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20 outubro 2007

Uma lágrima para Deborah Kerr



Bela, majestosa, mulher de classe, finesse, coisa rara nesta era de mediocridades e belezas fabricadas, Deborah Kerr se foi nestes dias para o desconhecido. Nasceu em 1921, morreu com 86. Há muitos anos já sofria do Mal de Parkinson e nos anos 90 foi homenageada com um Oscar. Deveria não ter aparecido, pois já se encontrava alquebrada, baixa, altura diminuída, não pela velhice, que muitas vezes embeleza, mas pela doença. Mas que se dê uma olhada à imagem dela aqui postada e que se admire a sua beleza. Excelente atriz, marcou uma época. Fez muitos filmes, que neste rápido post de homenagem, não daria para citar todos os que gosto. Mas Tarde demais para esquecer (An affair to remember, 1957), do habilidoso e por vezes genial Leo McCarey, é melodrama sublime (quem tem medo do melodrama? - confunde-se, no cipoal da ignorância geral, o melodrama com dramalhão e sempre se está a misturar alhos com bugalhos, característica, aliás, da ignorantália). Mas estou sendo um pouco ríspido para falar de uma mulher nada ríspida como Deborah, que acompanhei desde criança. O rei e eu, O céu é testemunha, tantos filmes, tantas honras. E aquele beijo apoteótico, na praia, enquanto as ondas batiam nos corpos molhados dela e de Burt Lancaster em A um passo da eternidade? Causou escândalo na época. Atualmente o escândalo não existe mais, a considerar a decadência geral dos valores nesta fajuta e desgraçada contemporaneidade (detesto este termo). E Os inocentes, de Jack Clayton? Nos anos 70, Elia Kazan a convidou para Movidos pelo ódio (The arrangement), e ela, já entrada nos anos dá um show de beleza madura e interpretação ao lado de Kirk Douglas. Vá ao Imdb, o maior banco de dados da internet sobre cinema ver sua filmografia e mais detalhes sobre esta deusa. http://www.imdb.com/name/nm0000039/
Que a terra lhe seja leve!

18 outubro 2007

Walter da Silveira nas fronteiras do cinema


FRONTEIRAS
Se vivo fosse, Walter da Silveira estaria completando, em novembro vindouro, 92 anos, pois nasceu em 1915. Morreu ainda em pleno vigor de sua capacidade intelectual, em novembro de 1970, aos 55 anos (e, ao constatar isso, o susto inevitável, pois fiz 57 no dia das crianças passado). Advogado trabalhista, casado e com prole numerosa, escrevia sempre nos suplementos culturais dos jornais baianos, e a reunião de seus escritos, já feita há mais de dez anos, teve, afinal, um lançamento decente há poucas semanas depois de duas tentativas fracassadas pela inépcia dos responsáveis pela organização do evento. Em vida, publicou apenas dois livros: Fronteiras do cinema e Imagem e roteiro de Charles Chaplin. Um terceiro, A história do cinema vista da província, editado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, teve lançamento póstumo em 1979, com o trabalho de organização a cargo de José Umberto.

ENSAIOS ANTOLÓGICOS
Gostaria, porém, de registrar, aqui, os 41 anos de Fronteiras do cinema, quatro décadas que já se passaram desde a tarde de autógrafos na Livraria Civilização Brasileira da rua da Ajuda. O livro reúne ensaios publicados em jornais e revistas e alguns inéditos. Há alguns antológicos como Espaço e tempo no cinemascope, Da oralidade em Alain Resnais, Entrevisão a Ingmar Bergman, Um instrumento do humanismo, etc. Fronteiras do cinema atesta a erudição de Walter da Silveira em matéria de cinema, conhecendo profundamente os labirintos da arte cinematográfica. Além do mais, Walter da Silveira escrevia admiravelmente, tinha um estilo marcante, inconfundível.

CHAPLIN
A adoração a Chaplin se cristalizou em Imagem e roteiro de Charles Chaplin, que tive a oportunidade de comparecer ao lançamento em junho de 1970, poucos meses antes de sua morte. Aconteceu num sábado chuvoso no cinema Bahia, da rua Carlos Gomes, na sua sala de espera. No meio dos autógrafos, o ensaísta se sentiu mal e foi levado para a gerência. Em seguida, em cópia enviada especialmente para o evento, foi exibido O garoto (The kid, 1921), de Chaplin, seu primeiro longa metragem. Obra primorosa, este roteiro chapliniano, que contém talvez as mais belas páginas escritas sobre o autor de Luzes da cidade (City lights, 1930).

