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30 outubro 2010

Como o cinema "fala"


A maioria das pessoas que vai ao cinema recebe uma avalanche de imagens e não se encontra apta a identificá-la enquanto uma linguagem. O que interessa, apenas, é a história, a intriga, o desdobramento das situações - aquilo que se chama de "fábula". Assim, o espectador comum não percebe que o filme tem uma narrativa e é esta que, por assim dizer, "puxa" a fábula - isto é: a história. Por narrativa se entende a maneira pela qual o realizador cinematográfico manipula os elementos da linguagem fílmica. Ou seja: o conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o discurso cinematográfico.
O que precisa ficar bem entendido é o seguinte: o que merece crédito na obra cinematográfica não é o que se "diz" no filme, mas, sim, "como"o filme diz. E este se expressa por meio de sua linguagem específica, assim como na literatura o escritor se expressa por um conjunto de palavras que formam frases, orações e períodos. A expressão daquele que escreve se dá através da sintaxe. E o cinema também tem uma sintaxe que se cristaliza pelo relacionamento dos planos, das cenas, das seqüências. Assim, os elementos básicos da linguagem cinematográfica, os chamados elementos determinantes, podem ser assim considerados: a planificação (os diversos tipos de planos - geral, de conjunto, americano, médio, "close up"...), os movimentos de câmera ("travelling", panorâmica, na mão...) e a angulação ("plongée", "contre-plongée"...). E a montagem, existindo também os elementos componentes, mas não determinantes (fotografia, intérpretes, cenografia...).
É necessário, para uma melhor compreensão de um filme, aprender a reconhecer a linguagem do cinema e a captar qualquer mínima manifestação sua. Importa mais estar atento ao comportamento que a câmera adota em relação a determinado personagem do que seguir o seu comportamento na tela. É mais importante a verificação dos sinais efetuados pela câmera referente ao personagem do que tentar entender o que este está a fazer no desenvolvimento da história. A câmera dificilmente renuncia a uma opinião sua, mesmo quando parece estar silenciosa e perfeitamente alheada. Os modos que dispõe para "qualificar" a realidade são múltiplos e nem sempre imediatamente compreensíveis. Para se ter uma obra recente como ilustração: em "Inimigos públicos", de Michael Mann, o que importante mais é a "mise-en-scène", a "maneira" pela qual este realizador conta a sua história, o modo de apresentá-la por meio da sintaxe cinematográfica.
Outro exemplo está em Frenesi (Frenzy, 1972), penúltimo filme de Alfred Hitchcock, um cineasta inventor de fórmulas, um artista da 'mise-en-scène', cujos significados muitas vezes emergem do comportamento da câmera e, por extensão, do uso que faz da linguagem cinematográfica. Assim, em Frenzy, o movimento aparentemente vagabundo da câmera tem a função de indicar a atitude moral assumida pelo autor - no caso o mestre Hitch - relativamente à matéria tratada. Numa cena dessa obra exponencial, uma mulher (Anna Massey, a namorada do falso culpado Jon Finch) é assassinada em seu apartamento pelo hóspede (Barry Foster, o estrangulador que o espectador já conhece) ocasional que ela própria convidara confiando na sua extrema simpatia.
A câmera acompanha os dois quando se dirigem ao prédio onde ela mora - o público já pressente o pior, pois ciente de que o homem é um assassino perigoso, mas, entrando neste, a máquina de filmar abandona os dois "à sua própria sorte", pois começa a recuar lentamente, sai do edifício e se detém apenas quando o exterior deste fica enquadrado num plano geral. Todo o movimento se procede através de um movimento de câmera chamado "travelling", a princípio "para frente" e, quando do recuo, "para trás". O grito da pobre moça é abafado pelos ruídos do bairro popular onde se localiza uma feira muito barulhenta. Que outra coisa pretende dizer Hitchcock com este "travelling em derrière" se não que o Mal está entre nós e que opera das maneiras mais insuspeitas? Trata-se, na verdade, de um caso em que a "metafísica" do autor recorre, para se manifestar, à "física" de uma óbvia escolha estilística.
Hitchcock procura também, com seu humor negro, brincar com o espectador, que sabe ser um sado-masoquista e adoraria, no caso, presenciar o estrangulamento da mulher pelo perverso homicida. A significação, por conseguinte, se faz pela linguagem, pelo comportamento da câmera em relação ao personagem. Se neste exemplo, a significação decorre de um movimento de câmera, em outro, desse mesmo filme, ela advém pela montagem na seqüência na qual o estrangulador procura, dentre muitos sacos cheios de batatas, aquele no qual se encontra o cadáver da mulher que matara no apartamento a fim de lhe tirar um broche de suas mãos, as quais, no momento da agonia, agarram o objeto. A manipulação de Hitch é tal que o espectador "torce" para que o brutal homicida encontre, tal a sua aflição - e a aflição provocada pela montagem, pela 'mise-en-scène', o broche que o denunciaria como criminoso.
Em O Açougueiro (Le Boucher, 1969), de Claude Chabrol - um discípulo de Hitchcock e autor, com Eric Rohmer, de um livro importante sobre o diretor de Vertigo -,há uma cena na qual o protagonista - um carniceiro que se sabe torturado pela mania homicida - confessa o seu afeto à ignara professora da aldeia - ele é Jean Yanne, ela, Stéphane Audran, naquela época companheira do diretor. A declaração tem lugar num bosque onde os dois se deslocaram para colher cogumelos. A atmosfera seria das mais tranqüilizantes, não fora passar-se - durante o colóquio entre ambos - algo que não pode deixar de alarmar o espectador atento. E esse algo não se refere ao comportamento das personagens - que continuam a dialogar num cenário idílico - mas, precisamente, ao comportamento da câmera. Esta última, quase inadvertidamente, começa a deslocar-se lateralmente até o primeiro plano de um tronco de árvore se interpor entre ela - a câmera - e o par, escondendo o homem cujas palavras, contudo, continua-se a ouvir. A vista é desimpedida com a saída do tronco do campo da visão, mas pouco depois desaparece novamente quando o movimento se repete em sentido contrário, conduzindo a câmera à posição inicial. Eis um caso em que um simples travelling se encarrega de denunciar ao espectador a atitude reticente da personagem, 'encobrindo-a' da vista no momento em que 'se revela' ao ouvido. Denúncia essa dirigida ao público e não, infelizmente, à desventurada professora, que se manterá por um bom pedaço na ignorância das verdadeiras intenções do carniceiro degolador.

