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01 março 2010

Existe um cinema de arte?


Carlos Heitor Cony, em artigo para a Folha de S.Paulo, escreveu sobre a literatura de ação e a literatura de reflexão, e citou Glauber Rocha, que disse certa ocasião que a obra de José de Alencar é um rio caudaloso enquanto a de Machado de Assis uma torneira que pinga. Queria o realizador de Deus e o diabo na terra do sol dizer que, nos livros de Alencar, a ação prepondera em detrimento da reflexão, enquanto nos de Machado é esta que determina a sua fruição. O mesmo poderia ser aplicado ao cinema.

O que se convencionou chamar erroneamente de cinema de arte não passa, na verdade, de uma falácia. O cinema de arte não existe e, inclusive, a expressão foi dada pelos exibidores (que são comerciantes) para designar, na década de 50, os filmes de tomadas demoradas, sem ação, quando da explosão no mercado das obras de Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Robert Bresson, Roberto Rossellini, entre tantos outros. Os exibidores é que denominaram estes de filmes de arte porque filmes que não atingiam muito público, e o mercado, restrito, dominado pelo cinema americano. Queriam eles dizer, na verdade, se tivessem mais noção da arte do filme, que os filmes de arte se caracterizavam pela reflexão em detrimento da ação.

O fato é que não existe, a rigor, cinema de arte. O filme pode ser excelente seja ele de ação ou de reflexão. Sobre produzir um monte de lixo, a indústria cultural de Hollywood também realiza grandes filmes, como, por exemplo, e filmes mais ou menos recentes, Bastardos inglórios, de Quentin Tarantino, Gran Torino, de Clint Eastwood, Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, Onde os fracos não têm vez, dos Irmãos Coen. E os primorosos filmes de Martin Scorsese, Sidney Lumet, entre outros tantos, não são oriundos da indústria? Se vingar a expressão cinema de arte como a significação do verdadeiro e bom cinema, filmes que são obras-primas como Rastros de ódio (The seachers), de John Ford, por serem de ação, estariam fora dela. O que seria um absurdo e uma patologia mental.

O que determina o valor de uma obra cinematográfica é a maneira pela qual o realizador articula os elementos da sua linguagem. Não importa se a articula em função da ação ou da reflexão. O que importa, na verdade, é o talento, o engenho e a arte. Também na literatura o que determina o valor literário de um livro é a maneira pela qual o escritor articula a sintaxe da língua. A ação pela ação (e também a reflexão pela reflexão), se não estiver apoiada numa escrita bem articulada, nada vale.

A confusão, porém, ainda é muito grande. A maioria dos pseudo-cinéfilos que toma conta das salas alternativas da cidade somente considera filmes válidos aqueles voltados para a reflexão. Mas se a reflexão não tiver aporte numa expressão estilística elevada não tem valor e, muitas vezes, é veículo para a aporrinhação do espectador. Neste caso, muito mais vale um filme de ação bem articulado do que um de reflexão de pouca polivalência no estilo.
Um belo dia, deparei-me com um impertinente pseudo-cinéfilo, desses que gostam mais de ficar na sala de espera para ser visto do que no interior da sala exibidora, e ele ficou admirado quando manifestei minha admiração pelos filmes de Clint Eastwood. "Mas não é aquele cowboy italiano que depois virou o perseguidor implacável?"

Existem, por outro lado, cineastas que, a priori, pensam fazer cinema de arte e, na verdade, seus filmes são estímulos fortíssimos à sonolência. O verdadeiro cineasta faz seu filme de acordo com a sua necessidade de expressão. Se vai conseguir um bom mercado exibidor ou ficar restrito às salas alternativas, isto, outra história.

Howard Hawks, brilhante realizador americano, fez um filme que mistura ação e reflexão numa solução de gênio em Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), com John Wayne, Dean Martin, Angie Dickinson. Western clássico, a ação de Rio Bravo, tirante poucos momentos de ação, transcorre quase toda dentro de uma pequena sala da delegacia ou no interior de um hotel das circunvizinhanças. A reflexão, a análise do comportamento dos personagens, e os diálogos são mais importantes do que a ação. Em outro filme desse genial diretor, Hatari!, a sua maior parte está concentrada na espera da caça e não nesta, quando se tem a ação. Hatari!, filmado in loco, na África, é sobre um grupo de caçadores de nacionalidades diferentes que está à procura de animais selvagens para os levar para os zoológicos de seus países. Mas Hawks concentra todo o filme nos momentos fracos, nos momentos de pausa, nos momentos em que os personagens estão à espera da caçada. Uma característica de Hawks, um realizador que se dividiu entre os westerns e as comédias com admirável talento (inexistente no cinema contemporâneo).

O cinema de arte, portanto, é uma falácia e uma grande mentira.

28 fevereiro 2010

A estética da tesourinha

A estética do videoclipe, que, como metástase, invade a indústria cultural cinematográfica, está a destruir a linguagem fílmica. Os filmes são fragmentados, picotados, como se uma máquina de costura fosse a montadora das películas, a destruir, com isso, o clima, a ambientação, a durée - leia-se conceito de duração. Admite-se tal velocidade para o videoclipe como tal, mas quando a sua estética se expande para a dramaturgia cinematográfica vê-se, neste caso, um perigo real e imediato para o cinema. Os grandes cineastas sempre tiveram em mente o conceito de duração que proporciona o clima, o envolvimento e, neste, a instalação do poder de convencimento capaz de tornar o espectador um cúmplice do espetáculo.