O MAIOR DE TODOS
Mais do que um crítico, Walter da Silveira era um brilhante ensaísta, um dos mais importantes de sua época ao lado de Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Luiz de Almeida Sales, Antonio Moniz Vianna, entre outros notáveis. Na distinção que se pode fazer entre aqueles que escrevem sobre cinema, há os resenhistas, os comentaristas, os críticos e os ensaístas. Nesta última categoria é que se pode colocar Walter da Silveira. Não conheço, na Bahia, outro que se lhe possa comparar. Foi o maior de todos.

IGNORADO NA CONTEMPORANEIDADE
Infelizmente a nova geração não conhece Walter da Silveira, apesar de seu nome designar uma sala de exibição alternativa nos Barris. Perguntei uma vez, a uma turma de 30 pessoas, quem foi o ensaísta e, para minha estupefação, ninguém sabia de quem se tratava. Alguns, que responderam, disseram: “Não é o nome do cinema dos Barris?” A publicação de seus escritos foi o maior acontecimento editorial do ano.
‘ESPORRO’ EM GLAUBER
Walter da Silveira, conforme conta o próprio Glauber Rocha em artigo que saiu no Jornal da Bahia dia depois de seu falecimento, ensinou ao realizador de Terra em transe a respeitar Eisenstein. Numa manhã, quando o cineasta se associara há pouco tempo ao Clube de Cinema da Bahia, que funcionava, nesta época, sábado em sessão matinal no Liceu, estava sendo exibido O encouraçado Potemkin. Glauber, na platéia, durante a exibição, conversava alto com um interlocutor. Walter da Silveira solicitou que o filme fosse suspenso e, quando as luzes se acenderam, deu um forte esporro em Glauber – é ele mesmo quem conta. E escreveu que a partir de então nunca mais conversou enquanto um filme era exibido. Pelo menos no Clube de Cinema da Bahia e sob a observação rigorosa do mestre.

CLUBE DE CINEMA
Fundador do Clube de Cinema da Bahia, em julho de 1950, Walter da Silveira, trazendo os grandes clássicos para o conhecimento dos baianos, informou e formou toda uma geração. Pela primeira vez se via em Salvador os filmes do expressionismo alemão, os da escola soviética, os do realismo poético francês, os do neo-realismo italiano, etc. Se o Clube teve uma importância indiscutível na formação de platéias, creio que atualmente, com o advento do DVD e as novas tecnologias, o Clube, como era praticado por Walter da Silveira, não teria mais razão de ser. Os tempos mudaram e o cinema não é visto apenas nas salas exibidoras, mas através de outros suportes.

UM GRANDE ANIMADOR
Um animador, portanto, Walter da Silveira. Antes das projeções cineclubistas, fazia uma palestra, com sua oratória de advogado, procurando mostrar o específico cinematográfico, a estética condicionada pela linguagem do realizador de determinado filme exibido. Eisenstein, principalmente em Potemkin e Outubro, assustou o jovem Glauber Rocha. E é do assombro que se dá o início a qualquer processo cognitivo.

MUDANDO DE UNHA PARA DENTE
Transcrevo aqui comentário do excelente critico Inácio Araújo que saiu hoje na Folha de São Paulo. Assino embaixo. "É muito difícil recusar a oferta da TNT, que propõe uma tarde-noite dedicada inteiramente ao cinema de Clint Eastwood. Por ordem de entrada: "Um Mundo Perfeito" (16h15), "Cowboys do Espaço" (19h15), "Sobre Meninos e Lobos" (22h), "Dívida de Sangue" (1h) e "Crime Verdadeiro" (3h15).Se observarmos bem, um mundo de mortos-vivos, começando pelo menino-fantasminha de "Um Mundo Perfeito", passando pelos astronautas falhados de "Cowboys...", pelo trauma da violência de "Sobre Meninos...", pelo transplante de coração que dá a um homem uma segunda vida, em "Dívida...", e pela quase ressurreição de um condenado à morte, em "Crime Verdadeiro".Pode-se gostar mais ou menos de tal ou tal outro filme de Clint (eu gosto de todos esses). Mas não se pode negar a tremenda coerência de um sujeito que só filma o que quer filmar e não cede ao comercialismo vigente. O resultado é um artista e sua obra. Não é de todos que se pode dizer isso."

