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31 dezembro 2008

Brigitte Bardot não comenta o que digo abaixo


Último dia do ano. O papel da folhinha na parede já está a querer se despegar. Mas não há nada a seguir, porque, com ele, a folhinha termina a sua missão, que foi a de informar todos os dias do ano. Finda a enquete sobre os diretores italianos, começo logo outra, desta vez sobre as divas da mesma cinematografia, deusas maravilhosas que nos proporcionaram êxtase e prazer, prazer e êxtase - não necessariamente nessa ordem. Mas a foto que deixo aqui é de Brigitte Bardot, minha musa, que, não tendo tido a oportunidade de tê-la, fiquei frustrado a vida inteira. Mas a vida é assim mesmo. Alguns podem tudo, outros não podem nada. A felicidade não existe e o homem a busca incessantemente. Parece que o móvel da existência é esta busca utópica pela felicidade.
O ano de 2009 não vai ser fácil. A crise apenas está a mostrar a ponta do iceberg. Segundo um desses cientistas políticos que sempre aparecem na televisão, o brasileiro vai sofrer em 2009. Logo nos primeiros meses do ano vindouro, desemprego em massa, aumentos vertiginosos, entre outras maldades do sistema perverso de economia de mercado não devidamente regulado pelo estado. O neo-liberalismo mostrou ter sido uma desgraça, pois o mercado entrou num ritmo carnavalesco, num vale-tudo completo, farreou-se com o dinheiro alheio, e, em consequência (não existe, felizmente, mais o trema), surgiram as temíveis bolhas que estouraram. Mas ainda existe gente que não sabe da crise, que anda ansiosa pelos shoppings para consumir, consumir, consumir o próprio ego e a própria mente.
Mas o que tem a bela Brigitte Bardot com tudo isso? Nada, absolutamente nada. Encontra-se a cuidar de seus animais em seu recanto, velha, enrugada, mostrando, no rosto, as marcas do tempo, que é implacável. Nunca fez plástica, nunca quis ficar esticada. Por mais que a mulher faça plástica, seu interior, e falo do interior físico, entra, a partir dos 40 (sim, já a partir dos 40) em processo de degenerescência. Hoje, por outro lado, e mudando de alho para bugalho, é dia de se tomar umas e outras. Umas para esquecer as desgraças acontecidas (e comigo aconteceram muitas). Outras para sonhar com perspectivas risonhas no embalo etílico. Hoje não vou ao cinema nem vou ver filme em DVD ou televisão a cabo. Vou beber o que tenho direito. E, se possível, TODAS.

30 dezembro 2008

Federico Fellini é o grande vencedor

A maioria dos 60 votantes da enquete sobre alguns dos mais importantes realizadores do cinema italiano votou em Federico Fellini (23, 38%). É realmente um artista singular, um cineasta de estilo marcante que se pode reconhecê-lo de imediato. Alguns de seus filmes são antológicos e estão registrados como obras permanentes da arte no século XX, a exemplo de Oito e meio (Otto e mezzo, 1963), A doce vida (La dolce vita, 1960), As noites de Cabíria (La notti di Cabiria, 1957), entre outros tantos. Mas acontece que nos anos 50 e 60 o cinema italiano estava cheio de realizadores geniais e que muito contribuíram para a evolução da linguagem cinematográfica. Roberto Rossellini (6, 10%), por exemplo, é um cineasta referencial, que descobriu uma nova maneira de registrar a representação da realidade no cinema através do neo-realismo com o qual ele pretendeu "abraçar o mundo". Alguns de seus filmes são obras de fundamental importância, como Roma, cidade aberta (Roma, città aperta, 1945), Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1953), etc. Houve uma época em que Rossellini era apontado como mestre e influenciador do novo cinema mundial. Parece que, nestes conturbados tempos pós-modernos, o diretor de Viagem à Itália ficou meio esquecido. E o que dizer do imenso Michelangelo Antonioni (segundo lugar, 12, 20%)? Rossellini e Antonioni foram os responsáveis pela desdramatização na estrutura narrativa dos filmes e pela instauração estética na qual a tônica estava no domínio da anti-narrativa. Em Viagem à Itália já se podia observar a ausência de um roteiro e na trilogia de Antonioni, A aventura (L'avventura, 1959), A noite (La notti, 1960), e O eclipse (L'eclisse, 1962), não seria exagero afirmar, nasce uma nova forma de abordar o mundo. Se fosse elaborar uma lista dos melhores filmes que já vi, não hesitaria em colocar A Aventura entre os eleitos. E Visconti (7, 11%), esteta, marxista, operístico, que cineasta deslumbrante! Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli, 1960) é um filme que muito contribui para a minha formação cinematográfica e o tenho em especial consideração, assim como outros desse regista: O leopardo, Vagas estrelas da Ursa, Noites brancas...

Havia, portanto, uma quantidade tão grande de realizadores de gênio que os chamados do segundo escalão podem ser considerados também cineastas de talento inquestionável, a exemplo de Dino Risi cujo Aquele que sabe viver (Il sorpasso, 1962), com Jean-Louis Trintgnant e Vittorio Gassman, marcou toda uma geração, sem esquecer o seu fascinante Férias à italiana. O cinema italiano atual praticamente desapareceu diante daquele efervescente de décadas atrás no qual pontificavam nomes expressivos como Francesco Masselli, Marco Belocchio (De punhos cerrados), Florestano Vancini (Enquanto durou o nosso amor), Pietro Germi, Ermanno Olmi, Valerio Zurlini (Dois destinos, A primeira noite de tranquilidade...), Carlo Lizzani, Damiano Damianni, o grande Francesco Rosi (O bandido Giuiliano é uma obra-prima sem tirar nem por e seu nome deveria ter constado da enquete), Luigi Comencini, Antonio Pietrangeli, Ugo Gregoretti. E vou parar por aqui para não omitir algum outro nome poderoso.
Mas esqueci de um diretor que não poderia ter esquecido: Mario Monicelli, como bem observou Romero Azevedo nos comentários. Ainda que não esteja no mesmo patamar de Fellini, Visconti, Antonioni, Monicelli é da genial equipe do segundo time do cinema italiano esplendoroso dos anos 50 e 60. Nunca posso esquecer de Os companheiros (I compagni), A grande guerra, O incrível exército de Brancaleone, Pais e filhos, entre tantos. Acabei de ver, agora, um documentário muito bom sobre a figura ímpar de Marcello Mastroianni realizado por Annarosa Morri e Mario Canale, Marcello, uma vida doce (Marcello, una vita dolce, 2006) no Telecine Cult. E há um depoimento de Mario Monicelli, que destaca a participação deste grande ator em Os companheiros, entre outros. Há um Monicelli que se pode classificar como uma excelente comédia tipicamente italiana e irressistível: Os eternos desconhecidos (I soliti ignoti, 1958), uma espécie assim de sátira a Riffifi chez les hommes, de Jules Dassin, que fez imenso sucesso na época. Vendo o filme sobre Mastroianni, lembrei-me de outro diretor italiano, Elio Petri, com o qual trabalhou, ao lado de Ursulla Andress, em A décima vítima. Mas Petri deve ser lembrado mais por A classe operária vai ao paraíso e Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, ambos com Gian Maria Volonté, além de Os dias são contados. Há também Lina Wertemuller, que fez, pelo menos, um belo filme: Pasqualino Sete belezas. E outros, e outros, e outros. E Marco Ferreri? Bem, neste ritmo o post não acaba mais.

28 dezembro 2008

Cascalho para se "comer água"

Desenho do grande artista Ângelo Roberto que retrata o cineasta baiano Tuna Espinheira no garimpo. Não encontrou nenhuma pedra preciosa, mas do fundo das águas, veio-lhe, de presente, uma garrafa de cachaça típica da região. À César o que é de César!

27 dezembro 2008

FELIZ ANO NOVO!



Amanhã não vai ao 'ar' o capítulo do seriado do cinema baiano por motivo de viagem do bloguista/blogueiro, que se encontra em profunda ressaca de final de ano.

26 dezembro 2008

2008: ano agônico para o filme "Revoada"

Em primeiro lugar, mandar, daqui deste blog, um grande abraço pela passagem de mais um aniversário, hoje, sexta, 26 de setembro, a Tuna Espinheira, realizador baiano que teve, neste 2008, lançado, em boa sala do Multiplex, o seu Cascalho, baseado em romance homônimo de Herbeto Salles. Quantas primaveras? Em segundo, publicar o seu artigo de indignação sobre o que padeceu José Umberto com a retalhação de Revoada, seu segundo longa que, retirado das mãos de seu montador original, Severino Dadá, foi completamente desfigurado pelos produtores, resultando, com isso, num filme-frankenstein. O affair Revoada, com honrosas exceções de poucos cineastas, entre eles o próprio Tuna, Kabá, e Edgard Navarro, recebeu da cooperativa chamada Cinema Baiano um silêncio tumular. Num momento em que a criação cinematográfica é vítima de ato autoritário (podendo, inclusive, atingir outros filmes baianos), onde se pode ouvir a voz rouca da classe cinematográfica, que se cala, sempre também atenta a seus interesses imediatistas e particulares? Há uma conduta pusilânime por parte da Associação Baiana de Cinema e Vídeo (ABCV) no imbroglio. Por que não se manifestou? Bem, aqui vai a indiganação de um bravo cineasta, que, como sempre mostrou aqui e alhures, não tem medo e não possui papas na língua.


