a Sala Walter da Silveira e essa questão do empenho, e a tentativa de desburocratixzação de Walter Lima, escreverei um artigo à parte.

E o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, que agora se chama Cine Futuro? É simplesmente o maior festival de cinema da Bahia e um dos eventos mais importantes do Brasil. Quem, senão Walter Lima, conseguiria trazer nomes tão importantes como Costa-Gavras, Miguel Littin, o biógrafo de Truffaut, o redator-chefe do Cahiers du Cinema, entre tantos outros. Na última noite do seminário do ano passado, impressionado fiquei com o depoimento de Bertolucci, que, convidado para o Cine Futuro, não pôde comparecer, mas mandou uma gravação que foi exibida. Ele diz: "Fiquei triste em não poder aceitar o convite de meu velho amigo Walter Lima!" 

Com esta, acho que disse tudo.


P.S: José Walter Pinto Lima foi um dos produtores de Dawson - Ilha 10 (Dawson - Isla 10), do chileno Miguel Littin, uma produção internacional.

01 fevereiro 2012

Tom Jobim sob Tuna Espinheira



O velho Tuna Espinheira foi ver A música segundo Tom Jobim, de seu amigo Nelson Pereira dos Santos (que produziu um de seus filmes curtos) e saiu deslumbrado com a beleza do documentário. Chegando ao seu apartamento, bateu o comentário que vai abaixo e, na afobação, nem parou no bar vizinho de Seu Hermenegildo para tomar a sua cerveja acompanhada de uma rigorosa Seleta. Abro aspas para evitar desconforto textual:

"Nelson Pereira dos Santos, mestre divisor de águas, da história do cinema brasileiro, faz um gol de placa com o filme: A música segundo Tom Jobim. A opção feliz de contar a saga do compositor tão somente pelas suas próprias criações melódicas foi deveras um grande achado. A edição primorosa trás para as retinas (estas costumeiramente cansadas) dos espectadores, a impressão de estar vendo um filme com um único plano sequencia,     (embora com centenas de cortes)

A abertura do filme, nas asas da Panair, em preto e branco, dando uma visão de um Rio antigo, é deslumbrante e, sem gastar saliva, encarna o maestro iluminado na cidade do Rio de Janeiro e vice versa. Se existe o chamado carioca, com seu jeitinho de ser, seu retrato falado coincide com próprio Tom, não se pode separá-lo da Cidade Maravilhosa, assim como não se deve apartar Dorival Caymmi da Bahia.

Mesmo sendo uma mania antiga, esta de contar um filme, não cabe neste caso, é incontável, só vendo, seu enredo é puramente para ver e ouvir. Um impressionante desfile de artistas, ao nível de Ellla Fitzgerald; Frank Sinatra; Sammy Davis Jr; estas e outras e outras feras imortais, em rico material de arquivo de filmes, tocando e cantando as pérolas musicais do bruxo compositor, a quem o Chico Buarque chamou: de “Maestro Soberano”. É um revezamento de cenas antológicas de artistas nacionais e internacionais, um espetáculo de dar água na boca, para uns, e de deixar a alma lavada, para muitos.   

Sem querer comparar, mas me lembrou  O Baile, de Ettore Scolla. Talvez porque é também a música que conduz o enredo. A realização de um filme mudo, mas não silencioso, como estes dois, enfrenta o suspense do caminhar no fio da navalha. Semelhante a um jogo de armar, cada peça no seu cada qual. É tudo ou nada. É coisa é coisa de mestre.
                      
Nelson fica devendo o filme número 2, agora falado. Tem muito pano prá manga neste outro olhar necessário sobre Jobim, muitas histórias, estórias “causos”, depoimentos, coisas do arco da velha. O Diretor já provou ser um ótimo regente de conversações (vide o documentário sobre Sergio Buarque de Holanda), vai tirar de letra.