Moscou contra 007



Moscou contra 007, quando lançado (e, vejo no Imdb, que a sua estréia se deu primeiro no Brasil em 27 de abril de 1964) se transformou num fenômeno de bilheteria. Ninguém ficava indiferente à sua ação frenética, ao compasso da partitura eletrizante de John Barry, às tiradas humorísticas, ao dínamo propulsor de sua estrutura narrativa, envolvente.

Seus produtores Albert R. Broccoli e Harry Saltzman não tinham idéia, quando lançaram Dr. No, que o filme faria um sucesso sem precedentes capaz de lhes estimular uma continuação, que foi este From Russia with love. Mas não esperavam, mesmo cônscios do êxito deste, que o filme fosse além dos prognósticos. Como aconteceu e a série se desdobrou em outras películas a seguir. James Bond virou uma coqueluche.

Na época, a ideologia, porém, imperava entre os estudantes. E Bond, agente secreto à serviço de sua Majestade, não agradava à esquerda, que lhe fazia vista grossa. Recordo-me que, na sala de espera do cinema onde estava sendo exibido, deparei-me, de repente, com um militante que, ao me ver, desceu escada abaixo para se esconder no banheiro. O que iriam dizer seus companheiros quando tomassem conhecimento que ele estava a ver filme reacionário de James Bond?

Creio que o fascínio de James Bond supera e está acima das ideologias. Devo fazer uma confissão agostiniana: adoro os filmes de James Bond – pelo menos aqueles interpretados por Sean Connery e alguns com Roger Moore, ainda que tenha visto com muito prazer o penúltimo Cassino Royale, com Daniel Craig.

A apresentação, quando Bond, ereto, pistola na mão, surge na tela do lado direito e caminha a seu meio e, de repente, posta-se de frente e atira, caindo, na tela, uma tinta vermelha, é espetacular e emocionante, com a música tema de John Barry.

