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21 abril 2010

Um cerveja bem-vinda no Porto da Barra de Salvador

A repórter fotográfica Margarida Neyde, do jornal soteropolitano A Tarde, é uma artista. Possui sentido da dimensão do espaço a que está a fotografar e tem uma capacidade incomum de situar a luz nos objetos. Pode parecer um gesto narcisístico a publicação, neste meu blog, da foto que encima o post de hoje, feriado, dia de Tiradentes (sim, falar nisso, preciso ir ao dentista arrancar um dente). Mas não o é. Publico para que se veja a qualidade de uma fotografia e que se veja, também, o Porto da Barra em Salvador, cuja praia é considerada uma das mais aprazíveis do mundo. Os objetos, as luzes, o espaço e a vista é que determinam o interesse pela foto. O ser humano é apenas um acessório, uma presença secundária, ainda que este ser humano seja eu, o bloquista, que, cansado de guerra, sentou-se no bar que se vê na foto para tomar a sua cervejinha e fumar seu cigarrinho. O bar é civilizado, porque permite a fumaça do cigarro, apesar da lei fascista existente contra o fumo. Tomei outras garrafinhas, não apenas uma, como se pode deduzir da foto em questão. Depois fui para a Praia dos Livros, livraria/bar, onde Raul Moreira, jornalista, cineasta e chef-de-cuisine, prepara toda sexta um já clássico e antológico spaghetti al pomodoro (tomate orgânico acompanhando do imbatível fomaggio grana padano) e pesto freso (manjericão, nozes e fomaggio grana padano). O amigo e publicitário Jonga Olivieri publicou a foto em seu blog: http://novaspensatas.blogspot.com
Clique na imagem para vê-la ampla, maior, melhor.

20 abril 2010

O insólito Roman Polansky


Cineasta de rara inventividade no tratamento de seus temas, cuja crueldade vem muitas vezes na maneira pela qual estabelece a sua mise-en-scène, Roman Polansky pode ser considerado um dos mais insólitos realizadores cinematográficos do último quartel do século passado. O Pianista (The Pianist), traz à cena o seu nome e atesta a maturidade de um autor quase que no outono da existência. Filme maduro e, por vezes, cruel, The Pianist tem uma correção que não admite sucumbir aos desvãos da pós-modernidade ou nos capítulos trânsfugas das inovações retrógradas – vide o dogmatismo dinamarquês e suas desabusadas manifestações ou as gramas innarriturianas. Aqueles que criticaram Polansky quando este ganhou a Palma de Ouro em Cannes dada a O Pianista, considerando-o certinho demais, são os mesmos que solicitam do cinema não o espetáculo que envolve, aprofunda e traz reflexão, mas o supérfluo das câmeras planosequênciais, da prótese suja como manifestação de autoria e de rebeldia.

Realizador à primeira vista prolixo, Polansky, no entanto, ainda que tenha percorrido vários gêneros, é um autor, pois em cada um de seus filmes há uma gota de sangue de seu pretérito sofrido, maculado, esmagado, mas que ele, sempre confiante, soube ultrapassar os obstáculos e, otimista, apesar de tudo, seguindo, sempre, em frente. É verdade que a segunda fase de sua obra não apresenta o mesmo impacto da primeira, aquela dos tempos de A faca na água, Repulsa ao sexo, Armadilha do destino, O bebê de Rosemary, Chinatown, O inquilino e, ainda, um extraordinário, e mal visto, MacBeth, que, sem medo de errar, poder-se-ia dizer que melhor que a versão que Orson Welles fez em 1948. Aliás, Polansky, numa entrevista a Jô Soares, quando aqui esteve para lançar Busca frenética, disse que os dois filmes que mais o influenciaram foram 8 e meio, de Federico Fellini, e MacBeth, de Orson Welles.
Mas o admirador confesso veio superar o mestre com a sua admirável, e, mais uma vez, pouco reconhecida, adaptação do clássico de William Shakespeare. Revisitando-se sua obra, a constatação de pontos comuns, de constantes temáticas, evidencia-se: a claustrofobia, o homem sempre acossado por circunstâncias indecifráveis, a insistente crueldade na visão ácida da condição humana, os desvãos do inconsciente, os entrechoques amorosos, a mulher sempre rainha, bela e sedutora, sedutora e bela, um certo ‘non sense’ na apreciação do ato de viver, a violência como mola propulsora para o estabelecimento do poder, a narratividade circular, em alguns filmes (A faca na água’, Chinatown...) onde ao invés de um desfecho se estabelece um impasse numa espécie de eterno retorno. E a perversidade e suas variantes. Polansky vê o homem com um olhar amargo, achando-lhe, a depender das circunstâncias, um potencial enorme de perversidade.