"O roteiro cinematográfico é uma peça técnica, mesmo urdido em nível de excelência, será sempre um produto sem vida própria. Andar por aí com este tipo de escrito debaixo do braço, via de regra, metamorfoseia o cineasta em uma barata tonta, Zumbi, alma penada.

É que, esta brasa viva, o texto maldito, precisa ser filmado, para então, sair da condição de uma espécie de assombração.

Não é nada incomum a convivência incômoda, do autor com o roteiro por anos, décadas, ou mesmo a vida inteira e mais cem anos... labutando pelos meios necessários de produção para germiná-lo em filme.

No caso especifico do chamado “filme de autor”, o norte mesmo, é apostar na loteria da vida e dos concursos bissextos de roteiros.

Zé Umberto foi por este caminho, fez sua “fezinha” numa Licitação do MINC e foi sorteado com uma verba carimbada a prover a vida seca de uma obra de baixo orçamento. Exorcizado daquele peso da condição de Zumbi. Como não poderia deixar de ser, ecoaram-se muitos gritos de Aleluia!.. Despachou-se o Exu, foram rendidas as reverencias devidas à Corte Celeste de plantão... Com bom humor e alma lavada. Roda-se o filme: REVOADA, sob a Direção de José Umberto...

Até aí, pelo sim e pelo não, as coisas andaram nos trilhos. Foram captadas as imagens necessárias, recolhido o satisfatório material bruto a ser lapidado na mesa de montagem.

No Rio de Janeiro, o Montador Severino Dada, sob a supervisão de Zé Umberto, segue trabalhando os cortes e a edição. Severino já havia estado na Bahia, percorridos a locações, ajudado na preparação do Plano de Filmagem, portanto bem sincronizado,lépido e fagueiro, com o material.

A mesa de montagem é o espaço sagrado da urdidura do filme, é o momento crucial, quando a obra, em estado bruto, passa a ser lapidada, tomar forma, adquirir o sopro de vida, sob a batuta imprescindível, inexorável, do seu criador: O Roteirista/Diretor.

Eis que, uma arapuca do destino, acomete o principal autor do filme com uma doença grave, carecendo de tratamento delicado e urgente. Aí começaria o período tristemente agônico do filme. Preposto da Produção, em decisão sinistra, à revelia do Diretor, hospitalizado, arranca o material de montagem das mãos do montador escolhido e o repassa para um outro, paulistano da gema, com grande experiência em colar planos e seqüências na modalidade cinematográfica que, um dia foi chamada de “papai/mamãe” (definição atribuída a Glauber), sem nenhuma familiaridade com a idéia do filme.

Foi trombeteado, aos quatro ventos que o filme está pronto. Com cópias, cartazes, etc. O caso está na Justiça, portanto ao Deus dará do andar de cágado. Ou como diria Vinicius: “Quem dos amigos, tão amigo, para ficar no caixão comigo?”

Resta enfatizar que, o filme em questão foi financiado com dinheiro público, resultado de um concurso de roteiros do MINC, o ganhador foi o “script” de autoria de José Umberto, dono do direito autoral da obra premiada.

Cassaram o Diretor, deixando-o à margem da montagem e edição final do filme. Com certeza, fizeram um outro filme, provavelmente do tipo: “filme do Crioulo doido”, quem sabe!? ( O saudoso “Lalau”vai saber disto). Vade retro... Triste Bahia!"
(
tunaespinheira@terra.com.br ) Tuna Espinheira

25 dezembro 2008

Robert Mulligan: evocação e sentimento


Realizador evocativo, cultor das memórias de tempos idos em alguns filmes, dotado de pleno domínio formal de seu meio de expressão, Robert Mulligan (1925/2008) foi-se embora neste mês de dezembro. O que resta, findo Mulligan, da tradição do heróico cinema americano, o cinema do grande segredo na expressão feliz de François Truffaut? Apesar de não ter alcançado a glória de seus ilustres colegas (Billy Wilder, Hitchcock, George Stevens, Cukor...), poder-se-ia considerá-lo um cineasta bem acima da média e que não foi devidamente valorizado, fora alguns filmes ocasionais mais louvados por outros motivos que pela mise-en-scène (como são os casos de O sol é para todos, que deu o Oscar a Gregory Peck, e Houve uma vez um verão).

O blogueiro (ou blogüista), por coincidência, começou a sua trajetória de cinéfilo na mesma época em que Robert Mulligan deu início a seu percurso como realizador cinematográfico, ou seja, em 1957. E, portanto, acompanhou toda a sua filmografia, ainda que os primeiros filmes tenham sido vistos nas constantes reprises que existiam no cinema do passado (a televisão matou a reprise dos filmes). A começar do princípio, não se podia prognosticar o futuro Mulligan em Vencendo o medo (Fear strikes out, 57), uma tentativa biográfica do jogador de beisebol Jim Piersall, interpretado por Anthony Perkins, que se ajusta ao papel, pois o biografado era homem extremamente neurótico, cheio de tiques, manias, e o filme desvenda uma explicação meio freudiana e mostra a causa do desequilíbrio do jogador na infância difícil, dominada por pai severo e rude (Karl Malden). Ainda no cast: Norman Moore.

Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.

A lembrança que se tem de O grande impostor (The great impostor, 1961) é muito boa, ainda que memória de adolescente que nunca mais teve a oportunidade de revê-lo. A vida de um homem (Tony Curtis) que, durante a sua existência, adotou perto de vinte identidades diferentes, saindo ileso de todas as confusões. Além de Curtis, Edmond O'Brien, Karl Malden, e música do grande maestro Henry Mancini. Neste mesmo ano, 61, uma sophisticated comedy que causou enorme sucesso de bilheteria, mas que, crê-se, vista hoje, não se sustentaria: Quando setembro vier (Come september), com Rock Hudson (o queridinho das comédias românticas), Gina Lollobrigida (a italiana sensual), Walter Slezak, Sandra Dee, Bobby Darin. Rock é um milionário que descobre que seu caseiro transformou sua belíssima villa na Itália em hotel. Mas ele se apaixona por uma das hóspedes, a sensual Lollobrigida. As canções foram compostas (e cantadas) por Bobby Darin. Recorda-se que o primeiro plano do filme, em cinemascope, colorido, mostra um imenso avião que, abrindo seu compartimento de bagagens, faz sair, dele, um Rolls Royce de prata. O script é perfumaria de Stanley Shapiro.

Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehicle para Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.

O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.

Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neo-realista em O homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.

Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.

O touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue: À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.

Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.

Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.

Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em O caminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel withou a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.

E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.

Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.

Encerra-se esta breve homenagem a Robert Mulligan com as palavras de Carlos Reichenbach, que fecha com chave de ouro a trajetória desse importante realizador, destacando, o Comodoro, a beleza de um filme como The nickel ride.

“É curioso notar que outros cineastas da mesma geração, como Robert Mulligan, por exemplo, que não foram tão incensados pela crítica no começo, acabaram realizando uma obra menos pretensiosa e muito mais coerente. No caso de Mulligan, o sucesso popular e o prestígio em Hollywood, só veio a acontecer no meio da carreira, com Houve uma vez no verão (Summer Of 42) e A inocente face do terror (The other), ambos de 72, embora ele já tivesse realizado filmes mais notáveis como Fear strikes out (Vencendo o medo - 57), To kill a mockingbird (O Sol é para todos - 63), Baby, the rain must fall (título deslumbrante, burramente "traduzido" como O gênio do mal - 64), Inside daisy clover (À Procura de um destino - 66), Up the down staircase (Subindo por onde se desce - 67) e The pursuit of happiness (uma ode radical ao inconformismo, lançada no Brasil com o título de O caminho da felicidade - 70). É verdade que, após o sucesso com os dois filmes citados acima e o fim de sua parceria com o produtor Alan Pakula - que também se tornou diretor de cinema, mas num estilo mais cool e menos arrojado que Mulligan - sua obra caiu em desgraça. Embora tenha produzido e dirigido o filme mais anticomercial de Hollywood, The nickel ride (Jogos de azar - 74) - um drama chumbo grosso e depressivo sobre viciados em jogo, fotografado inteiramente com iluminação vertical onde mal se vê os olhos do atores - encerrou a carreira com uma péssima adaptação ianque de Dona Flor E Seus Dois Maridos e o chorumela Clara´s heart."

24 dezembro 2008

A beleza e a explicação da beleza

A bela Kim Novak completou, neste 2008 que já se encontra no ocaso, 75 anos (1933/2008). O tempo, decididamente, é muito cruel. Ó tempo, suspende o teu vôo!

23 dezembro 2008

"A encarnação do demônio": melhor filme brasileiro de 2008



Publiquei hoje no Terra Magazine a relação dos meus dez favoritos de 2008. Para conhecê-los, basta acessar: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3408409-EI11347,00-Os+melhores+filmes+de.html Entre os nacionais, o melhor, salvo melhor juízo, é A encarnação do demônio, de José Mojica Marins.