Em From Russia with love, inaugura-se o prólogo antes dos créditos. Steven Spielberg confessou, há algum tempo, que sua grande frustração era a de nunca ter feito um filme de James Bond. A séria Indiana Jones, guardadas as suas diferenças, é uma tentativa de dar ao filme o ritmo frenético das aventuras bondianas. Tanto é que Spielberg, assim como nos filmes do agente secreto, também estabelece um prólogo antes da apresentação dos créditos.

Em Moscou contra 007, o que se passa antes dos letreiros iniciais embalados com a música From Russia with love, é um fake. Bond (Sean Connery) persegue Robert Shaw (Red Grant), mas é derrotado com um fio de aço por este. Morto, diante de um castelo exuberante, as luzes se acendem com estrépito e vemos um homem tirar a máscara do derrotado que se pensa ser James Bond. Em seguida, a emergência dos créditos, dando já ao filme um impacto.

A Spectre planeja decodificar os segredos nucleares da União Soviética e, para isso, conta com a ajuda de uma mulher irascível e violenta (Lotte Lenya, que foi esposa de Kurt Weil, autor, com Bertold Brecht, de A ópera dos três vinténs) e seu fiel escudeiro Red Grant (Robert Shaw), homem treinado para matar e destituído de qualquer sentimento de humanidade ou compaixão. Precisa, no entanto, também, da ajuda de uma mulher (Daniela Bianchi), disciplinada soviética que trabalha na embaixada de seu país sediada na Turquia. Porque os ingleses também estão interessados nos segredos da União Soviética, a Spectre pensa contar com a colaboração involuntária deles, mas James Bond, convocado, entra em ação, desarma todo o esquema e, como é de praxe, leva a bela Daniela Bianchi para a sua alcova íntima.

A luta final, entre Lotte Lenya e Sean Connery é muito estimulante para aqueles que gostam do bom filme de ação (atualmente os filmes de ação, honradas as exceções de praxe, são rápidos e dentro da estética do videoclip, que resultam pobres e ruins).

François Truffaut escreveu, em seu extraordinário livro de entrevistas com Alfred Hitchcock, sobre a influência imensa de Intriga internacional (North by northwest, 1959) sobre todo o cinema do gênero thriller a partir dos anos 60, inclusive, disse ele, toda a série de James Bond, cuja estrutura narrativa é bastante influenciada pelo filme hitchcockiano. O que é verdadeiro.

Terence Young, o diretor, inspira-se em Intriga internacional. Vejam a luta no trem, por exemplo, entre Shaw e Connery. E mais: a textura da mise-en-scène advém da estrutura hitchcockiana de North by northwest.

Baseado em Ian Fleming, assim como todos Bonds-movies, Moscou contra 007é, segundo penso, o melhor de toda a série, porque um thriller bem ajustado sem as novidades que viriam adornar os filmes posteriores.

28 outubro 2010

A comédia como arte e vanguarda


Jerry Lewis, um dos maiores comediantes de toda a história do cinema, nasceu no dia 16 de março de 1926, estando já com 84 anos, uma idade para lá de provecta. Já publiquei o texto abaixo quando dos seus oitent’anos, mas o faço novamente, considerando que os selvagens não conhecem Lewis – e os selvagens não lêem o blog. Então a publicação somente faz sentido em função daqueles que possam compartilhar da sua admiração pelo comediante, que pode ser considerado um dos mais inventivos da arte da comédia. Pelo menos, ainda que rasgando o conceito, tem duas obras-primas: O otário (The patsy, 1964) e O professor aloprado (The nutty professor, 1963). Obras-primas, diga-se de passagem, do processo de criação cinematográfico em todos os tempos.

