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03 abril 2014

A ambulância das coisas


ROSEMARY
Basta, para se ter uma ideia do talento de Roman Polanski, a tomada fixa da cabine telefônica em O bebê de Rosemary (Rosemary’s baby, 1968), tomada demorada que concentra no rosto agoniado de Mia Farrow toda a sua carga dramática e emotiva. Rosemary, a personagem da atriz neste filme impressionante, apavorada por descobrir que está sendo envolvida com uma seita diabólica, acaba de fugir do consultório de seu médico especializado em obstetrícia por desconfiar que também faz parte do complô, e refugia-se numa cabine para telefonar para o seu antigo médico. Com a chegada de Rosemary à cabine – após deambular pelas ruas da cidade em impressionante caracterização, grávida e desengonçada, Polanski se aplica num plano fixo de seu rosto para desenvolver todo o clima de angústia e desespero. É de pequenos momentos e de pequenos gestos que se fazem os grandes filmes. Polanski é um realizador que sabe pensar cinematograficamente, que intui o possível impacto que uma determinada seqüência possa ter pelo seu sentido agudo no que se refere à utilização dos elementos determinantes da linguagem cinematográfica. Na tomada em questão, uma lição de cinema, mas, antes de concluí-la, o realizador de Chinatown, faz uma brincadeira com a chegada, frente à cabine, de um corpulento homem que parece o médico, mas que, na verdade, trata-se do produtor William Castle, famoso por seus terroríficos classe B.

VAMPIROS DA NOITE
Por falar em William Castle, lembro de um seu filme, que vi apenas uma vez nos anos 60, Trama diabólica (se não há engano memorialístico, o título original é Homicidal). Visto num poeira da Baixa dos Sapateiros, no Pax, precisamente, o filme, quando pouco antes de atingir o clímax, tem sua narrativa interrompida e apareça, na tela, um relógio com um tic tac macabro. Uma voz em off anuncia que o produtor do filme vai conceder alguns minutos para que os “cardíacos e pessoas nervosas” (sic, ainda que de memória) possam sair da sala de projeção, pois o clímax, chocante segundo as palavras, pode provocar danos naqueles mais sensíveis. O fato foi que, realmente, vi, e me lembro que vi, pessoas saindo da sala. Em seguida (eu não saí), dá-se o desfecho pleno de apelações e planos de detalhes. Castle gostava muito de assustar, chocar pelo estrépito das imagens. O que mais assusta, na minha opinião, no entanto, é o desenrola sutil, a ausência de choques no transcorrer da narrativa, reservados estes para os momentos certos. William Castle, talvez sem o saber, foi um pioneiro no marketing. Não sei quem foi o gênio baiano que inventou, aqui em Salvador, para o lançamento de O vampiro da noite (Horror of Dracula, 1958), de Terence Fisher, com Christoper Lee, em 1960, colocar, nos dois cinemas em que a fita foi apresentada, uma ambulância na porta. Uma tabuleta em cima da bilheteria avisava que “pessoas nervosas e cardíacos” (a implicância com cardíacos, lembro-me bem, verdadeira) não deviam comprar os ingressos para ver o filme, mas, se assim procedessem, e viessem a se sentirem mal, a gerência dispunha de uma ambulância para a sua locomoção à emergência mais próxima.

NUAS, MAS NÃO VIOLENTADAS
O exibidor Francisco Pithon, que reinou no circuito soteropolitano nas décadas de 60 e 70, gostava de promover alguns filmes que lançava com certo estardalhaço e originalidade. Quando, em meados dos anos 60, foi lançado no Guarany Sodoma e Gomorra, de (sim, é verdade) Robert Aldrich, com Stewart Granger e Rossana Podestá, Pithon contratou duas belas mulheres que se vestiram com a indumentária idêntica à usada pelos personagens femininas de Sodoma e Gomorra, postando-as, num pequeno pódio, ao lado, cada uma, das duas bilheterias. O público pensou que fossem figurantes do próprio filme, que ficou, assim, muito badalado. Aldrich, diretor americano renovador na década de 50 (A morte num beijo) e desmistificador (da guerra em Morte sem glória/Attack), e do índio (Apache) realizou Sodoma e Gomorra como encomenda. Vi apenas no lançamento há, portanto, mais de quarenta anos. Recordo-me mais da promoão das moças seminuas e belas na porta do Guarany do que do filme (parece que, no fim, Granger, embora aconselhado a não olhar para trás, após o dilúvio das cidades, teimoso como uma mula, não obedece o conselho e vira pedra). Rossana Podestá era uma atriz italiana muito bonita (fez Helena de Troia com Robert Wise), e esteve aqui, na Bahia, para o lançamento de Os sete homens de ouro, acompanhada do marido Marco Viccario, que era também o diretor do filme. Nesta ocasião, e quem sabe o caso é o jornalista José Augusto Berbert de Castro, protagonista da história. Hospedados no Grande Hotel da Barra, no praia do Porto (que foi considerada por jornalista inglês uma das mais belas praias do mundo), Podestá, seu marido, filhos, receberam a imprensa – nesta época, ainda que atento ao cinema e às suas coisas, não militava no jornalismo e lia apenas as críticas e comentários, adolescente que era. Bebert escrevia uma coluna sobre cinema no jornal A Tarde e se formou em medicina, apesar de nunca a ter exercido. A família de artista passou o dia inteiro no Porto e, de noite, um dos filhos, um garoto, teve brutal insolação. Viccario e Podestá, desolados e aflitos, lembraram que um jornalista, Bebert, era também médico. Embora um médico para ser temido, por causa de seu afastamento da prática, Bebert atendeu ao chamado, pois oportunidade de ouro para ficar mais íntimo de gente famosa, principalmente Podestá, uma beleza de mulher.