Mestre  Nelson , na plenitude dos oitenta anos, fez um gol de placa com o filme: A Música Segundo Tom Jobim."  

e-mail: tunaespinheira@terra.com.br

Cliquem na imagem para vê-la maior e mais nítida.

30 janeiro 2012

Homenagem ao grande Chico Anysio

Em homenagem ao grande comediante, compositor, escritor, Chico Anysio, que se encontra em estado grave internado na UTI do Hospital Samaritano do Rio de Janeiro, um momento de sua inesquecível Escolinha do Professor Raimundo (circa 1991, creio), quando a televisão ainda tinha programa de humor de qualidade. No vídeo, como Rolando Lero, o impagável Rodrigo Cardoso, insuperável na sua maneira de criar situações engraçadas (e rindo de si próprio) A importância de Chico Anysio para a televisão brasileira é enorme. O tempo dirá. 

29 janeiro 2012

"A Noite", de Michelangelo Antonioni

Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni em A Noite (La Notte, 1961), de Michelangelo Antonioni
Um dos filmes que me despertaram, no decorrer dos anos 60, para a compreensão do cinema como uma verdadeira expressão da arte, foi, sem dúvida, A Noite (1961), de Michelangelo Antonioni. Visto pela primeira vez no Clube de Cinema da Bahia, La Notte, com o domínio da antinarrativa, promovia o êxtase diante de um cinema que procurava mostrar as difíceis relações entre as criaturas humanas, principalmente no se refere à incomunicabilidade que se manifesta na rotina de um casal. La Notte se constituiu, por assim dizer, numa introdução à cultura superior cinematográfica, formado que era, então, e apenas, pelo cinema de gênero oriundo de Hollywood. A partir de La Notte, vim a conhecer não somente os outros filmes de Antonioni, como as obras dos grandes autores no já citado Clube de Cinema da Bahia (que, neste ano de 2010, cumpre os seus 60 anos de fundação): Resnais, Godard, Truffaut, Kurosawa, Welles, Kenji Mizoguchi, Eisenstein, Fellini, Buñuel, entre tantos. Foi a minha iniciação.
Falar de "A Noite", de Michelangelo Antonioni, é falar de uma obra-prima, de um filme emblemático da história do cinema. Responsável pela sublimação da linguagem no ser fílmico, Antonioni praticou um corte longetudinal na evolução da narrativa cinematográfica, com a desdramatização, ou seja, a recusa do espetáculo, a desteatralização, que pode também ser vista em Roberto Rossellini em seu fundamental Viagem à Itália (Viaggio in Itália, 1953), que, a bem da verdade, precedeu o realizador de La Notte. Segundo Marcel Martin, a partir dos anos 50, assiste-se a um progressivo ultrapassar da linguagem, àquilo que se poderia chamar de rejeição das regras tradicionais - da gramática de ferro - para fazer da narrativa fílmica não mais um meio, um veículo de sentimentos e idéias, mas um fim em si: a própria narrativa tornando-se o objeto primeiro da criação. Assim, ficou mais difícil aplicar aos filmes que se colocaram na vanguarda da pesquisa estilística - como a famosa trilogia de Antonioni constituída de A Aventura/L'Avventura, 1960, A Noite, e O Eclipse/L'eclisse, 1962 - os velhos esquemas da "explicação de textos" habitual, ou seja, a distinção escolástica entre a forma e o conteúdo se tornou impossível e absurda. Antonioni, pode-se dizer, instaurou a estética do filme.
Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni), um escritor de sucesso, encontra-se prisioneiro em um universo fictício, incapaz de escrever algo sério, verdadeiro. Sua mulher, Lídia, (Jeanne Moreau) se sente excluída do mundo do marido. A morte de um amigo de ambos (interpretado pelo diretor alemão Bernhard Wicki) faz ainda mais patente o abismo aberto entre eles. Gherardini, o poderoso industrial, tenta comprar o escritor, apesar de seu elevado nível de vida e o orgulho que sente por seu poderio capitalista. Sua filha Valentina (Mônica Vitti), afogada no vazio de seu próprio ambiente burguês, sente uma urgente necessidade de se libertar. Cada um desses personagens de Michelangelo Antonioni permanece preso num beco sem saída. Está exposta a equação existencial tão ao gosto do cineasta de "A Aventura".