Homenagem a Jacques Tati

Escrevi este artigo-homenagem a Jacques Tati (considero Mon oncle e Playtime obras singulares e únicas da história do cinema) para o Suplemento Cultural de A Tarde, que foi publicado em setembro.
O verdadeiro nome de Jacques Tati é Jacques Tatischeff. Nasceu em 9 de outubro de 1907 na pequena cidade de Le Pecq, Seine-et-Oise (agora Yvelines), França, e vem a desaparecer aos 72 anos, em Paris, em 4 de novembro de 1982. Seu pai, de origem russa, apesar de rude, deu-lhe a conhecer os grandes autores, principalmente os de sua nacionalidade (Dostoievski, Tolstoi, Tchecov...), e sua mãe, francesa, ainda que uma causer instintiva, que fez povoar, com suas histórias, a imaginação do menino Tati, era, no entanto, como habitual na sua época, pessoa dedicada aos serviços do lar. A juventude, passou-a, preocupado com o rugby, do qual se tornou campeão em sua cidade. Os primeiros filmes que viu foram aqueles da estética da arte muda, pois o cinema somente viera a falar a partir de 1927. Mas, desde cedo, encantou-se com os filmes cômicos de Mack Sennett, Harold Lloyd, Max Linder, e, principalmente, de Charles Chaplin. O que mais apreciava, a pantomima, começou a desenvolvê-la ainda em casa diante do espelho.

Aos 26 anos, em 1933, dá-se a conhecer num music-hall repleto de originais números inventados por ele de pantomima esportiva. Do palco pula para o cinema, a princípio como roteirista e como ator em uma série de curtas metragens: Soigne ton gauche (1936), de René Clement (que viria a ser um competente e requisitado diretor do cinema francês - Brinquedo proibido/Jeux interdits) e L'École des facteurs (1947), entre outros. Desempenha, em filmes alheios, vários papéis, entre os quais em Adúltera (Le diable au corps, 1947), de Claude Autant Lara e, em 1949, decide realizar os seus próprios filmes, e o primeiro deles, obra de estréia no longa (antes fizera um curta: L’école des facteurs, 46), é Carrossel da esperança (Jour de fête), uma fantasia sobre as andanças de um carteiro rural. A singularidade de sua poética original já desperta a atenção da crítica especializada.

Tati, neste filme, é François, um carteiro de uma pequena cidade que, muito prestativo, ajuda na montagem de um parque de diversões que inclui um cinema ambulante. Ainda não aparece como Monsieur Hulot com a capa inseparável e o cachimbo sempre presente, que iria personificar a partir de sua segunda obra em diante. Com o cinema ambulante instalado, o curioso carteiro assiste, nele, um documentário sobre o sistema postal mecanizado em funcionamento nos Estados Unidos e fica impressionado. Determinado a aumentar a velocidade da entrega das correspondências, inspira-se no exemplo norte-americano e, com a ajuda de sua bicicleta, consegue imprimir a seu trabalho um ritmo surpreendente. O aumento de velocidade, no entanto, vem a provocar inúmeras confusões e, delas, Tati tira o espírito de sua comédia. Que foi filmada originalmente em película colorida em 1947, mas, com um atraso de dois anos entre a produção e a exibição, foi lançada em Paris em 1949, e em preto-e-branco. Tati, em 1961, desgostoso com o resultado sem as cores, decidiu ele mesmo colori-la à mão. A restauração, contudo, somente aconteceu mais de dez anos depois de sua morte, em 1995, tal como o cineasta a planejara. Jour de fête não tem diálogos, apenas música e efeitos sonoros. No elenco, além de Tati, Guy Decomble, Paul Frankeur, Santa Relli. O roteiro, escrito pelo autor e pelo colaborador Henri Marquet. Carrossel da esperança restaurado chegou a ser exibido em Salvador numa sala alternativa, que ficou às moscas durante a semana de sua projeção.

As férias do Sr. Hulot (Les vacances de Monsieur Hulot, 1953), no entanto, foi o filme que o consagrou. Brilhante sátira do conformismo e da mediocridade dos veranistas franceses, apresenta pela primeira vez o personagem Monsieur Hulot, indivíduo ingênuo e inquietante criado com notável fantasia poética, que se converteu no descendente direto de Max Linder e, sobretudo, de Buster Keaton. Monsieur Hulot vai passar as férias numa pequena praia bretã, onde corteja, de muito longe, uma jovem (Michèlle Rolla). Entre as cenas mais engraçadas, estão aquelas que apresentam Hulot, cachimbo na boca, a dirigir seu carrinho Hamilcar modelo 1924; a sua chegada a uma pensão familiar, que provoca estranhezas; seu quarto sob o teto; a canoa desmontável que se infla no mar; a irrupção de Hulot, de carro, num cemitério, durante um enterro; o baile de máscara onde, fantasiado de corsário, corteja timidamente uma moça; Hulot, perseguido pelos cachorros, refugia-se numa cabana e causa uma explosão de fotos de artifício; o fim melancólico das férias.

O historiador francês Georges Sadoul fez observar, em seu imprescindível Dicionário de Cinema (L&PM), que "a trilha sonora, muito bem cuidada, foi ainda mais aperfeiçoada na nova versão de 1961. As palavras em Les vacances de Monsieur Hulot são encaradas como ruídos, e o seu sentido direto quase que não tem importância, pois o herói pronuncia apenas uma única: Hulot"

Grande Prêmio da Crítica Internacional do Festival de Cannes em 1953, Les vacances de Monsieur Hulot surpreendeu, pela sua singularidade poética, pela maneira original de apresentar com graça as situações cômicas, pela sátira devastadora, os mais importantes críticos que estavam presentes ao evento. André Bazin, considerado um dos mais respeitados exegetas cinematográficos de todos os tempos, chegou a exclamar: "Trata-se não só da obra cômica mais importante do cinema mundial desde os Irmãos Marx e W. C. Fields, mas de um acontecimento na história do cinema falado." E Geneviève Agel acrescentou: "Mais tarde, virá a dizer-se antes ou depois de Hulot". O filme, durante os anos 50 e 60, foi presença constante nas programações dos cineclubes pelo Brasil afora e recebeu críticas elogiosas dos grandes ensaístas brasileiros, a exemplo do que escreveu Paulo Emílio Salles Gomes (Suplemento Cultural do Estado de São Paulo), Francisco Luiz de Almedia Salles, Alex Viany, Walter da Silveira, entre outros.

Este último, num ensaio publicado em Fronteiras do cinema (Tempo Brasileiro, 1966), destacou a estética tatiana num trecho de seu copioso escrito sobre o cômico: "Para realçar sua concepção moral sobre os inúteis e os transitórios que se esforçam por uma sobrevivência a que não têm direito, Tati utiliza, ao modo de Chaplin, um mínimo de primeiros planos e de movimentos de câmera: bastam-lhe os planos médios fixos. E tão mordaz se apresenta neste agudo despojamento técnico que, além de não se importar com uma boa continuidade aparente, passando de uma seqüência para outra com fusões ou cortes que pareceriam primitivos aos menos avisados, ainda insiste, numa ironia quase gratuita num temperamento tão simplificador, em mover a câmera com o ar desajeitado de um automóvel que, mal conduzido, se aproximasse de outro".

Cinco anos se passaram entre Les vacances de Monsieur Hulot e Mon oncle (Meu tio, 1958), que está a se comemorar os cinqüenta anos de sua realização. Jacques Tati é um realizador de poucos filmes por duas razões: gostava de elaborá-los, pacientemente, a fazer e a desfazer roteiros, tendo, como conseqüência, uma depuração expressiva cada vez maior, e não era fácil arranjar recursos para a produção deles. Engenhosa sátira à sociedade moderna, que amplia a visão satírica do filme precedente, sociedade moderna vítima de um maquinismo e de um funcionalismo cujas possibilidades não soube explorar, Mon oncle seria a quintessência do universo ficcional tatiano se dez anos depois não fizesse Playtime (1965/1967), talvez a sua obra-prima.

(Lembro-me que vi, menino, Meu tio, no já desaparecido cinema Capri, que ficava no Largo 2 de Julho. A impressão do garoto que era foi a de um filme esquisito, com alguns momentos que ficaram para sempre na memória: os cães a vadiar pelo terreno baldio, com tomadas demoradas, a casa funcional mas inoperante e a figura alta, esquisita, de Monsieur Hulot. Na segunda metade dos anos 60, vi Playtime, uma produção de grandes recursos, exibida no Tupy, no formato gigantesco da bitola de 70mm. O impacto de Playtime, neste formato desaparecido, e porque filmado nele, desapareceu das cópias porventura existentes em DVD ou “baixadas da internet”)

Em Mon oncle, Hulot (Jacques Tati, evidentemente) mora num velho apartamento num bairro parisiense tranqüilo, e seu sobrinho (Alain Bécourt), com os pais, os Arpel (J.P. Zola e Adrienne Servantie), numa casa ultra moderna, funcional, cheia de apetrechos mecanizados. Tati realiza, aqui, o contraste entre estes ricos burgueses e um bom rapaz boêmio a quem querem fazer trabalhar numa fábrica.