P.S: Uma vez, nos idos dos anos 70, mais precisamente em 1973, estando no Campo Grande com um amigo, li, num jornal, que Roman Polansky estava em Salvador e hospedado no Hotel da Bahia. Perto da hospedagem do autor de Rosemary’s Baby, decidimos, eu e este colega, adentrarmos no hotel à sua procura. Não precisamos ter trabalho na busca, pois, assim que entramos no saguão, avistamos Polansky na pergola da piscina tendo, a seu lado, Jack Nicholson. Aproximamo-nos com certo receio – estava na flor da juventude e, neste período, tudo é encantamento e novidade. Tive a iniciativa de falar com Nicholson em francês – estudava, desculpem a modéstia, na Alliance Française – e trocamos algumas frases. Ele, muito simpático e receptivo, estava quase careca, porque criando o cabelo para o penteado do personagem que faria em Chinatown, deslumbrante filme noir, o primeiro a revisar o gênero quando ainda não se fazia isto. Polansky nos olhava calado. Acenava, apenas, com a cabeça. Um fotógrafo da Tribuna da Bahia, jornal onde escrevia uma coluna, estava a os acompanhar. Disse-me que estavam ali esperando que a namorada de Polansky descesse do apartamento. O fotógrafo, que era Lázaro Torres, seria o cicerone para um passeio a Arembepe, que os dois manifestaram desejo de conhecer e que, na época, era um ‘must’, um ‘point’, uma aldeia hippie famosa no mundo inteiro e que tinha um insólito relógio solar. Quando Polansky, também falando em francês, começou a conversar sobre o filme que ia fazer, uma ‘louraça’ – fillet-mignon mesmo – apareceu na pergola. E se foram embora, deixando-nos a ver navios.

18 abril 2010

Vejam que beleza!

Considero Uma garota romântica (Les demoiselles de Rochefort, 1966), de Jacques Demy, uma obra-prima. Demy parece que tem uma varinha de condão, pois um mágico e um poeta. Sua mise-en-scène est une chose admirable. É a beleza e a própria explicação da beleza. Autor do originalíssimo Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Cherbourg, 1964), meu filme de cabeceira, Jacques Demy é um dos cineastas da minha maior admiração. O que se pode ver aqui, neste vídeo, é um momento admirável de sua arte. Em Les demoiselles de Rochefort, que, infelizmente, ainda não encontrou espaço no mercado para ser distribuído em DVD, por uma dessas injunções mercadológicas esdrúxulas, Gene Kelly se ofereceu para coreografar, dançar e atuar, encantado que ficou com Les parapluies de Cherbourg. Vejam em tela cheia no computador.