Enquanto nos dias atuais inexiste uma, por assim dizer, poética dogag, mas uma exacerbação das situações num speed escatológico ou na procura nerd do ridículo, sempre sem nenhuma inventividade cinematográfica, as comédias de tempos idos evocavam o riso pela imaginação criadora, quer do ponto de vista do ser, quer do ponto de vista da narrativa fílmica. Assim, faz-se necessário, aqui, relembrar com urgência urgentíssima a genialidade de Jerry Lewis, um dos maiores comediantes do cinema em todos os tempos, e de seu singular O Professor Aloprado (The Nutty Professor, 1963), obra-prima não só da comédia mas do cinema. Inclui-se nessa excelência criadora também O otário. Artista criador, revolucionário mesmo na concepção de umamise-en-scène originalíssima, Jerry Lewis é um poeta ou, como disse Jean-Luc Godard, “o mais progressista cineasta do cinema americano dos anos 60”. Versão (ou inversão?) de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, O Professor Aloprado conta como um pacato e modesto professor de química, feio, dentuço, desengonçado e mal ajambrado, consegue criar uma fórmula capaz de lhe impor a beleza e o charme. Apaixonado por uma de suas alunas (Stella Stevens), ele tenta conquistá-la quando toma a poção mágica e vira o charmoso Buddy Love. A fórmula, no entanto, tem duração limitada e, de repente, a criatura se transforma, aos poucos, no criador, principalmente nos momentos idílicos entre Buddy e Stella, mas ele, sabidamente, desaparece. Buddy Love provoca celeuma na escola, deixando, estupefatos e apaixonados, desde a secretária (a lewsiana Kathleen Freeman), as alunas e até o grave e circunspecto diretor. O clímax se dá no baile de formatura no momento em que Buddy, o convidado de honra, se metamorfoseia no desengonçado professor.

A inventividade de Jerry Lewis no plano da linguagem cinematográfica é imensa. Cenas brilhantes que se encontram em qualquer antologia que se preze da comediografia cinematográfica: (1) o processo de transformação do professor Kelp em Buddy Love com um extraordinário uso da cor poucas vezes observado na história da arte do filme; (2) a câmera subjetiva em lugar de Buddy finda a metamorfose (e ainda quando o espectador não sabe do resultado) e o espanto dos transeuntes que circulam na porta da boate; (3) a seqüência do ginásio traduz com absoluta perfeição a frustração essencial do personagem lewisiano diante da mitificação esportiva norteamericana; (4) a ambigüidade estampada no close up de Stella Stevens, quando Buddy inicia os tiques diccionais de seu criador; (5) o professor a olhar e imaginar Stella na porta da sala em várias mudanças de sua indumentária; (6) depois da noite perdida, e de ressaca, o professor pálido, na aula, ouvindo, desesperado, o ruído exagerado do giz riscando o quadro, a aluna que assoa o nariz, etc, numa conjugação funcional da imagem e do som; (7) toda a seqüência do baile de formatura, e, em especial, a cena da transformação da criatura no criador; entre muitas outras.
Lewis desmistifica o espetáculo, revelando seus códigos com uma coragem inusitada para a linguagem da época. O final é de uma terrível elegância, quando os principais atores, um a um, como se estivessem num palco de teatro, agradecem enquanto seus nomes são creditados na tela. O último é Jerry Lewis que, literalmente, quebra a lente da câmera. Este artista mal compreendido, que somente vem a receber o respeito crítico a partir do número especial que lhe dedica o sisudo Cahiers du Cinema, é o máximo representante da comicidade non sense do cinema americano posterior a 1945. Lewis parodia, com seus filmes dirigidos nos anos 60, e com singular acerto, as frustrações psicológicas do american way of life. Os seus instrumentos de análise (ou, se se quiser, o seu método) estão na utilização imaginativa da técnica do gag.