17 outubro 2007

Une femme est une femme



Segundo longa metragem de Jean-Luc Godard, que se sucede a Acossado (A bout de souffle, 1959), que detonou a ‘nouvelle vague’ e traumatizou duramente o cinema francês contemporâneo, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 1961), é um filme menos conhecido do realizador, mas uma de suas películas mais engraçadas, espirituosas, cuja feitura denota o frescor da época, de um existencialismo que se vivia nas ruas de Paris cheias de idealismo e romantismo. Não é um musical, como se anunciou, e como muita gente pensou: é, simplesmente, uma comédia romântica ao avesso, que subverte os clichês do gênero inteligentemente – não como agora em que a subversão do clichê já virou gasto lugar-comum. E tem Anna Karina, que, na época, companheira de Godard, revelava-se uma atriz encantadora.

Une femme est une femme foi exibido em cópia na bitola 16mm pela primeira vez em Salvador quando da mostra Godard, que ocorreu em julho de 2003 na Sala Walter da Silveira. Os filmes do cineasta foram aqui lançados na década de 60, a maioria no cine Capri – que se incendiou em 1980 e ficava no Largo 2 de Julho – e distribuídos pela Franco-Brasileira, mas, não se sabe a razão, Uma mulher é uma mulher permaneceu inédito.A Net/Sky, através do canal Telecine Classic, quando existia e não tinha sido substituído pelo híbrido Cult, ao lado de Pierrot, le fou (chamado, aqui, O demônio das onze horas), Alphaville e Acossado, que, sua estréia no longa, continua sendo o seu melhor filme.

Há uma clara referência ao cinema clássico americano e, numa determinada cena, Anna Karina diz a Jean-Paul Belmondo que gostaria de estar num musical de Vincente Minnelli, ao lado de Gene Kelly e Bob Fosse. O personagem de Belmondo se chama Alfred Lubitsch – referência explícita ao mestre da comédia sofisticada Ernst Lubitsch. E num determinado momento, há uma citação de Tirez sur le pianiste, filme de François Truffaut, colega de Godard na ‘nouvelle vague’ e na revista Cahiers du cinema. O próprio Belmondo, principal intérprete de Acossado, de repente, diz que não tem tempo porque não pode perder Acossado. E Jeanne Moreau, musa da ‘nouvelle vague’, faz uma pequena ponta em pé num bar onde Belmondo toma um drink.

A comédia romântica clássica é subvertida, porém em termos de poesia e metalinguagem. A montagem sincopada, de tomadas rápidas, é repetida aqui. Logo no início, quando Anna Karina se dirige ao cabaré onde é estrela de strip-tease, ela passeia pelas ruas de Paris e a partitura de Michel Legrand – de grande beleza – é retirada e depois recolocada. Godard, também em outros momentos, retira o áudio e faz com que os personagens se dirijam aos espectadores. Quando Belmondo vê-se rejeitado por Karina, ele fala ao público: “Ela não me quer!” Claro que o filme deve ser situado dentro de um contexto histórico-cinematográfico, quando a desmistificação do espetáculo era uma novidade. O cinema perdeu, definitivamente, um certo encanto, uma certa ingenuidade. Wim Wenders, num depoimento para Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho, afirma que o cinema contemporâneo não oferece margem para a imaginação, porque tudo vem muito pronto, com tudo já dito.

Em cinemascope, colorido, a iluminação de Roul Coutard – diretor de fotografia preferencial de Godard – contribui para criar o clima, acentuando tonalidades, ressaltando matizes que se introduzem no tecido dramatúrgico. As seqüências seguem um ritmo sincopado, com repetições de gestos, de movimentos, que seriam uma das marcas registradas do autor. E o que se poderia chamar de história se dilui na mise-en-scène a demonstrar que um filme verdadeiro é a expressão de um estilo, estabelecendo-se pela maneira de o cineasta articular os elementos da linguagem cinematográfica.

Karina é uma strip que mora com Jean-Claude Brialy enquanto Jean-Paul Belmondo lhe faz a corte diária. Ela tem uma idéia fixa: ter um filho, mas seu companheiro parece desinteressado em lhe oferecer o presente. Chateada, vai procurar Belmondo, e, no apartamento deste, dorme com ele. Mas volta à sua morada com Brialy e lhe conta o acontecido. Brialy, então, tem, com ela, uma relação carnal. E o filho de quem será? No final, ele lhe chama de infame, mas ela responde: “Je ne suis pas infame, je suis seulement une femme”. Simples e grandioso.