Há momentos antológicos e memoráveis, que ficam na mente do espectador depois do filme visto. A saída do Sr. Arpel de carro para a fábrica de plástico é plena de engenhosidade na confecção do gag audiovisual. Assim como outras: Hulot a subir para a sua bizarra moradia, e a fazer compras no velho bairro, suas imperícias na fábrica, a tarde passada no jardim geométrico dos Arpel, a chegada da vizinha afetada, etc. Meu tio é uma sátira não ao modernismo, mas aos burgueses que se consideram modernos. “O que me irrita, disse Tati quando do lançamento de Mon oncle, não é o fato de se construírem imóveis novos, que são necessários, mas casernas. Não gosto de ser mobilizado, não gosto de mecanização. Defendi o pequeno bairro, o canto tranqüilo contra as auto-estradas, aeroportos, organização, uma forma de vida moderna, pois não creio que as linhas geométricas tornem as pessoas amáveis. Para mim, deve-se revalorizar a gentileza pela defesa do indivíduo, numa ótica finalmente otimista”.

Segundo o crítico Francisco Luiz de Almeida Salles, (O Estado de S. Paulo, 28 de junho de 1959), “A obsessão em fazer do cômico um dado da realidade contingente leva Tati a procurar um máximo de ambientação para sua personagem. Daí a técnica de repetição de incidentes e pormenores. O portão da casa dos Arpel, em Mon oncle, abre-se dezenas de vezes, o peixe-repuxo funciona com uma insistência obsedante, e essa repetição, em vez de naturalizar a realidade, dá um ar de desvario ao mundo de Hulot, artificializando-o por excesso de precisão, como acontece na realidade onírica.”

A preparação para o próximo filme, Playtime, foi longa: sete anos e mais dois de filmagem (1965/67). Trata-se de sua película mais custosa, quase uma superprodução. Nela, há uma profunda observação sobre o comportamento humano e, em particular, de um grupo de turistas americanos que chega ao aeroporto de Orly e se espanta ao verificar que Paris, com seus edifícios e suas ruas, é exatamente igual às suas cidades de origem. Mr. Hulot chega a um novo prédio para tratar de negócios e se deixa extasiar com a complexidade da construção, sendo mesmo envolvido por uma exposição de equipamentos modernos, a que também assistem os turistas. Hulot e os americanos voltam a se encontrar na noite de inauguração da buate Royal Garden, ainda em fase de acabamento. As confusões se sucedem e, de madrugada, no fim da festa, Hulot oferece um presente a uma jovem americana, que parte, então, com os demais turistas de volta a Orly.
Assim narrado, não se pode ter nem sequer uma idéia do que é, na verdade, Playtime, pois puro cinema. Como disse André Bazin, quanto mais fácil seja contar verbalmente um filme, menos cinematográfico ele é, mas quanto mais difícil seja contá-lo verbalmente, mais cinematográfico ele é. Como em As férias do Sr. Hulot, mais porém do que em Carrossel da esperança e Meu tio, Tati ignora as regras do timing e da intensificação dramática. Na primeira das duas grandes seqüências de que se compõe Playtime, o grupo de turistas americanos em Paris toma contato com o labirinto de buildings, se espantando ao ver que a cidade, nas suas linhas e formas, é exatamente igual àquelas que deixaram ao partir. Na segunda parte, todos visitam o Royal Garden, uma buate in que, ao receber os primeiros fregueses em sua noitada inaugural, ainda não está totalmente pronta, com os garçons e maître dando os retoques finais. Aí, novamente, Tati explora às últimas conseqüências as possibilidades da câmera e a sua análise pormenorizada do comportamento humano. A seqüência da buate, que figura entre as mais admiráveis já concebidas em toda a história do cinema, exemplifica o depuramento do burlesco tatiano. O gag dá sempre a impressão de estacionar antes de seu ponto de irrupção – como um gag em suspense ou, mais precisamente, uma decepção do gag. Tati leva a imaginação do espectador à expectativa do riso – e não estaria nisso uma verdadeira invenção?

Em 1971, filma o seu canto de cisne, Trafic, no qual se despede da figura de Monsieur Hulot. Em 74, sem dinheiro, um circus performer chamado Paradise num estranho formato de vídeo-scope. O grande cômico morre pobre e esquecido em 1982.

21 dezembro 2008

Cinema Baiano (11): Cineastas baianos reagem ao golpe contra "Revoada"



Cineastas baianos reagem ao golpe sofrido por José Umberto, que teve o seu longa Revoada montado completamente à sua revelia. O filme, que os produtores dizem estar pronto, nada tem a ver com a concepção original de seu autor. É uma obra espúria. Registro aqui algumas opiniões. A primeira delas, enviada por Edgard Navarro a Umberto, dá conta de sua indignação.


Prezado amigo José Umberto,

Quero me solidarizar mais uma vez com você e manifestar o meu repúdio à atitude desonesta e perversa perpetrada pelos produtores de seu filme REVOADA, justamente num momento de fragilidade em que você se encontrava, acometido de grave doença e tendo que se submeter a uma cirurgia urgente que, felizmente, lhe trouxe de volta a saúde. Em qualquer lugar do mundo, o seqüestro de um filme inacabado, seguido de montagem feita à revelia do diretor, terá que ser considerado um crime e um desrespeito primário ao direito sagrado do criador artístico. Penso que você deveria encaminhar o assunto (se é que já não o fez) à associação de classe, que certamente não se negará a apoiá-lo em sua reivindicação mais do que justa. Há que se pressionar de todas as maneiras possíveis as autoridades constituídas, de modo a que seu direito elementar de autor seja reconhecido e devolvido a tempo de você poder concluir o trabalho que começou por mérito exclusivo de seu roteiro, escolhido entre muitos como vencedor de concurso público a que se submeteu. Saiba que pode contar com o meu incondicional apoio nesta campanha que se inicia em favor do restabelecimento do direito e da justiça, restituindo-lhe a obra intacta, para que ela possa vir a ter a feição única que só o seu criador poderá lhe conferir. Conseqüentemente,punindo aqueles que tentaram usurpar-lhe um poder legítimo; você que, entre os cineastas de minha geração, possui grande crédito, conquistado por uma vida dedicada à atividade cinematográfica, quer contribuindo na construção de uma cinematografia baiana, quer na preservação da memória do cinema na Bahia. Com o meu respeito, meu apreço, e sinceros votos de que esta situação absurda encontre logo uma decisão que, para ser justa, terá que lhe ser favorável, libertando-o desta condição de mártir-vivo que você vem a público denunciar.

Um abraço,

Edgard Navarro


Esta outra, recebida por mim, é de Carlos Alberto Gaudenzi (Kabá):

"Isso é um absurdo. Zé Umberto foi destroçado e viu ser usurpado um sonho de> tantos anos. E, parece, não existir meio legal de se reparar esta violência.> Quando se está cheio das melhores intenções, não se pensa no que pode> acontecer, partindo do inidônio e do ilícito, muitas vezes de pessoas tão> próximas.. Resta-nos a denúncia e o repúdio."


Tuna Espinheira já deu aqui o seu parecer indignado com a atitude dos produtores de Revoada, e mandou um artigo para o jornal A Tarde. Mas vale a pena se ler a mensagem por mim recebida de Walter Webb, que vai ipsis literis:


"Prof.Setaro....Envio previa do cartaz do Revoada em ingles, e a seguir os em> portugues....Salvamos o filme do seu amigo, e ele deveria ser grato e nao> sujar os pratos que lhe serviu comida aBUNDAnde......Saudacoes...WW..."

Sic, sic, sic, e sic.


Na foto, uma reunião histórica acontecida na casa de José Umberto. Vê-se Tuna Espinheira, Umberto, Carlos Alberto Gaudenzi (Kabá) e este blogueiro depois de ter tomado umas e outras. Clique na imagem para vê-la aumentada.

18 dezembro 2008

Muita classe

Audrey Hepburn em Bonequinha de luxo (Breakfast at Tiffany's, 1961), de Blake Edwards: isto é abusar de ter classe.

Da festa de inauguração do Espaço Glauber



Convidado, fui terça passada à inauguração do Espaço Unibanco de Cinema Glauber Rocha. O Largo do Teatro, como se chamava antigamente o local, estava em festa. Repórteres televisivos, jornalistas, realizadores cinematográficos, enfim, a Bahia parecia estar presente em peso ao evento. O complexo de salas excedeu as minhas expectativas, porque muito abrangente, a acomodar quatro salas de exibição de alta tecnologia, além de uma ampla e sortida livraria com livros de cinema, um restaurante, cuja vista dá para a Igreja da Barroquinha, e possui excelente atmosfera, galeria de arte, e um terraço que dá para a Praça Castro Alves e, ao fundo, a fascinante Baía de Todos os Santos.

