O Cineclube Glauber Rocha - de quinze em quinze dias no Espaço Itaú )Praça Castro Alves) está resgatando o prazer de se ir ao cinema ver grandes clássicos. Dia 3 de junho, às 20 horas ( e a preços módicos) - anotem aí, cinéfilos, Hirosima, mon amour, do grande Alain Resnais
Entre os grandes autores de cinema de todos os tempos (Chaplin, Welles, Fellini, Dreyer, Bergman, tantos!), um dos meus preferidos é Alain Resnais, inventor de fórmulas, realizador do específico cinematográfico, e não poderia, neste 2009, deixar de registrar, aqui, os 50 anos de uma obra-prima, de um filme “divisor-de-água”, que traumatizou durante a linguagem cinematográfica então estabelecida. E este filme é “Hiroshima, mon amour”, que nos introduz, pela primeira vez, como notou a ensaísta Nathalie Weinstoc, no procedimento dialético da consciência, no processo da subjetividade. Em imagens de cinzas, noite e luz.
A visão de “Hiroshima, mon amour” ainda adolescente me fascinou e se constituiu num filme “propulsor” para o meu entendimento do cinema como um veículo de expressão artística. Não o vi, porém, em seu lançamento, mas quatro anos depois numa sessão matinal no cine Guarany, de Salvador, quando, aos sábados, acontecia as projeções do Clube de Cinema da Bahia patrocinadas por Walter da Silveira.
Nestas sessões, que eram bem frequentadas (a sala ficava cheia) por intelectuais, universitários, amantes do cinema em geral, havia também a presença de muitos alunos do Colégio Estadual da Bahia (Central), centro de educação emblemático da soterópolis (onde Glauber Rocha e amigos instalaram “As Jogralescas”). Lembro-me que, quando da exibição de “Hiroshima, mon amour”, uma turma deste estabelecimento, pela estranheza da composição estética do filme, começou a fazer algazarra. Walter da Silveira mandou interromper a projeção e fez um discurso para uma platéia estupefata. E deu continuidade a exibição. O público restou em profundo silêncio.
A descrição sumária de sua “história” nem de longe pode dar a idéia da obra cinematográfica. Esta cabe perfeitamente na clássica definição de André Bazin: “Quanto mais fácil se expõe pela narrativa oral a história de um filme, menos cinematográfico ele é, enquanto que quanto mais difícil é explicá-la oralmente, mais cinematográfico ele é.” É o caso desta obra-prima de Alain Resnais, que permanece 50 anos depois com uma atualidade poética impressionante.
“Hiroshima, mon amour” narra algumas horas na vida de um casal em Hiroshima, no mês de agosto de 1957. Ela (Emmanuelle Riva), uma atriz francesa, veio atuar num filme internacional sobre a paz. Ele (Eiji Okada), japonês, arquiteto e casado. Os dois se amam livremente num quarto de hotel. A lembrança dos “dez mil sóis de Hiroshima” os atormenta. Esta cidade, que foi palco de extremo horror, agora é feita na medida do amor.
Quando a bomba explodiu em Hiroshima, ela se encontrava em Nevers, na França, onde viveu um amor de juventude que a perturbou profundamente. Amante de um soldado alemão, que foi morto durante a Libertação, ela teve a cabeça raspada pela multidão (Claude Lelouch copia esta cena em “Retratos da vida”/”Les uns et les autres”) e foi trancafiada num porão por seus pais, mortos de vergonha. A lembrança desse drama reflui à sua memória. O japonês ouve-a.
E por falar em Walter da Silveira, o grande ensaísta e pensador baiano do cinema, não resisto a transcrever aqui um trecho de sua brilhante análise sobre esta obra-prima publicada em “Fronteiras do cinema”, reunião de ensaios antológicos do mestre. Este se chama “Da oralidade em Alain Resnais”:
“O tem e o estilo se formam de palavras ou de imagens, equivalendo-as, sobrepondo-as, diminuindo-as, de acordo com as relatividades do momento. Mas, há um fator artístico em “Hiroshima, mon amour” que não vem das palavras nem das imagens, porém assume, em alguns instantes, um papel da mesma grandeza: o silêncio. Não o silêncio no velho sentido cinematográfico, superfície de linguagem. O silêncio, aqui, tem um significado mais profundo. Age como um continuador da palavra. É uma expressão narrativa. Interfere como som, embora seja a sua negação. Em poesia, freqüentemente surge como um problema de ritmo. Em “Hiroshima, mon amour”, aparece como uma questão de fundo, de essência dramática. Todas as cenas de Nevers são mudas, não há uma voz, uma palavra, um som ¿ apenas a música de Giovanni Fusco acompanha as imagens. Se Nevers era a evocação, a vida reconstituída, a vida contada, em Nevers nada poderia se escutar, somente poderia se ver, graças à narrativa de Emmanuelle Riva, a adolescência sofrida daquela atriz, o seu primeiro amor, os primeiros encantamentos e os primeiros martírios na cidade distante.”
Mais Walter: “A voz era a do presente, teria trinta e cinco anos. A figura era do passado, teria vinte anos. O fluxo da vida, esvaindo-se em carne, mas reconstituindo-se em espírito como em “Van Gogh”. Da face gasta de Emmanuelle Riva a visão se transpõe, mediante um corte rápido, num recuo introspectivo, para a face jovem da namorada do soldado alemão: dois tempos da mesma mulher. A vida morta e a vida em vivência em um cruzamento contínuo. O esquecimento se fazendo lembrança. A lembrança se dissolvendo em esquecimento. Num brevíssimo instante, clarão de memória riscando um segundo de olhar, a mão repousada do amante na cama é substituída pela mão morta do amante alemão na terra. Continuamente, pela magia cinematográfica, ao contrário da literatura, e em contraste com a pintura que modernamente tenta partir do sensível para o abstrato, a abstração se transforma em figura, a alma torna-se matéria. Cada silencia de Nevers corresponde à recuperação do passado perdido. Essa recuperação possui um rosto, como os retratos antigos. Diz-se um nome, de um pai ou de um amado, e a sombra move-se no tempo. Mas exatamente por sombra, porque unicamente lembrança, toda a fala desaparece. Em certos filmes até banais, esse sistema narrativo já fora empregado. Na fita de Alain Resnais, tem um ar de descoberta, de experiência fundamental.. Além de justapostos à constância das palavras, os silêncios imaginários constroem, sob um aspecto totalmente novo, aquele contraponto sonoro que Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov reclamavam como a essência do cinema.”