Importância de Jean-Luc Godard


Nascido em 1930, é um realizador, hoje, com 80 anos, mas que continua na ativa, fazendo filmes, reclamando e polemizando, nunca deixando de causar controvérsias – como se pode observar em Elogio do amor, que não é uma unanimidade, pois há quem o adore e quem o deteste. Se, na última fase, por uma certa radicalidade com os procedimentos cinematográficos, causou uma diáspora incontornável entre os cinéfilos, não se pode negar, porém, que seus filmes dos anos 60 são significativos e divisores-de-água para o cinema contemporâneo. Detona a Nouvelle Vague com Acossado em 1959 juntamente com François Truffaut em Os Incompreendidos, entre outros, provocando um trauma duradouro no cinema francês.
Fez as primeiras letras na Suíça, mas logo se transfere para Paris a fim de estudar no tradicional Liceu Buffon e, em seguida, forma-se em Etnologia pela Sorbonne. Em inícios da década de 50, vem a conhecer, na Cinematheque Française, Henri Langlois, com quem faz logo amizade. Publica em La Gazzette du Cinema suas primeiras críticas, que despertam curiosidade em cinéfilos aguerridos como François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette, André Bazin, que o convidam para ser crítico permanente da revista Cahiers du Cinema. Resolvido a conhecer os Estados Unidos, abandona suas atividades críticas e, na volta, emprega-se como operário na construção da represa da Grande-Dixence, na Suíça, apesar de diplomado com nível superior. Quer, na verdade, “sentir-se operário” e, findo o trabalho, o que ganha, emprega na produção de seu primeiro exercício fílmico: o documentário Operation Béton (1954). Volta para a revista e, desta vez, a praxis conduz o crítico, pois, em Genebra, faz, em 16mm, Une femme coquette.
No campo curtametragista realiza, ainda, Tous les garçons s’apellent Patrick (1957), Charlotte e son lules, em 1958, e, neste mesmo ano, Une histoire d’eau, em co-direção com François Truffaut. A sorte grande de Jean-Luc Godard é ter encontrado o produtor Georges Beauregard, que, interessado em bancar filmes para a renovação do cinema francês, aposta no cineasta e produz, para ele dirigir, Acossado (A bout de souffle), com argumento escrito por Truffaut, obra marcante e que inaugura a Nouvelle Vague. A seguir, já em 1960, O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat), filme sobre a trágica aventura – e uma tanto ridícula, convenha-se – de um agente secreto ocasional em luta contra as forças revolucionárias argelinas. Neste filme, já afirma precocemente seu caráter de autor, curiosa síntese de cinéfilo e cineasta.
No ano seguinte, um de seus melhores trabalhos, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme), 1961, comédia ácida sobre a nostalgia do filmusical americano com alusão a Vincente Minnelli, entre outros, e com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina. Este filme merece ser destacado pela sua inusitada importância na época de seu aparecimento e pelo elogio ao cinema musical clássico realizado em Hollywood. A seguir, em 1962, vem Viver a Vida (Vivre sa vie), apólogo sobre uma mulher - Anna Karina, como de hábito – que vende seu corpo para, paradoxalmente, conservar a sua alma, dotado de profunda humanidade e de uma emoção insólita e pura.
A construção polifônica destes filmes, baseada numa tensão dialética entre a realidade e a fantasia, na qual se sintetizam vários planos superpostos – um relato fictício, um elemento autobiográfico, uma reflexão sobre a natureza do cinema, um tratamento documental, etc – dá origem ao que se pode considerar um novo gênero cinematográfico: o ensaio filmado. Este caráter dialético se faz mais patente nos sketches que realiza para vários filmes com um propósito claramente experimental: A preguiça, de Os Sete Pecados Capitais (Les sept péches capitaux, 1961), Rogopag (1962), Montparnasse-Levallois, episódio de Paris visto por... (Paris vu par..., 1964).
Segue Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963), outro apólogo, mas, desta vez, feroz e sarcástico, num filme sobre a guerra, baseado numa comédia de Beniamino Joppolo, que adapta de Roberto Rossellini, A escritura de Godard se transforma, adquirindo mais virulência, com uma ressonância trágica e desencantada cada vez maior. Como prova, o admirável O Desprezo (Le Mépris, 1963), harmoniosa síntese de classicismo e modernidade. Reflexão sobre o cinema, este filme utiliza, com grande propriedade artística, os recursos da tela larga, do cinemascope, sendo indispensável ser visto e contemplado na sala de exibição em celulóide. Em alguns momentos, os corpos dos atores se transmudam em esculturas paralelas aos volumes arquitetônicos. Assim como a belíssima Brigitte Bardot, cujo corpo adquire, neste filme, um “teor escultural”. Beleza enquanto explicação da beleza, arte enquanto explicação da arte, cinema enquanto explicação do cinema.