Muita gente presente: Juca Ferreira, Ministro da Cultura, Orlando Senna (que foi há pouco o Secretário do Audiovisual), Leon Cakoff (organizador da exitosa Mostra Internacional de São Paulo que é sócio do empreendimento), Adhemar de Oliveira (do Unibanco, outro sócio de Cláudio Marques), D. Lúcia Rocha, mãe de Glauber e aquela que está a preservar a sua memória, forte aos 90 anos, sua neta Paloma (e Joel Pizzini), filha de Glauber, Erik Rocha, filho, e também cineasta premiado, enfim, quase a família todo do autor de O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Considerando que aqui não é coluna social, seria desgastante citar todos que a memória permite, mas, mesmo que faça omissão de alguém, vêem-me a memória: Walter Lima, Raul Moreira, Sofia Federico, Pola Ribeiro, Roque Araújo, Lúcio Mendes, Joel Almeida, Hamilton Correia, Antonio Piton, Lula Oliveira, Adler Kibe Paz, Braga Neto, Jacques de Beauvoir, Fernando da Rocha Perez,Tonny Oliveira, Conceição Senna (esposa de Orlando, que faz uma ponta em O dragão...), Malu Fontes, Guido Araújo, Oscar Santana, Petrus Pires, Ildásio Tavares, etc, etc, etc.

Ao final da exibição de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, servido um coquetel. O que foi bem pensado, pois geralmente, pelo menos aqui na Bahia, serve-se, em eventos do tipo, o coquetel antes do filme e, quando se está ainda na segunda dose, vem o chamado para o filme. O que é frustrante para aqueles que gostam de aproveitar o comes e bebes.

O dragão da maldade contra o santo guerreiro em cópia restaurada permite deslumbrar as cores originais obtidas pela fotografia de Affonso Beato. O filme se caracteriza pelos planos-seqüências, verdadeiros afrescos pictóricos da região árida de Milagres. Há planos gerais que se poderia dizê-los eisensteinianos, como o que mostra a imensidão de uma pedreira e a pequenez de uma multidão de famintos incrustada nela. Entre tantos, e não estou aqui propriamente para fazer um comentário do filme, mas somente a dizer algumas coisas en passant, há um no qual a câmera fixa mostra Othon Bastos e Hugo Carvana a jogar sinuca e, no seu final, a câmera faz ligeira panorâmica para mostrar Antonio das Mortes sentado numa mesa a tomar uma garrafa do aguardente Jacaré. Ou seja, o espectador pensa que Hugo e Othon estão sozinhos, mas, de repente, a surpresa de revelar, por um movimento de câmera, a presença do matador de cangaceiros que jura em dez igrejas. Glauber gosta de incluir os personagens dentro do quadro quando menos se espera. Num momento de intensa baderna, Antonio das Mortes entra no quadro fílmica e olha para a câmera, dando a impressão de que está confuso com tudo aquilo. E o plano inicial, com Antonio a atirar vindo da esquerda e desaparecendo pela direita, é muito inventivo, pois somente quando ele sai de quadro é que entra o cangaceiro baleado que morre.

17 dezembro 2008

A Arte de Jonga

João Carlos Alves Olivieri (Jonga) é um publicitário consolidado, mas além disso, pintor e desenhista. Vive no Rio de Janeiro há muitas décadas, embora baiano por nascimento, e português por acidente de percurso. Seus trabalhos podem ser apreciados, agora, em blog específico, que serve de mostruário de suas criações. Há o portfólio de seus trabalhos em agências (http://jonga-portfolio.blogspot.com/) e o blog no qual faz a sua exposição de obras mais pessoais (http://pinturas-jonga.blogspot.com/). Marxista por convicção, é um cinéfilo de mão cheia e sempre que pode revê Rastros de ódio (The seachers), de John Ford, com sentimento quase religioso (embora ateu, como Buñuel, dando graças a Deus).
Seu aprendizado data do começo da década de 60, quando fez cursos de xilogravura, desenho e pintura na Escola de Arte de Augusto Rodrigues (Rio de Janeiro). Em seguida, concorreu à exposição do Salão de Verão no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Ilustrador, tem sua marca no livro Amante de Primeira Viagem, de Luiz Favilla, desenhos escolhidos de ilustrações que realizou para 15 poemas de autoria deste poeta. Segundo Jonga, "a partir de 1989, iniciei uma fase de desenhos em Crayon e Pastel, alguns vendidos a colecionadores particulares e outros expostos na Galeria 343, no Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro. Depois disso passei a desenvolver pinturas em tinta acrílica sobre papelão e tela. Hoje, tenho muitos de meus quadros em coleções particulares no Brasil e em Portugal, sendo que neste país tenho um quadro no acervo da Cooperativa da Árvore, importante museu da Cidade do Porto.
O retrato acima foi realizado com técnica mista de guache e hidrocor. Clique nele para vê-lo melhor em outra janela.

16 dezembro 2008

A "revoada" de Tuna sobre a interferência no filme de José Umberto

O cineasta Tuna Espinheira, realizador de Cascalho, quando soube que Revoada foi montado à revelia de seu autor, José Umberto, ficou indignado, e me mandou uma mensagem. Como ele diz muito bem, a montagem pode desfigurar complamente a concepção original de uma obra cinematográfica. É o que aconteceu com a ação dos produtores, que tiraram das mãos de Umberto a possibilidade de montar o seu filme à sua maneira. E a idéia de Umberto era a de uma montagem com planos-seqüências, tomadas mais demoradas, e, segundo soube, o filme está meio videoclipado à procura de uma narratividade que o desfigura totalmente. Publico a seguir, tal como a recebi, a mensagem de Tuna:
"Li no seu blog, a triste notícia da finalização e cópia pronta do filme: Revoada, de José Umberto. É uma página agônica para o cinema baiano, como um todo. Não há o que comemorar. Agora vamos trocar em miúdos estas primeiras linhas, sombreadas de um certo surrealismo. Em condições adversas, como em toda filmagem de baixo orçamento, o Roteirista, Diretor e, principalmente, ganhador de uma licitação pública (Concurso de Roteiros do MINC), conseguiu captar as imagens necessárias para a montagem e edição do seu filme. Até aí, pelo sim e pelo não, as coisas andaram nos trilhos. Na segunda etapa, na mesa de montagem, momento crucial, quando a obra passa a tomar forma e adquirir o sopro de vida, com a imprescindível presença do seu criador. Justamente neste momento, espaço sagrado da urdidura do filme, aconteceu uma armadilha do destino: O Autor ficou doente, carecendo de tratamento delicado e urgente. Foi obrigado a se afastar, por um dado período, da finalização do filme.
Deu-se então que, o que poderia ser conversado, no sentido de chegar a um denominador de consenso, foi atropelado pela decisão sinistra, ao arrepio do direito autoral, e contra a vontade do cineasta em questão, de se coletar (para não usar termos mais próprios) à revelia, o material, em estado de montagem, e entregá-lo a um montador paulistano, afeito ao pai e mamãe cinematográfico, para colar, dentro da sua ótica, os planos e seqüências de Revoada... Vade retro...
Em qualquer material filmado, caso seja entregue a 10 montadores de cinema (sem o acompanhamento do Diretor), teremos 10 filmes muito diversos um dos outros. Com um grande risco da elaboração final (lembrando o saudoso “Lalau”), produzire o “Filme do crioulo doido”.
Acho que expliquei agora as razões das primeiras dramáticas/trágicas linhas
."