Acontece que a nova geração, a do audiovisual, perdeu, por causa da asfixia proporcionada pela indústria cultural, a capacidade de contemplar e, sem contemplar, não existe possibilidade de se adentrar na coisa para a conhecer. Tudo se passa muito rápido, as tomadas se sucedem em questão de segundos, e a maioria dos filmes contemporâneos redunda na nulidade. A estética do videoclipe incorporada ao espetáculo cinematográfico parece uma peste endêmica a assolar os produtos oriundos da indústria cultural de Hollywood.


É por isso que, quando surge um filme como As ervas daninhas (Les herbes folles) de Alain Resnais, o melhor filme de 2009 e impossível o aparecimento de outro que se lhe possa comparar), a sensação é de algo diferente, de uma obra que passa uma emoção e uma reflexão, com clima e eficiência dramática, que seriam impossíveis dentro da estética da tesourinha ou da máquina de costura.

Sofre, com isso, a linguagem cinematográfica, que, com a incorporação da estética do videoclipe ao espetáculo cinematográfico, se encontra num processo de marcha-a-ré. É impossível se assistir a um filme, atualmente, com o maneirismo demencial de dar ao espectador apenas alguns segundos de uma tomada. Viciada, a nova geração não mais aceita um filme normal, com a durée controlada e, por desvio, tende a considerá-lo um filme lento e chato - e não se está a falar aqui de obras realizadas em planos sequenciais, mas de películas nas quais o realizador concebe a duração dentro dos padrões normais de acompanhamento da atenção. Kubrick, neste particular, é um mestre no saber dimensionar o conceito de duração.


A síndrome matriz, antes de fornecer algo de novo e interessante, estabeleceu um ritmo e um padrão capazes de pôr o prazer de se ir ao cinema por água abaixo. Como se já não bastasse a instauração dos efeitos especiais como conditio sine qua non do sucesso comercial. E, neste particular, existe um culpado: George Lucas, em 1977, com seu Guerra nas estrelas (Star Wars) deu o ponto de partida para o alucinógeno audiovisual. A fórmula se multiplicou, instalando, com isso, um filão.

Se o cinema hollywoodiano atual é um cinema dirigido por executivos estranhos ao assunto (Coca-Cola, Mitsubichi, Sony, etc), no passado, entretanto, as coisas eram diferentes. Existiam os grandes estúdios (que foram fundidos com suas características totalmente desaparecidas), regidos por chefões que, poderosos, apesar da ânsia do lucro, gostavam e entendiam de cinema (Harry Cohn, da Columbia, Jack Warner, da Warner, Louis B. Mayer, da Metro, David Selznick...).


A planilha da produção, hoje, é uma linha de montagem como uma fábrica de salsichas: tantos filmes de ação, tantos filmes de monstros e alienígenas, e por aí vai. Os efeitos especiais se sobrepuseram em detrimento da construção psicológica dos personagens, da estruturação destes como pessoas de carne e osso. Vê-se marionetes e títeres, a correr dos perigos, a se desvencilhar dos obstáculos, mas, nunca, personagens com poder de convencimento e envolvimento. É verdade que há um Clint Eastwood para salvar o pobre cinéfilo, e, para se ser sincero, mais alguns, como Scorsese, os fratelli Coen, William Friedklin, Paul Thomas Anderson, Robert Zemeckis, Lars Von Triers, Wong Kar-wai, Sidney Lumet, Claude Chabrol, Michael Haneke, David Fincher, Tarantino et caterva.


O cinéfilo de antigamente se transformou em mero consumidor. Ver filmes virou sinônimo de comer pipocas e se abastecer, até o afrontamento do estomago, de hambúrgueres, refrigerantes post-mix de 750 ml, guloseimas a perder de vista. Os exibidores revelaram que os complexos Multiplex tiram maior renda com a venda de fast-food do que com os ingressos propriamente ditos. Quem quiser uma prova basta dar uma olhada em sessão noturna de dia de semana, excetuando-se as da quarta cujos ingressos são mais baratos.

E para coroar a decadência do cinema contemporâneo - pelo menos o cinema que se oferece na bandeja do circuito - surgiu a prática odiosa da tesourinha, isto quer dizer: a introdução da estética do videoclipe na narrativa cinematográfica.

As tomadas rápidas, a insistência da ação contínua e a velocidade excessiva imprimida ao ritmo do filme não deixam margem à respiração e à contemplação. E contrariamente aos filmes dos grandes mestres, que sabiam dosar os momentos fortes e os momentos fracos, nas películas atuais praticamente só existem os primeiros. Não há pausas, necessárias, que preparam o espectador para o clímax. Pena que assim seja, pois os amantes do bom cinema estão se afastando das salas de projeção e se recolhendo ao conforto caseiro para ver filmes de sua preferência em DVD. A oferta destes está excelente. Há filmes para todos os gostos. E não se tem que suportar os celulares vazios, as pipocas em mandíbulas alheias, as conversinhas de débeis mentais, a ambiência, enfim, de um inferno.


Os aborrecentes que vão ao cinema, além de aborrecer aqueles que gostam da chamada sétima arte, se tornaram verdadeiros vândalos. Comer em cinema deveria ser proibido. Não se faz isso com o cigarro por causa da paranóia antitabagista que assolou a politiquice correta?