Gênio da comédia, cantor das orquestras de Jimmy Dorsey e Ted Florita, Jerry Lewis (Joseph Levitch, New Jersey, 1926) forma dupla com Dean Martin em 1946, atua em televisão e rádio, e, em pouquíssimo tempo, torna-se popular coast to coast em toda a América. A dupla mais burlesca do mundo do espetáculo logo é convidada para ingressar no cinema – e isto se faz através da Paramount. Entre 1949 e 1956, Lewis começa uma extraordinária carreira solo sob as ordens de um mestre da comédia: Frank Tashlin. Aliás, a sua separação de Dean Martin revela que o êxito da dupla radica fundamentalmente no talento cômico de Lewis. Artistas e modelos (1955), filme que assinala a sua estréia sob a direção de Tashlin, dá início a uma série de títulos que se constituem em agudas sátiras da sociedade norte americana expostas com um estilo refinado que se aproxima algumas vezes docartoon e das histórias em quadrinhos. É, porém, quando Jerry Lewis decide montar uma companhia independente (a Jerry Lewis Productions Inc.) que emerge o seu gênio. Desde O Mensageiro Trapalhão (The Bellboy,1960), obra de estréia, o indicativo da originalidade na arte de conceber a mise-en-scène está presente. Neste filme, não há progressão dramática mas uma sucessão desketchs, assim como em Mocinho encrenqueiro (The errand boy, 1961). O Terror das mulheres (The ladie´s man, 1961) deslancha a sua fase de obras-primas absolutas (se é possível a um artista ter mais de uma obra-prima!). Filme que representa na obra de seu autor um inequívoco manifesto sobre a concepção da mulher e uma irrefutável fulminação do matriarcado, O Terror das mulheres é delirantemente desmistificador (a partir mesmo do cenário, uma grande mansão na qual os segredos do décor são revelados ao público). Vem O professor Aloprado em 1963 e, em seguida, O Otário (The Patsy, 1964), outra obra magistral, onde aperfeiçoa, amadurece e enriquece definitivamente o seu estilo: a crueldade que consiste em fazer rir de si próprio; a magistral utilização do showburn; o gosto do espetáculo e a vontade em revelar ao espectador o décor, o desdobramento de sua personalidade autor-ator, a explosão em personagens múltiplas, etc. Lewis continua a filmar, tem uma crise nos anos 70, mas seus maiores filmes, os geniais, estão na década de 60. Mas o que dizer de O fofoqueiro (The big mother, 1967), filme absolutamente genial? Fica-se por aqui, no entanto, não por questão de espaço, que na internet, é infinito, mas por questões de pressa e contenção. Porque há, ainda, muito o que falar da genialidade lewsiana. Um dos maiores conhecedores da obra de Lewis é o ensaista Sérgio Augusto, que dei uma das mais elucidativas entrevistas dos últimos tempos sobre jornalismo cultural. Augusto acho que nos filmes de Lewis há, por assim dizer, uma espécie de psicanálise da vida americana.

P.S: Revi quase todos os filmes dirigidos por Jerry Lewis e, na minha opinião, a sua obra-primíssima é O Otário (The Patsy, 1964), que pode ser encontrado em excelente cópia em DVD. Impressionante a capacidade de Lewis em experimentar e inovar, subvertendo códigos estabelecidos.Não é à toa que Jean-Luc Godard o considerou um dos mais progressistas cineastas do cinema americano.Infelizmente, para a maioria, que o aprecia, ele é considerado, apenas, um excelente comediante, vinculado, inclusive, às sessões da tarde da Globo dos anos 80. A nova geração, pude pesquisar, não tem capacidade, infelizmente, de entender a genialidade lewsiana. Pena. Ledo e ivo engano. Um ensaio sobre a obra lewsiana de autoria de Chris Fujiwara pode ser lido no seguinte link:http://www.sensesofcinema.com/contents/directors/03/lewis.html

25 outubro 2010

Jean-Luc Godard


Nascido em 1930, é um realizador, hoje, com 80 anos, mas que continua na ativa, fazendo filmes, reclamando e polemizando, nunca deixando de causar controvérsias – como se pode observar em Elogio do amor, que não é uma unanimidade, pois há quem o adore e quem o deteste. Se, na última fase, por uma certa radicalidade com os procedimentos cinematográficos, causou umadiáspora incontornável entre os cinéfilos, não se pode negar, porém, que seus filmes dos anos 60 são significativos e divisores-de-água para o cinema contemporâneo. Detona a Nouvelle Vague com Acossado em 1959 juntamente com François Truffaut em Os Incompreendidos, entre outros, provocando um trauma duradouro no cinema francês.