De John Frankenheimer, para variar

Diretor americano que ainda não recebeu a necessária valorização, a ser confundido, muitas vezes, como um realizador mediano e comercial, John Frankenheimer (1930/2002) é um cineasta possuidor de um invejável sentido de composição plástica, dominando formalmente o veículo, com um ritmo, um timing surpreendente. Na engrenagem da indústria cinematográfica, todavia, vê-se obrigado a aceitar encomendas ditas comerciais, o que faz oscilar a sua filmografia entre grandes e menores momentos, nunca, entretanto, mesmo nos filmes mais fracos, sem deixar de apor a sua marca de realizador eficiente e impactual - é verdade que, no fim da vida, comete alguns pecados imperdoáveis, a se excetuar Ronin, como Amazônia em chamas, entre outros. Assim, Frankenheimer, quando um roteiro bom lhe é entregue, desenvolve-o com maestria na exposição de suas imagens em movimento. É um cineasta, portanto, que precisa ser melhor investigado para se poder conhecer as suas constantes temáticas e estilísticas. E isso, por ignorância de uma crítica somente capaz de enxergar os autores consagrados, ainda não aconteceu, excetuando-se alguns exegetas franceses que, diga-se de passagem, souberam captar a sua grandeza. No Brasil, porém, este diretor precisa, e urgentemente, ser redescoberto.
Este desconhecimento de Frankenheimer é bem revelador de uma crítica modista incapaz de investigar os filmes, se estes não chegam já firmados e devidamente cultuados, pois Frankenheimer não é um cineasta modista, não incursiona por temas “pós-modernos” e nem se preocupa com os assuntos que fazem a festa da patuléia (ou de uma certa patuléia) contemplativa. Seus filmes, sobre ser obras de construção dramática de uma funcionalidade extrema, podem ser considerados reflexões sobre a violência do homem contemporâneo. Que se veja aqui, portanto, a sua trajetória.
Este cineasta audacioso e impactuante que dota a sua mise-en-scène de um fascínio crepuscular, nasce em Nova Iorque em 1930, estuda na Academia Militar de La Salle e faz parte da geração oriunda da tv nos anos 50, tendo sido assistente de Sidney Lumet (Doze homens e uma sentença). Começa a dirigir em 1956, com 26 anos de idade, em No labirinto do vício (The Young Stranger), com James MacArthur e Kim Hunter. Passa, então, vários anos sem realizar um longa, o que só acontece em 1961 em Juventude selvagem (The Young savages), com Burt Lancaster e Dina Merril. É o mesmo Lancaster que faz, em 62, o papel-título de O Homem de Alcatraz (Birdman of Alcatraz), um filme não sobre a prisão, mas, importante, sobre a idéia da prisão; obra humanista e de fôlego. Nesse mesmo ano, considerado pelos produtores pela sua demonstração de talento, faz outro filme: O anjo violento (All fall down), com Eve Marie Saint e Warren Beatty. Findo este, ainda em 62, realiza um de seus melhores trabalhos, uma audaciosa previsão dos assassinatos Kennedy em Sob o domínio do mal (The mandchurian candidate) - gostei também da versão de Jonathan Demme, que provoca polêmica por causa de seu tom premonitório. Dinâmico, vigoroso, um thriller surpreendente, com Frank Sinatra, Janet Leigh e Laurence Harvey. Em 1963 descansa e não dirige nada para voltar, em 64, com outra análise dos bastidores do poder estadunidense: Sete dias de maio (7 days in may), com, novamente, Burt Lancaster e Kirk Douglas (um par de atores admirável) Substitui Arthur Penn e chega ao final de O trem (The train) com seu ator preferido, Burt Lancaster, ao lado de Jeanne Moreau (então uma musa do cinema europeu), encabeça o elenco.
Talvez a obra-prima de John Frankenheimer seja este filme realizado em 1966: O segundo rosto (Seconds), com um Rock Hudson irreconhecível como um intérprete seguro e eficiente. Estranho, Seconds mergulha no problema da crise do homem e do tempo, com um personagem que, realizando uma operação plástica, muda de rosto, “deixando” a velhice para aparentar um quarentão. Obra de impacto quando de seu lançamento e que merece muitos elogios, mas filme completamente esquecido e que serve de demonstração do faro de Frankenheimer.
Ano rico, o de 1966, para Frankenheimer, pois neste período realiza Grand Prix, um filme fascinante sobre corrida de automóveis (quem pode esquecer o plano de detalhe dos olhos de Eve Marie Saint na grandiosidade dos 70mm?). Este filme foi exibido no cine Tupy logo após sua reforma em 1968 quando passou a projetar a bitola de 70mm.
Três anos de inatividade. O projeto de Grand Prix se torna demasiado puxado. Fica fora do ar por um tempo para, em 1969, construir uma comédia non sense bastante inventiva: O extraordinário marinheiro (The extraordinary seaman), com David Niven e Faye Dunaway. Logo em seguida um filme político e de denúncia: O homem de Kiev (The fixer), com Alan Bates e Dirk Bogarde. Ainda em 69, uma gozação e um trunfo como comediógrafo: Os pára-quedistas estão chegando (The gipsy moths), trazendo de volta Burt Lancaster ao lado de Deborah Kerr (uma atriz maravilhosa, aliás, que fez com Lancaster a famosa cena da praia de A um passo da eternidade, um tipo de mulher fina e elegante, que faz parte do espírito de uma época, pois a mulher contemporânea, aputalhada, não tem mais a classe, a finesse, de uma Deborah Kerr, embora isto seja outra história).
A década de 70 se inicia com um Frankenheimer menor - mas que menor é este se é ainda muito bom?: O pecado de um xerife (I walk the line), com um Gregory Peck maduro e apaixonado pela quase ninfeta Tuesday Weld. Nesse mesmo ano, um épico menor: Os cavalheiros de Buskashi (The horsemen), com Omar Shariff e Leigh Taylon Young. Um inédito no circuito comercial, mas que aparece exibido na TV. História de uma história de amor (Impossible object, 72), com Alan Bates e Dominique Sanda, que são dois atores estupendos e ao que se pode perceber algo muito interessante para ver, embora inédito no país pelas injunções do mercado exibidor. Em 1973, outro inédito: The iceman cometh, com Lee Marvin e Fredric March. Até o ultimo disparo (99 and 44% dead), exibido no antigo Bristol, é divertido e simpático, com produção datada de 74.
Frankenheimer aceita dirigir a seqüência de Operação França e surge The french connetion II (75) mas, ao invés de um filme de ação (como fizera William Friendkin no primeiro), Frankenheimer mistura esta com devaneios à la Antonioni, principalmente no enfoque da angústia de Gene Hackman, o detetive Popeye. Domingo Negro (Black sunday), 77, filme que se segue a French, trata do terrorismo internacional e é de um impacto absoluto.
Reconheço que já no ocaso de sua vida, John Frankenheimer, sem o apoio de um sistema de estúdio eficiente, perde, também, força de metteur-en-scène, embora o esforço, a perspectiva de um novo filme que viesse a superar o outro, a tenacidade, e a coragem. Mas outros tempos. O melhor de Frankenheimer está, realmente, na década de 60 e não seria exagero dizer que O segundo rosto é uma obra-prima.

14 dezembro 2008

Fernando Ferreira, crítico de cinema

Nos anos 70, um dos críticos mais atuantes no cenário jornalístico cultural carioca era Fernando Ferreira, que escrevia em O Globo e foi o crítico que mais tempo assinou a coluna "O bonequinho viu". Sem entrar em juízo valorativo sobre o famigerado bonequinho, o fato é que Ferreira era um dos bons críticos que podiam ser lidos nos jornais do Rio de Janeiro (havia outros, é verdade, que tinham suporte teórico e analítico como os antípodas Ely Azeredo e José Carlos Avellar no Jornal do Brasil, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Marcos Ribas de Faria, entre muitos outros, além dos paulistas Paulo Emílio, Biáfora, Carlos Maximiliano Motta, Almeda Salles, e, no próprio Globo, lembro-me de Miguel Pereira - a citação vai parar por aqui porque assim de memória posso incorrer em omissões imperdoáveis). O fato é que Fernando Ferreira, sobre possuir um estilo elegante de escrever, enxuto, pouca adjetivação, conhecia muito da arte do filme (tenho alguns de seus escritos arquivados). Mas, infelizmente, deixou de escrever em jornal para se dedicar ao ensino universitário. Além da crítica cinematográfica, Ferreira foi um grande jornalista da área cultural, pois passou muito tempo como editor do Segundo Caderno do jornal O Globo.
Atualmente, é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), coordenador do Projeto Comunicar, que tem como meta o treinamento e desenvolvimento profissional dos alunos dos cursos de Jornalismo e Publicidade e editor do Jornal da PUC, uma publicação quinzenal editada pelo Projeto Comunicar.
Na foto, Fernando Ferreira, sentado, ao lado de Jonga Olivieri, publicitário carioca e bloguista (http://novaspensatas.blogspot.com/).

Cinema Baiano (10): Vito Diniz


Diretor de fotografia dos mais iluminados, Vito Diniz poderia ser um dos expoentes da fotografia cinematográfica brasileira se não fosse a sua paixão pela Bahia, sua insistência em aqui permanecer a trabalhar, e, com isso, recusando convites de fora que poderiam lhe fazer a fama e a glória. Mas de uma coisa se tem certeza: poucos, no Brasil, conhecem a arte de bem iluminar como Vito Diniz, que a Implacável o levou há uma década ou quase isso ainda em pleno vigor de sua capacidade produtiva. Pessoa de lhano trato, homem educado e delicado, tímido, não era afeito a diatribes, guardando as suas opiniões para os amigos. Iluminou quase todos os filmes baianos desde o crepúsculo da década de 60. Meteorgango Kid, o herói intergalático (1969), de André Luiz Oliveira, que virou filme cult do underground ou cinema marginal, teve a sua plástica de imagem orientada por Vito, assim como muitos outras longas baianos, a exemplo do desaparecido Akpalô (1971), de José Frazão, O anjo negro (1973), de José Umberto, entre muitos outros, inclusive os curtas e médias de Fernando Belens, Kabá, Edgard Navarro, Pola Ribeiro, Tuna Espinheira, Agnaldo Siri Azevedo, etc.
Antes da aventura no cinema, trabalhou como correspondente da Manchete em Roma e chegou a dirigir uma chanchada com Colé.
Deixou também de sua autoria curtas preciosos como Magarefe (1971), que focaliza a crueldade da morte de bois e vacas, Pelourinho (1972), visão poética deste centro histórico que é um patrimônio da humanidade, e, quando se aventurou no Super 8, o resultado foi um filme com a qualidade daqueles na bitola 35mm: Gran Circo Internacional.
Presto aqui esta pequena homenagem ao grande homem e ao grande fotógrafo que foi Vito Diniz.

