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27 julho 2005

A viagem à lua (La voyage dans la lune, 1902), de Georges Méliès

INTRODUÇÃO AO CINEMA (10)

A produção autônoma de sentidos
A necessidade de ressaltar a verdadeira natureza de arte do cinema, restituindo-lhe o fundamento poético original, torna-se uma tarefa urgente do estudioso dado o cipoal vulgarizador no qual a imagem se submerge na atualidade. O fundamento poético original a que se refere precisa ser enfatizado quando se fala, hoje, de cinema, pois se faz necessário diferenciá-lo das outras técnicas mais conhecidas pela designação geral de meios de comunicação de massa. Ao contrário da prática televisiva, que se limita a reproduzir sentidos previamente organizados, o filme é dotado de uma capacidade significante que lhe permite recriar a realidade sob a forma de uma linguagem. Assim, recorrendo a uma série de processos de reelaboração poética, o cinema, transformado num gênero técnico-formal, está mais virado para a expressão do que para a comunicação. Tem uma função mitopoética bastante forte e arraigada e não se pode, sob pena de se incorrer em grave erro de apreciação e compreensão da arte, deixar de reconhecer o seu papel de grande matriz moderna da cultura.O filme é um discurso e não, apenas, um simples espetáculo e, na realidade, desde o seu aparecimento tem acumulado títulos nobiliários que lhe valeram ser considerado como par das outras artes mais ilustres. Em sua trajetória, na sua escalada enquanto linguagem, promove a tarefa de qualquer atividade artística: a produção autônoma de sentidos;. E, desenvolvendo-se, no século que passou, como linguagem, o filme é várias vezes promovido no terreno da significação, sendo que duas promoções assumiram um caráter decisivo para o seu destino expressivo: a primeira - que remonta a meados dos anos vinte - lhe permite passar do escalão servil de reprodução das realidades em movimento para o escalão mais qualificado de linguagem artística baseada na reprodução da realidade; a segunda promoção - ocorrida em época mais recente - reconhece a capacidade do filme não apenas para reproduzir a realidade, mas também, e principalmente, para reconstruir a realidade de modo inteiramente original.O efeito da primeira promoção - já assimilado, hoje, por todo e qualquer espectador - é o de levar o cinema a deixar de ser visto apenas como espetáculo, passando a sê-lo também e sobretudo como uma experiência artística em nada inferior à das outras artes. A transição do filme entendido como mera técnica foto-reprodutora para o filme entendido como linguagem auto-suficiente - do cinematógrafo ao cinema - já não deveria escandalizar ninguém, principalmente se se tem em conta a inegável função de matriz da cultura desenvolvida pelo cinema ao longo de sua existência centenária. A segunda promoção - reconstrução da realidade de modo inteiramente original - é, no entanto, mais difícil de assimilação, considerando, aqui, a passagem da representação para a escrita. Se o filme é um discurso orgânico e solidário nas suas partes é necessário aprender a lê-lo, após tantos anos em que se esteve habituado a vê-lo simplesmente. O filme não é mais, assim, uma mera reprodução de um discurso previamente elaborado no interior de um outro sistema de signos.A semelhança do cinema, com a arte figurativa, provoca um erro de apreciação, pois quem assim acha e procede não tem em conta a diferença funcional entre o enquadramento e o quadro. O que distingue de maneira radical o enquadramento do quadro é a presença, no primeiro, de uma dimensão dinâmica, porque a obra pictórica, o quadro, está encerrada em si mesma e exprime uma temporalidade subjetiva enquanto que o enquadramento fílmico só adquire sentido em relação aos enquadramentos que o antecedem e se lhe seguem na cadeia narrativa, exprimindo, portanto, uma temporalidade objetiva. A temporalidade subjetiva remete apenas para a bagagem iconográfica do observador enquanto a objetiva, própria do cinema, constitui um fragmento de sentido que, para ser contemplada, precisa ser integrada no contexto do filme. Assim, os enquadramentos estão, por conseguinte, relacionados entre si no interior da sequência, e o mesmo deve ser aplicado a esta última dentro da estrutura geral do texto fílmico sob pena de não se reconhecer o caráter orgânico da obra.Com efeito, a obra pictórica se baseia na condensação expressiva, mas, por outro lado, a obra cinematográfica duplica sem mediações a realidade que o espectador vê representada na tela. A porção de realidade que é vista no cinema é equivalente à visível na natureza? Claro que não! Porque, mesmo nas obras chamadas documentais, as inúmeras deformações introduzidas pela objetiva da máquina de filmar, a câmera, determinam uma diferenciação entre a realidade e a natureza. E bastariam, para constatar a diferença, a bidimensionalidade e o caráter convencional da cor da imagem fílmica para funcionar como elementos comprovativos da diversidade entre esta e a correspondente parte da realidade. Por meio da chamada impressão de realidade, o cinema tem a vantagem de abarcar tanto a função foto-reprodutora da imagem fílmica como sua incurável tendência para interpretar o real. Existindo esta impressão - como de fato existe, o cinema pode, além de simultaneamente mostrar e demonstrar, testemunhar e, conjuntamente, ajuizar, e, mais importante, denotar e ao mesmo tempo conotar. E nenhuma dessas práticas é dissociável da outra. Assim, o cinema possui uma faculdade única e jamais reconhecida a qualquer outra arte: a de transformar o mundo em discurso servindo-se do próprio mundo. Do próprio mundo e não de sinais arbitrários (como faz a literatura) ou semelhantes (como faz a pintura), empregados, estes sinais, em substituição do próprio mundo. Promovendo esta transformação - a do mundo em discurso, o cinema possui uma atitude escritural que vem somar-se ao seu caráter foto-reprodutor originário. E o filme nasce do aproveitamento consciente de tal atitude, isto quer dizer: do discurso singular individualizado dentro do sistema de linguagem representado pelo cinema.Enquanto no sistema de comunicação verbal a pessoa que fala tem à disposição um repertório codificado ao qual vai beber (o vocabulário), o mesmo não acontece, porém, no caso da comunicação fílmica - por não existir, aqui, um repertório abstrato de imagens análogo a que se possa recorrer de vez em quando. O que pode ser debitado ao caráter não convencional do signo fílmico, pois, a rigor, o cinema fala uma única língua universal. Mas, mesmo no âmbito de uma tal língua, é possível um uso individual, que não seja nem banal nem previsível. No cinema, o modo de utilização subjetiva da língua da realidade, por assim dizer, é representado pelo estilo, pelo ponto de vista adotado pelo cineasta. As óticas sob as quais a realidade pode ser encarada são infinitas, ainda que ela seja uma só, pois, como prova, tem-se o fato de um mesmo acontecimento tratado por diferentes realizadores redundar em vários discursos diferentes que poderão nada ter em comum - a não ser, precisamente, o pretexto inicial.