Fez as primeiras letras na Suíça, mas logo se transfere para Paris a fim de estudar no tradicional Liceu Buffon e, em seguida, forma-se em Etnologia pela Sorbonne. Em inícios da década de 50, vem a conhecer, na Cinematheque Française, Henri Langlois, com quem faz logo amizade. Publica em La Gazzette du Cinema suas primeiras críticas, que despertam curiosidade em cinéfilos aguerridos como François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette, André Bazin, que o convidam para ser crítico permanente da revista Cahiers du Cinema. Resolvido a conhecer os Estados Unidos, abandona suas atividades críticas e, na volta, emprega-se como operário na construção da represa da Grande-Dixence, na Suíça, apesar de diplomado com nível superior. Quer, na verdade, “sentir-se operário” e, findo o trabalho, o que ganha, emprega na produção de seu primeiro exercício fílmico: o documentário Operation Béton(1954). Volta para a revista e, desta vez, a praxis conduz o crítico, pois, em Genebra, faz, em 16mm, Une femme coquette.
No campo curtametragista realiza, ainda, Tous les garçons s’apellent Patrick(1957), Charlotte e son lules, em 1958, e, neste mesmo ano, Une histoire d’eau, em co-direção com François Truffaut. A sorte grande de Jean-Luc Godard é ter encontrado o produtor Georges Beauregard, que, interessado em bancar filmes para a renovação do cinema francês, aposta no cineasta e produz, para ele dirigir, Acossado (A bout de souffle), com argumento escrito por Truffaut, obra marcante e que inaugura a Nouvelle Vague. A seguir, já em 1960, O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat), filme sobre a trágica aventura – e uma tanto ridícula, convenha-se – de um agente secreto ocasional em luta contra as forças revolucionárias argelinas. Neste filme, já afirma precocemente seu caráter de autor, curiosa síntese de cinéfilo e cineasta.

No ano seguinte, um de seus melhores trabalhos, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme), 1961, comédia ácida sobre a nostalgia do filmusical americano com alusão a Vincente Minnelli, entre outros, e com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina. Este filme merece ser destacado pela sua inusitada importância na época de seu aparecimento e pelo elogio ao cinema musical clássico realizado em Hollywood. A seguir, em 1962, vem Viver a Vida (Vivre sa vie), apólogo sobre uma mulher - Anna Karina, como de hábito – que vende seu corpo para, paradoxalmente, conservar a sua alma, dotado de profunda humanidade e de uma emoção insólita e pura.
A construção polifônica destes filmes, baseada numa tensão dialética entre a realidade e a fantasia, na qual se sintetizam vários planos superpostos – um relato fictício, um elemento autobiográfico, uma reflexão sobre a natureza do cinema, um tratamento documental, etc – dá origem ao que se pode considerar um novo gênero cinematográfico: o ensaio filmado. Este caráter dialético se faz mais patente nos sketches que realiza para vários filmes com um propósito claramente experimental: A preguiça, de Os Sete Pecados Capitais (Les sept péches capitaux, 1961), Rogopag (1962), Montparnasse-Levallois, episódio deParis visto por... (Paris vu par..., 1964).

Segue Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963), outro apólogo, mas, desta vez, feroz e sarcástico, num filme sobre a guerra, baseado numa comédia de Beniamino Joppolo, que adapta de Roberto Rossellini, A escritura de Godard se transforma, adquirindo mais virulência, com uma ressonância trágica e desencantada cada vez maior. Como prova, o admirável O Desprezo (Le Mépris, 1963), harmoniosa síntese de classicismo e modernidade. Reflexão sobre o cinema, este filme utiliza, com grande propriedade artística, os recursos da tela larga, do cinemascope, sendo indispensável ser visto e contemplado na sala de exibição em celulóide. Em alguns momentos, os corpos dos atores se transmudam em esculturas paralelas aos volumes arquitetônicos. Assim como a belíssima Brigitte Bardot, cujo corpo adquire, neste filme, um “teor escultural”. Beleza enquanto explicação da beleza, arte enquanto explicação da arte, cinema enquanto explicação do cinema.
A partir de 1963, a carreira de Jean-Luc Godard adquire uma atividade intensa, um ritmo febril, rodando dois ou três filmes por ano e saudado pela platéia dos ‘cinemas de arte e ensaio’ como um revolucionário, um “desconstrutor” da linguagem, um entusiasta do cinema enquanto ensaio fílmico. Uma geração chega a se formar, no Rio de Janeiro, para discutir Godard, constituída de jovens cariocas que, após as sessões de seus filmes, sentam-se nos barzinhos da rua Paissandú – a sala exibidora tem este nome – para discutir o último travelling do cineasta. A godarmania atinge a juventude nos tresloucados anos 60 e se espraia pelas principais centros intelectuais do planeta.Cada novo filme de Jean-Luc Godard se constitui numa ambiciosa experiência em terrenos tão diversos como o poema romântico (Bande à Part, 1964) – inédito no Brasil, o ensaio psicológico (Uma Mulher Casada/Une Femme Mariée, 1964), e a ficção-científica (Alphaville, 1965).