UM COPPOLA ANTONIÔNICO
A conversação (The conversation, 1974), de Francis Ford Coppola, com Gene Hackman, revista recentemente, é uma obra que atesta o grande talento desse realizador antenado com seu tempo e sua circunstância e, principalmente, extremamente preocupado com a natureza da arte do filme. A conversação, filme sem atrativos comercial e talvez por isso tão esquecido e pouco visto, é uma obra que se aproxima, pela sua angústia narrativa, de Blow up, de Michelangelo Antonioni. Sente-se, no personagem vivido por Gene Hackman, aquele angústia para descobrir que atormenta o personagem do fotógrafo (David Hemmings) no filme do mestre italiano. Mais de trinta anos depois, o impacto continua o mesmo, ainda que o cinema, do ponto de vista tecnológico, tenha dado saltos atléticos. Mas a beleza do plano final, com Hackman, apartamento virado de cabeça para baixo na procura de algum objeto capaz de grampo qualquer, a fazer de conta que toca o saxofone, é um dos pontos altos do cinema na década de 70.

A MORTE DOS TRAILERS NA CONTEMPORANEIDADE
Os trailers contemporâneos estão todos padronizados e submetidos à dolorosa estética do vídeoclip (nada contra esta em si, mas que se restrinja aos videoclips propriamente ditos e não se incorpore, como está a acontecer, na narrativa cinematográfica). A imagem surge rápida, e um escurecimento, também na maior rapidez, engole-a, por assim dizer, para, em seguida, surgir outra. Decididamente: já não se fazem trailers como antigamente. Havia um savoir-faire de trailers no cinema americano que a partir dos anos 80 foi se diluindo para emergir uma espécie assim de savoir-non-faire. Dava gosto se ver os trailers, o que não acontece nos dias que correm – e correm assustadoramente rápido, levando-nos com eles, a todos, sem exceção, ao refúgio da Implacável, impressão da passagem temporal que varia de pessoa a pessoa, atacando, esta impressão, principalmente os mais velhos. Antes dos malditos trailers contemporâneos, que não gosto de vê-los – porque mesmo trailers de filmes bons, a exemplo de Os infiltrados, estão construídos dentro da pavorosa estética do vídeoclip, tinha prazer em conferi-los, chegando mesmo, quando se podia fazer isso, a ficar para a outra sessão somente para rever os trailers. No esquema atual, o espectador compra o ingresso para uma determinada sessão e terminada esta é expulso da sala de projeção. Nos bons tempos que não voltam mais (não creio ser saudosismo mas a constatação de uma época mais calma e mais inteligente, e, caso saudosismo, que o seja, e daí?), o indivíduo que comprasse o ingresso podia entrar, por exemplo, duas da tarde e só sair quando da última sessão.

COM A CARA DE QUEM ESTÁ ACORDANDO
Lembrei-me agora que gostava muito de ir às sessões das 22 horas. Pelo menos aqui na Bahia (interessante observar que se chama a cidade de Salvador de Bahia, ou seja, ao invés de aqui em Salvador – que pode também ser usado, aqui na Bahia, como está sendo usado por mim neste blog) as sessões eram assim estabelecidas: 14, 16, 18, 20 e 22 horas. Quando o filme tinha duração acima de 120 minutos: 14, 16:30, 19 e 21:30 horas. Em caso de duração maior: 14, 17 e 20 horas. Nas superproduções como ...E o vento levou, Bem Hur, Spartacus, duas únicas sessões, uma vespertina, outra noturna, ou, como se gostava de dizer (e aí sim com ênfase saudosista), uma matinée, e uma soirée, às 15 e 21 horas. Mas estava querendo contar uma história sem importância acontecida comigo. Há algumas décadas (volto ao assunto, mas parece que a nova geração se esqueceu que existe o verbo Haver, pois encontro em todo canto expressões do tipo: a dez dias fui ao cinema, etc), indo a uma sessão das 22 horas, dormi um sono profundo nas poltronas do finado cinema Bahia, que ficava à rua Carlos Gomes e atualmente abriga os apóstolos da Igreja Universal de Deus. Pois muito bem! Finda a sessão, os funcionários, ainda que sempre fizessem revista, não me encontraram, e continuei nos braços de Morfeu até a manhã seguinte, quando encontrei o chão sendo lavado e a porta, aberta, possibilitando-me sair com a cara de quem está acordando. A cara de quem está acordando é um dos fatores ocultos que determinam a desordem conjugal.


01 abril 2014

A Montagem Intelectual ou Ideológica

A Montagem Intelectual ou Ideológica: operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes".

Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência. Aprende-se, por exemplo, em biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito. Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas (Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação harmoniosa.

A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos acontecimentos diversos. A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em A Greve (1924), de Eisenstein. As ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).- os operários diante do patrão- os manifestantes diante do oficial de polícia- o patrão com a caneta na mão- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba.

A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um, rugindo e revoltado (em O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política (em Outubro).

O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith, argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo. Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e, incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico. Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque, segundo o autor de A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C, porém, a rigor, A x B = Y. Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia, unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve ( Strike ), quando Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é uma metáfora. Em Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma realidade, recorta uma determinada significação. Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.

Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal rendimento da profundidade de campo (vide Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Os melhores anos de nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica, dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro plano - o close up - tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos restrita. Tem-se, como exemplo, as faces enrugadas e pavorosas de David Bowie em Fome de Viver/The Hunger, 1983, de Tony Scott, com Catherine Deneuve e Susan Sarandon.