VITO DINIZ POR JOSÉ UMBERTO
Transcrevo um artigo do cineasta e escritor José Umberto, que trabalhou com Vito em vários filmes. Vito foi o diretor de fotografia de seu primeiro longa: O anjo negro, realizado em 1972 e lançado no ano seguinte.
"O artífice da câmera na mão. Esta é a imagem primeira de Vito, aquele que registrou, com elegância e beleza clássica, os filmes baianos de fins dos anos 60, 70 e meados de 80. Sua câmera Arriflex 35mm, que trouxera da Itália, foi a responsável direta pela captação de imagens límpidas de diversos cineastas, sobretudo daqueles estreantes com todo o gás.
Com um olho na câmera e o outro na larga experiência de cineasta e fotógrafo, Vito Diniz é o protótipo do artesão renascentista, cuidadoso, exigente, calmo e nobre no trato.
Deixou o legado de uma marca. A marca da busca apaixonada da imagem com o traço de quem filtra a luz com a maestria de um acadêmico despojado e sem afetação. Trabalhava para os outros com a mesma disposição atlética com que realizava seus próprios filmes.
O seu curta metragem Gran Circo Internacional é um marco do cinema periférico no século XX. Primando pela sutileza, este pequeno grande filme sintetiza o rigor do ritmo numa unidade de respiração, de escala métrica do tempo, na passagem dos planos operacionalizada pela montagem poética. Vito imprimia a imagem do real com o sentido da transcendência. Com a urgência da plasticidade nos meandros do claro/escuro, na fonte primeva das sombras, no êxtase e na vertigem das cores, mas sempre na procura da criação de um humanismo.
A sua simplicidade, herança do neo-realismo italiano, implicava numa exigência estética do aprofundamento. Não lhe interessava a superfície das sensações, porém o mergulho na essência de uma sociedade marcada pelo sofrimento. E ele não se deixava abater pela dor porque sua intenção fundamental seria sublimá-la e transubstanciá-la com a visão de poeta da imagem.
Vito Diniz fez cinema como Francisco de Assis falava com os pássaros em Pádua. Sua generosidade como artista é o exemplo de uma linguagem sem subterfúgio, de uma metáfora sem vaidades mundanas, portanto claro como um entardecer na praia de Piatã com fachos delirantes de um vermelho que sinaliza sangue e fervor."

13 dezembro 2008

"Revoada" pronto à revelia de seu autor




Revoada, segundo me informou Walter Webb, está pronto e com material de divulgação em inglês e português. A versão, porém, que diz ser for export, é espúria pois montada à revelia de seu verdadeiro autor: José Umberto. Este filme pronto é antípoda da concepção original de Umberto, que queria uma montagem completamente diversa da que está sendo apresentada. Seria o caso, inclusive, da retirada de seu nome dos créditos. Cliquem nas imagens para que possam ser vistas com maior nitidez em outra janela.

Espaço Unibanco de Cinema Glauber Rocha



Há alguns anos que vem sendo prometida a inauguração do Espaço Unibanco de Cinema Glauber Rocha, mas sempre adiada a ponto de não se acreditar mais na sua vialibidade. Mas valeu esperar, pois terça que vem, dia 16 de dezembro, às 20 horas, o espaço será entregue ao público baiano, com a exibição da cópia restaurada - e em deslumbrante colorido - de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha. Com 4 salas de alta teconologia, além de livraria, galeria de arte e um restaurante, o complexo fica situado na Praça Castro Alves, no lugar onde antes existia o inesquecível cinema Guarany, palco de muitos eventos cinematográficos importantes em Salvador, principalmente porque foi nesta sala que aconteceu a avant-première, em abril de 1959, do primeiro longa metragem baiano: Redenção, de Roberto Pires.

Com a morte prematura de Glauber Rocha, no dia seguinte, porque o imóvel era de propriedade do estado, o governador da época, ACM, dirigiu-se até a porta do Guarany e proclamou que daquele dia em diante o cinema se chamaria Glauber Rocha. A iniciativa desse grande empreendimento para o mercado exibidor soteropolitano foi de Cláudio Marques, que, para poder levar a frente um projeto caro, associou-se a Adhemar de Oliveira, empresário paulista ligado ao Unibanco. Marques também tem um curta que é documento importante sobre o cinema do passado: O Guarany, que conta com depoimentos e imagens de arquivo que mostram a importância da sala para a memória histórica da Bahia. Pretende, agora que o cinema vai ser inaugurado, sediar o Panorama Internacional Coisa de Cinema, que não fora realizado no ano passado, como estava previsto, por ausência de espaço.

A escolha do filme inaugural não poderia ser melhor. O dragão da maldade contra o santo guerreiro está com cópia restaurada e há décadas que não é visto na tela grande. O filme foi lançado no extinto cinema Capri, que ficava no Largo 2 de Julho, em 1969, há impressionantes 40 anos (parece que vi o filme ontem). Filmado em Milagres, cidadezinha do interior da Bahia, entre Jequié e Feira de Santana, O dragão da maldade contra o santo guerreiro recebeu a Palma de Ouro de melhor direção do Festival de Cannes, e é muito admirado pelo mundo afora. Martin Scorsese é um de seu admiradores mais entusiasmados. Na França, para simplificar o título e torná-lo mais legível para os estrangeiros, foi chamado de Antonio das Mortes, nome do personagem que aparece pela primeira vez em Deus e o diabo na terra do sol (1964). Matador de cangaceiros, Antonio das Mortes é um personagem ambíguo e em crise de consciência, pois recebe dinheiro dos latifundiários e da igreja para matar fanáticos religiosos e cangaceiros que pertubam a ordem. Mas em O dragão da maldade contra o santo guerreiro, há, por assim dizer, um processo de conscientização do personagem, que resolve ficar ao lado dos menos aquinhoados pela sorte. O plano inicial já anuncia o filme em grande estilo: Antonio das Mortes entra no quadro, na caatinga, da direita para a esquerda a atirar e some pela esquerda. A câmera permanece fixa e sem corte. De repente, alguns cangaceiros entram no quadro fílmico a cambalear e morrer em seguida. O elenco é muito bom: Odete Lara, Maurício do Valle, Hugo Carvana, Othon Bastos, Lorival Pariz, Mário Gusmão, Emmanuel Cavalcanti, Rosa Maria Penna, Sante Scaldaferri, Jofre Soares, entre outros.

Marques fez muito bem em conservar o belo sol de autoria do grande artista Rogério Duarte.

11 dezembro 2008

Manoel de Oliveira faz 100 anos

Manoel de Oliveira, o príncipe dos realizadores cinematográficos portugueses (Aniki-Bobó, 1942, Palavra e utopia, 2000, Viagem ao princípio do mundo, 1997...), completa 100 anos em plena atividade.

10 dezembro 2008

Clube de Cinema da Bahia redivivo

Guido Araújo ri de contentamento com a ressurreição do Clube de Cinema da Bahia, que, desativado desde 1990, há, portanto, 18 anos, vai voltar a funcionar. Para quem não sabe, o Clube, fundado em 1950, à frente Walter da Silveira, foi responsável pela formação de muitos realizadores, críticos e amantes do cinema, entre os quais o internacional Glauber Rocha, que começou a entender Eisenstein pelas mãos de Walter da Silveira. Com a morte deste, em novembro de 1970, aos 55 anos, o Clube ficou sob a responsabilidade de Guido Araújo, que deslocou a sua programação para o extinto cinema Rio Vermelho e os jardins do Instituto Goethe, com a inauguração do Cinerante (cinema + restaurante), cuja denominação tem seus direitos autorais em nome do próprio Guido ou de Roland Schaffer (que era, na ocasião, início da década de 70, o diretor do Goethe/Icba). Espaço quase consular, o Goethe virou point dos universitários e dos amantes da arte (não somente o cinema tinha pouso neste instituto alemão, mas também todas as artes em geral), chegando, inclusive, a dar origem ao vocábulo icbano para denominar todo aquele que era um habituée de suas programações culturais.
Pouco depois de receber o importante Prêmio Roberto Rossellini, concedido pelo Festival de Cinema de Maiori (cidade da costa Amalfina, onde Rossellini realizou vários de seus filmes - L'amore, Paisà), na Itália, como organizador da Jornada Internacional de Cinema da Bahia, agora em outubro último, Guido Araújo é contemplado com o Troféu Paulo Emílio Salles Gomes concedido pelo Conselho Nacional de Cineclubes no momento em que, neste ano, o movimento cineclubista completa 80 anos de atividades no Brasil.
O fato é que o Clube de Cinema da Bahia vai voltar às suas atividades. Recebi de Guido Araújo uma mensagem na qual convoca todos os amigos cineclubistas baianos para uma assembléia na próxima sexta, dia 12. Eis um trecho dela: "estamos convidando os amigos e ex-sócios do Clube de Cinema da Bahia de outras épocas, para que, juntos, possamos em Assembléia, reerguer o CCB, já com estatutos adequados aos tempos atuais. A data agendada para o reencontro dos amigos do CCB, será no próximo dia 12 de dezembro, sexta feira, a partir das 17 horas, sala 05 do ICBA, no emblemático espaço do Instituto Goethe, que sempre esteve ao lado das promoções cinematográficas dos cineclubistas baianos e da Jornada de Cinema da Bahia."