Antonioni, que rodou o filme em Milão, fixou sua atenção sobre os meios industriais e intelectuais da populosa cidade italiana. A mesma Milão que serviu de cenário a outra obra-prima do cinema italiano: Rocco e seus Irmãos(Rocco i suoi Fratelli, 1960), de Luchino Visconti, tragédia exemplar que estabelece a cinematografia italiana como a mais poderosa do momento cinematográfico nos sessenta, agrupando verdadeiros gênios como Antonioni, Visconti, Fellini, entre tantos outros como Valério Zurlini. Assim, a fixação da inação em Milão não é aleatória, mas tem um objetivo e um propósito. Antonioni quando elege a profissão de seus personagens sabe perfeitamente o que está a fazer: "Exijo sobretudo intelectuais, porque são os que têm a consciência mais exata da realidade, além de uma sensibilidade, uma intuição, mais sutil, através da qual posso filtrar a realidade que desejo expressar." A expressão dessa realidade nos seus filmes se faz pelo exterior ou pelo interior.
Antonioni em A Noite aprofunda a linha estabelecida em A Aventura. O esquema dramático maneja uma série de abstrações até então inéditas no cinema de Antonioni. Que, pela primeira vez, reúne Jeanne Moreau e Mônica Vitti, as duas atrizes que melhor souberam expressar as facetas da mulher moderna - a mulher contemporânea dos anos 60, quando a libertação se fazia urgente e o cinema um conduto que muito bem expressava o profundo estado de crise da sociedade burguesa. Um estilo que se caracteriza pelas tomadas longas, estabelecendo, com isso, uma espécie de anti-narrativa cuja exasperação chegou em O Eclipse.
Em A Noite, o industrial Gherardi e sua esposa são realmente figuras da alta burguesia milanesa, assim como em sua maioria os convivas são sócios do Barlassina Golf Club (perto do lago Como), transformado em residência daqueles. Antonioni não incide no jogo duplo em relação a esses atores voluntários. Sua serenidade de artista permite-lhe colocar, ao lado da análise implacável nos diálogos e nos planos, o orgulho do capitalismo que escreve ou roteiriza segmentos da História com personagens verdadeiros, casas verdadeiras, cidades verdadeiras.
Walter da Silveira, ensaísta baiano, após a primeira visão de La Notte, entusiasmado, escreveu um ensaio sobre Antonioni do qual destaco aqui esta parte - que se encontra no livro Fronteiras do Cinema: "Ao contrário do que se tem dito, Antonioni seria, por um paradoxo, o cineasta que mais acredita na sensibilidade e na inteligência do público, dispensando-se de ser evidente para ser claro. E se constrói seu relato fílmico sem excluir o elemento não visual do cinema, dando-lhe a importância de um fator de interpretação ou acentuação da imagem, no final de cada filme transmite-nos uma longa cena silenciosa em que só o gesto define e comunica toda a sua essência vital, ética. Em A Aventura, a mão de Claudia desce, hesita, volta a descer sobre o ombro de Sandro, numa indecisa porém insistente vontade de existência a dois, numa dolorosa porém aguda intuição de que, malgrado todas as demissões, resta ainda ao homem uma tênue possibilidade de libertar-se. Em A Noite, o par cujo casamento já no décimo ano foi tomado pelo tédio, a lassidão conduzindo à incerteza, abraça-se sobre a relva numa cópula de desespero, inseguro da permanência além da madrugada. E em O Eclipse já nem se vêem os recantos em que se encontravam - documentação e também metáfora de uma vida comum abandonada."
A iluminação dessa obra-prima é de um artista: Gianni Di Venanzo.