14 outubro 2007

PAULO AUTRAN (1922/2007)





Diz-se que o homem começou a filosofar pelo assombro, assombrado diante da vida, de seu mistério. Guardadas as devidas proporções, o meu fascínio pelo teatro vem de um assombro, e este assombro veio quando, com 13 anos, vi, no Rio de Janeiro, em 1963, no Teatro Carlos Gomes, Minha Bela Dama (My fair lady), com Paulo Autran, na pele do Professor Higgins, Bibi Ferreira (Elisa), Jaime Costa (o pai desta). Como escrevi, no post abaixo, o pessoal de teatro achava muito difícil montar, no Brasil, My fair lady (que estava há dez anos em cartaz na Broadway com Julie Andrews e Rex Harrisson - e ninguém podia ir a Nova York sem ver My fair lady). Mas havia um homem que se chamava Paulo Autran com a fleugma necessária para dar o tom exato ao personagem. Professor Higgins não é um personagem para qualquer magarefe metido a ator (como se está a ver hoje em dia em profusão). Há um baiano, Daniel Boaventura, que está, em São Paulo, a fazer Higgins. Boaventura tem physique de rôle, boa voz, mas nada posso dizer, pois não vi o espetáculo.

Paulo Autran trabalhou pouco em cinema. Mas seu grande papel foi sem dúvida em Terra em transe, de Glauber Rocha. Em cinema, era sempre meio teatral, empostado demais, mas Glauber soube lhe aproveitar a teatralidade, dando ao personagem a eloqüência requerida. Autran está magnífico neste que considero o melhor filme do cinema brasileiro, seguido de Deus e o diabo na terra do sol também do mesmo autor. Lembro de Autran no cinema em Uma pulga na balança, dos anos 50, de Luciano Salce, comédia simpática dirigida por um italiano que fora convidado por Franco Zampari para a consolidação da Vera Cruz. Em Mar corrente, cujo nome do diretor - estou batendo este post de memória - me esqueço agora, um filme de João Batista de Andrade sobre um militar velho que tem uma ficha corrida de torturas e barbaridades e, no fim da existência, faz uma espécie de revisão. Lembrei-me agora: O país dos tenentes. E Fogo e paixão, de uma dupla paulista, entre outros, evidentemente. Mas a sua glória cinematográfica, por assim dizer, foi em Terra em transe.

Descanse em paz, Professor Higgins!

Bergman e o silêncio de Deus


A introdução ao cinema acabou seu estoque escrito, isto quer dizer, estava a publicar o que já tinha no world devidamente escrevinhado. Claro que existem muitas outras questões importantes, mas fica um tanto quanto pesado escrever todo domingo textos inéditos. Que me perdoem aqueles que estavam a acompanhar a série nas suaves prestações em que era dada. Mas acabou os engradados e a cerveja, findo o estoque, precisa ser feita. Embora tenha a cevada e o equipamento de seu processamento, não tenho as condições de tempo para por mãos à obra. Mas, hoje, domingo, ainda repercute a morte do imenso ator que era Paulo Autran, que o acompanhei em quase todas as suas montagens desde os anos 60, quando o vi pelo primeira vez no proscênio no Teatro Carlos Gomes em Minha bela dama (My fair lady) antes de ver o filme com Audrey Hepburn. Não se pensava, na época, achar um ator capaz de fazer o Professor Higgins. Mas Autran, com sua fleugma, fez um personagem envolvente. Depois acompanhei a carreira do ator, pois suas montagens viajavam e aqui eram dadas no Teatro Castro Alves. Édipo Rei, de Sófocles, por exemplo, cuja direção esteve a cargo, se não me engano, de Flávio Rangel. Vi muitas. Não dá para ficar enumerando aqui. O burguês fidalgo, tradução de Millor Fernandes de um original do gênio Molière no qual Monsieur Jordan (Autran), tomando aulas de etiqueta, fica estupefato por saber que fala em prosa. Não vi duas peças pelas quais tenho grande admiração, ainda que as tenha lidas: Tartufo e O avarento, ambas de Molière. Mas hoje, domingo, e um domingo sem Paulo Autran (seu desempenho em Terra em transe, de Glauber Rocha, é antológico), vamos a Bergman, em artigo inédito neste blog, apesar de publicado no suplemento cultural de A Tarde.
Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, cidade universitária sueca, em 1918, vindo a morrer aos 89 anos, prestes a completar os mitológicos novent’anos. Se todos não podem escapar à Implacável (como é personificada em um de seus filmes mais celebrados: O sétimo selo), pode-se dizer que o grande cineasta cumpriu além da conta a sua missão, pois ofertou à humanidade uma das obras mais sólidas e densas de toda a história do cinema. Deixou um legado inestimável, que transcende o próprio cinema para ser considerado uma contribuição indiscutível e inquestionável ao patrimônio cultural da humanidade.