Por sua vez, O Demônio das Onze Horas (Pierrot, Le Fou, 1965) se estabelece como uma suma antológica de toda a sua obra, o ponto limite de uma série de experiências, num intento de recapitulação que parece anunciar o começo de uma nova etapa. Autor existencialista por excelência, sua obra se caracteriza por uma unidade profunda, ainda que a aparente disparidade de seus elementos. Seus filmes singulares – pelo menos os da primeira fase – podem ser integrados numa espécie de macrofilme, considerando-se a coerência de seus temas, seus personagens e seu estilo – e, como dizia Buffon, o estilo é o homem!

Cineasta do instante, seus filmes resultam da justaposição de uma série de ‘momentos de verdade’ privilegiados, obtidos por meio de uma técnica de improvisação que tende a confundir os atores com seus personagens. A linguagem destes deixa de ser meio de comunicação para se converter em elemento expressivo – vide Belmondo em Pierrot, Le Fou a se dirigir aos espectadores quando uma estupefata Anna Karina lhe pergunta com quem está falando enquanto dirige um carro veloz pelo interior da França.A síntese godardiana se encontra na collage dialética a meio caminho entre a montagem de atrações de Eisenstein e a estética da pop art. Suas obras se incluem entre aquelas de estrutura narrativa complexa e de fragmentação, com a união dos elementos mais díspares: rupturas de tom de comédia a tragédia e vice-versa, sempre na busca desesperada da representação de um equilíbrio instável entre o personagem e o mundo circundante.

A revolução godardiana determina uma interferência na sintaxe cinematográfica. O realizador de ‘Acossado’, após conhecer profundamente o cinema clássico, principalmente o americano do ‘grande segredo’, pôde, então, efetuar uma evolução nesta sintaxe através de modificações nos procedimentos cinematográficos, a exemplo da estruturação fragmentada de seus filmes com a inclusão de material de origem diversa da icônica, como livros abertos, atenção à palavra que está sendo dita ou lida, a montagem sincopada que não obedece a uma continuidade narrativa, etc. Na verdade, Godard expande a linguagem, possibilitando-lhe um maior campo de expressão como é exemplo o ensaio fílmico. A sua influência é devastadora, notadamente nos cineastas adeptos de uma “nova vaga”. Note-se que A Ilha das Flores, de Jorge Furtado, tem muito do Godard de Duas Ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux Ou Trois Choses Que Je Sais D’elle).

Poder-se-ia dizer que a trajetória de Jean-Luc Godard se divide em três fases, cabendo, num critério mais rigoroso, até a inclusão de uma quarta fase. A primeira é aquela que começa vibrando com Acossado – que este comentarista considera ainda a sua obra-prima – e termina, mais ou menos, em A Chinesa(1968) ou Week-end à Francesa. Maio de 1968 é um tempo de mudança, de rupturas e o cineasta considera que nada mais tem a dizer com a ficção, pois o cinema, para ele, deve partir para uma “ação armada”. A opção preferencial determina-lhe um engajamento num “cinema coletivo” sem concessões que denomina de “Grupo Dziga Vertov”, cujos filmes devem incitar à revolução do homem, presa das armadilhas do destino e das vicissitudes de uma sociedade injusta.

A característica apontada de um cinema de collage pode ser ainda melhor observada nos filmes mais recentes do cineasta. Jean-Luc Godard antecipa a pós-modernidade com seus ensaios fílmicos que permitem à linguagem cinematográfica uma força expressiva que vai além do mero suporte para o desenvolvimento fabulístico. Neste particular, o cinema de Jean-Luc Godard é um cinema avant la lettre.