A partir de 1963, a carreira de Jean-Luc Godard adquire uma atividade intensa, um ritmo febril, rodando dois ou três filmes por ano e saudado pela platéia dos ‘cinemas de arte e ensaio’ como um revolucionário, um “desconstrutor” da linguagem, um entusiasta do cinema enquanto ensaio fílmico. Uma geração chega a se formar, no Rio de Janeiro, para discutir Godard, constituída de jovens cariocas que, após as sessões de seus filmes, sentam-se nos barzinhos da rua Paissandú – a sala exibidora tem este nome – para discutir o último travelling do cineasta. A godarmania atinge a juventude nos tresloucados anos 60 e se espraia pelas principais centros intelectuais do planeta.Cada novo filme de Jean-Luc Godard se constitui numa ambiciosa experiência em terrenos tão diversos como o poema romântico (Bande à Part, 1964) – inédito no Brasil, o ensaio psicológico (Uma Mulher Casada/Une Femme Mariée, 1964), e a ficção-científica (Alphaville, 1965).
Por sua vez, O Demônio das Onze Horas (Pierrot, Le Fou, 1965) se estabelece como uma suma antológica de toda a sua obra, o ponto limite de uma série de experiências, num intento de recapitulação que parece anunciar o começo de uma nova etapa. Autor existencialista por excelência, sua obra se caracteriza por uma unidade profunda, ainda que a aparente disparidade de seus elementos. Seus filmes singulares – pelo menos os da primeira fase – podem ser integrados numa espécie de macrofilme, considerando-se a coerência de seus temas, seus personagens e seu estilo – e, como dizia Buffon, o estilo é o homem!
Cineasta do instante, seus filmes resultam da justaposição de uma série de ‘momentos de verdade’ privilegiados, obtidos por meio de uma técnica de improvisação que tende a confundir os atores com seus personagens. A linguagem destes deixa de ser meio de comunicação para se converter em elemento expressivo – vide Belmondo em Pierrot, Le Fou a se dirigir aos espectadores quando uma estupefata Anna Karina lhe pergunta com quem está falando enquanto dirige um carro veloz pelo interior da França.A síntese godardiana se encontra na collage dialética a meio caminho entre a montagem de atrações de Eisenstein e a estética da pop art. Suas obras se incluem entre aquelas de estrutura narrativa complexa e de fragmentação, com a união dos elementos mais díspares: rupturas de tom de comédia a tragédia e vice-versa, sempre na busca desesperada da representação de um equilíbrio instável entre o personagem e o mundo circundante.
A revolução godardiana determina uma interferência na sintaxe cinematográfica. O realizador de ‘Acossado’, após conhecer profundamente o cinema clássico, principalmente o americano do ‘grande segredo’, pôde, então, efetuar uma evolução nesta sintaxe através de modificações nos procedimentos cinematográficos, a exemplo da estruturação fragmentada de seus filmes com a inclusão de material de origem diversa da icônica, como livros abertos, atenção à palavra que está sendo dita ou lida, a montagem sincopada que não obedece a uma continuidade narrativa, etc. Na verdade, Godard expande a linguagem, possibilitando-lhe um maior campo de expressão como é exemplo o ensaio fílmico. A sua influência é devastadora, notadamente nos cineastas adeptos de uma “nova vaga”. Note-se que A Ilha das Flores, de Jorge Furtado, tem muito do Godard de Duas Ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux Ou Trois Choses Que Je Sais D’elle).
Poder-se-ia dizer que a trajetória de Jean-Luc Godard se divide em três fases, cabendo, num critério mais rigoroso, até a inclusão de uma quarta fase. A primeira é aquela que começa vibrando com Acossado – que este comentarista considera ainda a sua obra-prima – e termina, mais ou menos, em A Chinesa (1968) ou Week-end à Francesa. Maio de 1968 é um tempo de mudança, de rupturas e o cineasta considera que nada mais tem a dizer com a ficção, pois o cinema, para ele, deve partir para uma “ação armada”. A opção preferencial determina-lhe um engajamento num “cinema coletivo” sem concessões que denomina de “Grupo Dziga Vertov”, cujos filmes devem incitar à revolução do homem, presa das armadilhas do destino e das vicissitudes de uma sociedade injusta.
A característica apontada de um cinema de collage pode ser ainda melhor observada nos filmes mais recentes do cineasta. Jean-Luc Godard antecipa a pós-modernidade com seus ensaios fílmicos que permitem à linguagem cinematográfica uma força expressiva que vai além do mero suporte para o desenvolvimento fabulístico. Neste particular, o cinema de Jean-Luc Godard é um cinema avant la lettre.