09 dezembro 2008

Do imortal Romero Azevedo


Romero Azevedo e Rômulo, seu irmão gêmeo, são os mais novos imortais da Academia Paraibana de Cinema como membros fundadores. Romero, paraibano da gema, de Campina Grande, onde é professor de cinema, cineclubista das antigas, conheci-o no já distante ano de 1976 (há medonhos e estarrecedores 32 anos), quando veio a Salvador participar de um curso de cinema promovido pelo Instituto Goethe e o Grupo Experimental de Cinema (de Guido Araújo). O curso, que se queria profissional, com um ano de duração, teve um excelente corpo docente: Jean-Claude Bernardet, Jurandyr Passos de Noronha, José (Zequinha) Mauro (filho do consagrado Humberto), José Abade, Peter Przygodda (sim, o montador preferido de Wim Wenders e de notáveis outros diretores alemães), entre outros que não me vêm à lembrança no momento. Peter dava aulas de montagem na moviola do Goethe (também conhecido como Icba) a beber garrafas de cerveja Antarctica 600ml no gargalo. Pois bem! Romero veio fazer o curso, que fiz também e vim, por isso, a conhecê-lo melhor, pois fomos colegas. A dizer a verdade, já o conhecia de vista e de chapéu de jornadas passadas, mas sempre en passant. A memória registra que quase toda noite, à saída do Jardim do Icba, que tinha um bar e restaurante, point obrigatório nos anos 70, espichávamos ao Avalanche, um bar que ficava no bairro do Canela - e que também fez história nessa época. A cerveja corria solta - e gelada. Ficava impressionado com os conhecimentos de Romero sobre cinema. Detalhista, sabia de tudo. Era um prazer conversar com ele, apesar de suas botas texanas que somente as tirava para dormir. Nestes bons tempos, já escrevia sobre cinema no jornal Tribuna da Bahia e ia semanalmente às distribuidoras pegar material de divulgação dos filmes que iam ser lançados. O escritório da Embrafilme vivia os seus dias de glória e arranjei muitos cartazes de filmes brasileiros para o acervo de Romero. O fato é que Romero é um fenômeno de conhecimento, de inteligência e, mais importante de tudo, possui excelente senso de humor. Talvez agora, imortal, não venha mais a falar comigo, pobre mortal que sou!
E por que não se funda aqui também uma Academia Baiana de Cinema?

07 dezembro 2008

Cinema Baiano (9): Homenagem a Milton Gaúcho


Hoje tem outro capítulo sobre cinema baiano, que faz uma homenagem a Milton Gaucho, ator que participou de quase todos os filmes realizados na Bahia. Faleceu no alvorecer do ano de 2006, deixando extensa filmografia.
Quando nasce, aqui mesmo em Salvador, em 7 de outubro de 1916, o baiano registrado Milton Magalhães, ainda não tem consciência de que um dia iria se chamar Milton Gaúcho, como, aliás, é óbvio. Mas porque Gaúcho se um autêntico soteropolitano? Teria sido o nome de um personagem que lhe fixa o apelido? O fato é que se alguém na Bahia se refere a Milton Magalhães, ninguém conhece, ao passo que Milton Gaúcho remete, imediatamente, a memória, às telas do cinema, onde pontifica por muitos anos a ponto de se tornar uma figura emblemática do cinema baiano, pois lhe percorre todas as fases a partir de Redenção (1956/1959), primeiro longa metragem realizado em Salvador pelo inventor Roberto Pires, que, na ótica de seu pai, desenvolve uma lente anamórfica assemelhada ao cinemascope da Fox, que a mostrou ao mundo em 1953 com O manto sagrado (The robe), mas que, na verdade, é criada em 1937 pelo francês Henri Chrétien.
Em 1936, aos 20 anos de idade, Milton Magalhães decide ingressar numa emissora radiofônica, a Rádio Clube da Bahia (PRF-6), quando faz a sua estréia. Nesta época, o cinema baiano praticamente não existe, restrito à curtas caseiros de Alexandre Robatto, Filho. Mas o curriculum radiofônico do futuro Milton Gaúcho é tão imenso que não é possível a sua inclusão neste esboço de itinerário. Para se ter uma idéia, apenas, vale ressaltar que, após a emissora citada, o jovem Magalhães entra na Rádio Comercial da Bahia, Rádio Transmissora do Rio de Janeiro (ZIN 20), Rádio Mayrink Veiga, a famosa Rádio Nacional, uma de Belo Horizonte, outra de Porto Alegre, etc. Radialista, portanto, formado no batente dos estúdios, a exercitar os seus dotes da expressão vocalista.
Gaúcho – quando recebe este apelido? – incursiona por vários meios de comunicação, além do rádio, onde se estabelece como ator de novelas, mas investe no teatro, na direção artística de peças, na ópera, como cantor, na teledramaturgia televisiva e até no circo (o Fokote). Apresenta-se, nos anos 40, na antiga Festa da Mocidade, que se realiza no Campo da Pólvora, no espaço – antes baldio – hoje ocupado pela edificação – em 1949 – do majestoso Fórum Ruy Barbosa. A Festa da Mocidade é um point obrigatório para a sociedade baiana da época. Nos anos 60, fizeram-na um arremedo no terreno abaixo da Fonte Nova, perto da rua Djalma Dutra, com parque de diversões, teatro revista, cuja atração principal é Zé Coió – que depois viria a ser respeitado como Roberto Ferreira, ator de muitos filmes baianos.
Mas é a participação de Milton Gaúcho no cinema o que interessa mais a esta coluna. De Redenção, sua estréia, participa de quase todos as obras cinematográficas realizadas na Bahia. Em Bahia de Todos os Santos, do paulista Trigueirinho Neto, uma presença discreta mas garantida, A grande feira, de Roberto Pires, como o feirante e, logo a seguir, com o mesmo Pires na direção, Tocaia no asfalto, no papel do deputado corrupto Pinto Borges, atuação destacada nesse thriller exemplar do melhor artesão cinematográfico da cinematografia praticada nestas plagas.
Walter da Silveira costumava dizer que a melhor interpretação de Milton Gaúcho é a do guarda civil em O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte, uma produção paulista de Oswaldo Massaini toda filmada aqui em Salvador, e que é, até hoje, o único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes – Glauber Rocha ganha uma, é verdade, em 1969, mas a Palma de melhor diretor e não de melhor filme por O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Gaúcho incorpora tão bem o guarda que até seus amigos mais chegados, vendo-o na tela, vêem mais o guarda do que o ator, a pessoa deste.
De repente, Gaúcho se transforma no coronel malvado de O caipora (1963), de Oscar Santana, e trabalha também em Sol sobre a lama (1964), uma resposta do produtor Palma Netto a A grande feira, sob o argumento de que, feirante no pretérito, não concorda com o tratamento dado à problemática da Feira de Água de Meninos. Sol sobre a lama, no entanto, dirigido pelo carioca Alex Viany, que, na época, está com mania de fitas japonesas, pretende dar, à mise-en-scène da obra soteropolitana, uma construção rítmica em estilo oriental. Resultado: a versão do diretor é submetida à Justiça que dá ganho de causa ao produtor e, com isso, Sol sobre a lama é remontado segundo a ótica de Palma Netto.

Tem participação em O rio dos homens sem medo, de Braga Neto, mas o filme não consegue ser finalizado – o que, quarenta anos depois, Braga está agora a tentar. Os estrangeiros, que se estabelecem em Salvador para desfrutar de seu décor exuberante, procuram Milton Gaúcho e ele trabalha em O santo módico, de Robert Mazoyer, Les globes trotters, de Claude Boissol – para a televisão francesa, Rebelião de brutos, de Giovanni Fago, Os pastores da noite, de Marcel Camus, Luar sobre o parador,de Paul Mazursky, entre outros.

Findo o Ciclo Bahiano de Cinema, quando se pensa numa aposentadoria do veterano ator, eis que aparece Gaúcho surpreendendo com suas participações no chamado surto underground baiano (que será abordado em outro capítulo da série) em Caveira my friend (1969), de Álvaro Guimarães, e Meteorango Kid, o herói intergalático (1970), de André Luiz Oliveira. A seqüência do escritório de uma produtora de cinema, deste último, é hilária, com Gaúcho provocando Lula, Bom Cabelo, sobre as preferências reais do público cinematográfico, o grande público que lota as salas.

Gaúcho prossegue pela década de 70, 80, ultrapassa a de 90, e entra, célere, na de 2000, participando, no Terceiro Milênio, de Três Histórias da Bahia – episódio Diário de um convento, de Edyala Iglesias, como um assustador frade cego, e Eu me lembro, de Edgard Navarro.

A destacar, nesta trajetória gauchiana, o seu papel importante como presidente e criador do Grubacin (Grupo Bahiano de Cinema), que, durante a segunda metade dos anos 70, quando do boom superoitista, tem importante contribuição na discussão das fitas realizadas nesta bitola – marginalizada pelos profissionais, além de contribuir com concursos de roteiros, apresentação de programas, fomento da produção. O Grubacin se reúne uma vez por semana no Clube de Engenharia, que, antes da decadência do centro da cidade, é um point não somente de eventos culturais, mas, também, um pólo aglutinador dos universitários e artistas que brincam o Carnaval na rua Carlos Gomes e circunvizinhanças.