Filho de um severo e grave pastor luterano da corte real (que retratou em Fanny e Alexander), a influência de seu pai foi muito forte para a visão atormentada do mundo do jovem Bergman, cuja educação, rigorosa, carregava o fardo do sentimento do pecado e da culpa (duas constantes que iria desenvolver em sua rica filmografia). Ainda adolescente, saiu de Uppsala para se fixar em Estocolmo com o propósito de, na capital do país, estudar literatura e artes e, nestas, a arte dramática que logo o fascinou. Por este tempo atuou como diretor de uma companhia teatral universitária, a qual o pôs em caminho de sua vocação. Com a sua inscrição nos cursos de aperfeiçoamento do Master-Olofsgarden e do Medborgarhuset, a formação de Ingmar Bergman toma corpo, principalmente depois que experimentou montar um de seus autores preferidos: Sonata dos espectros, de August Strindberg.

Após passar por um período de treinamento como assistente de direção da Ópera Real de Estocolmo, ingressou no cinema em 1944, aos 26 anos, por causa de um amigo, Carl Andrés Dymling, que era administrador do Svenskfilindustri, para o qual escreveu o roteiro de Tortura (Hets), realizado por Alf Sjoberg. O sucesso de Hets fez com que o estúdio prestasse atenção a seu roteirista, dando-lhe a oportunidade de dirigir o seu primeiro filme, em 1945, Crise (Kris), adaptação de uma peça teatral de Leck Fischer.

O cinema de Ingmar Bergman é um cinema culto e refinado que engloba toda a tradição cultural nórdica, incluindo, aí, os filmes clássicos suecos, principalmente os de Victor Sjostrom -A carroça fantasma (Korkalen, 1920),deste, era visto toda noite de Ano Novo pelo realizador, chegando a afirmar que era a maior obra de todos os tempos, e os realizados pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer (A paixão de Joana D’Arc, Vampyr, A palavra). Mas além da tradição nórdica, Bergman incorporou ao seu cinema as experiências do expressionismo alemão (o início de Morangos silvestres tem influência do expressionismo e é uma homenagem a Korkalen, de Sjostrom), do surrealismo e do existencialismo sartriano, enraizando-os em seu próprio país. Sjostrom seria o principal ator em Morangos silvestres no papel centro, a do velho que faz uma revisão de sua vida.

Observando-se bem, em cada obra de Bergman se unem a problemática moral, a incomunicabilidade dos seres, a urgência da morte, o silêncio de Deus, a angústia de estar-no-mundo. A primeira fase de seu cinema, a fase juventude, que tem início em Crise e vai até meados do decurso dos cinqüenta, ainda comporta otimismo, apesar do amargor, e até mesmo a comédia embora não desprovida de um certo cinismo, como a notável Sorrisos de uma noite de amor (Somarnattens leende, 1955), cujos acentos shakespearianos são evidentes, assim como a influência, notória, de A regra do jogo (La règle du jeu, 1939), de Jean Renoir. Nesta fase inicial, no entanto, os filmes mais marcantes e que proporcionaram a seu autor o reconhecimento internacional foram Noites de circo (Gyclamas afton) – tortura e solidão, um libelo do artista contra a sociedade e sua ordem - e Mônica e o desejo (Sommarenmed Monika), ambos de 1953. O Bergman pessimista das últimas fases cede, aqui, lugar a um olhar simpático pela beleza da juventude, mas nunca, no entanto, deixando a sua visão ácida da existência. A tragédia da humilhação, talvez mais do que em Shakespeare, nunca esteve tão bem apresentada quanto em Noites de circo.

Se Deus colocou o homem no mundo, pensava Bergman, deixou-o à sua própria sorte, desamparado, triste, desesperado. A única solução possível para amainar o seu desespero está no amor, mas este é efêmero, passa, e a vida permanece sem sentido. A busca por uma metafísica da existência faz parte de seus temas recorrentes. A filmografia de Bergman, por seu um autor de filmes (em oposição ao cinema de gêneros) é como se fosse constituída por um macrofilme do qual as obras singulares se enquadram como variações sobre um mesmo tema, excetuando poucos filmes atípicos, a exemplo de O ovo da serpente (Das Schlangenei, 1979), que realizou na Alemanha quando saiu da Suécia motivado pelo rigor fiscal, obra política que mostra a gênese do nazismo, A flauta mágica (Die Zauberfloete, 1975), homenagem à ópera e a Mozart num filme que obedece as marcações teatrais, Para não falar de todas estas mulheres (For Att Inte Tala Om Alla Dessa Kvinnor, 1963), entre poucas.

O silêncio de Deus é uma constante em seus filmes. Traumatizado com o rigor de sua educação religiosa, nos filmes de Bergman estão sempre presentes os tormentos em torno do pecado e da culpa. Um silêncio que é sentido com a progressão de sua filmografia já na fase que tem início em O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), a fase da perplexidade, e que engloba Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), A fonte da donzela (Jungfrukallan, 1959), entre outros.

Entre todos os filmes de Bergman, a preferência do comentarista recai sobre Morangos silvestres e O silêncio (Tystnaden, 1962), ainda que fique difícil se escolher entre as obras de um cineasta que explodiu o conceito de obra-prima, considerando-se que realizou várias delas. Em Morangos silvestres, cuja preferência talvez seja ser o seu primeiro Bergman, visto no entusiasmo da adolescência e, nesta, a constatação de que o a arte do filme se encontra além do cinema de gênero, da qual fora acostumado a ver, e a constatação de que o cinema também podia ser um veículo do pensamento, de uma visão de mundo, de uma filosofia de vida. Um velho senhor, professor universitário, sai de sua cidade interiorana na Suécia para receber, na universidade de Estocolmo, o título de Doutor Honoris Causa. Apesar de todos os seus familiares preferirem ir de avião, o velho opta por ir de carro com a sua nora. No caminho, durante a viagem, ele faz uma revisão de sua vida, concluindo que somente a generosidade e o amor podem torná-la mais suportável.

A fase dos filmes de câmera tem início em Através do espelho (Sasom i em spegel, 1960), sendo bastante extensa, uma fase na qual Bergman se fecha cada vez mais, reduzindo ao essencial seus atores e o cenário. É nesta fase que se destacam O silêncio, Quando duas mulheres pecam (Persona, 1966), e A paixão de Ana (En passion, 1970), e Gritos e sussurros, filme síntese da obra bergmaniana (a imagem do post é de um momento de extrema beleza que lembra o Pietà).

A fase psicanalítica encontra o seu apogeu em Cenas de um casamento (Scener ur ett Aktenskap, 1974), seguido de Face a face (Ansiktet mot Ansiktet, 1976), Sonata do outono (Hortssonat, 1978) quando Bergman encontra Ingrid Bergman, também sueca como ele, a atriz famosa, hollywoodiana, que trabalha ao lado de Liv Ullman. Segundo a impressão do comentarista, e questão subjetiva, a fase psicanalítica é a mais fraca – ainda que, como um grande autor, fraca para Bergman não queira dizer sem importância.

Em 1982, Bergman anunciou sua aposentadoria do cinema, com a conclusão de Fanny e Alexander (Fanny och Alexander), mas não cumpriria a promessa, pois ainda faria alguns filmes. Seu último filme, Sarabanda, data de poucos anos atrás, e é uma releitura de Cenas de um casamento, com o encontro do mesmo casal já na velhice.

A morte de Bergman e de Antonioni sinaliza o fim de uma era, o fim de um tempo, o desaparecimento de uma cultura cinematográfica. Bergman e Antonioni reinventaram o cinema na década de 50 e de 60. Ajudaram a construir e a consolidar a linguagem cinematográfica. Depois deles nada surgiu de significativo no cinema contemporâneo, ainda que bons realizadores existam e façam filmes. Mas o grande cinema acabou!