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18 novembro 2010

"Spartacus", de Stanley Kubrick


Considero Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, o melhor épico da história do cinema, ainda que o diretor não tenha tido a oportunidade de concebê-lo na sua integridade, pois, tratando-se de uma produção da companhia de Kirk Douglas, a Byrna (nome em homenagem à sua mãe), o autor de A Laranja Mecânica somente foi convidado após a desistência de Anthony Mann, que entrou em conflito com o poderoso producer.
Douglas, que já tinha trabalhado com Kubrick em Glória feita de sangue (Paths of glory, 1958), e admirado muito o seu trabalho; com a saída de Mann Kirk Douglas convidou Kubrick para assumir a direção, apesar dos protestos de alguns acionistas de sua empresa produtora, que o consideravam um imberbe para uma empreitada caríssima como Spartacus. O fato é que o filme, monumental, possui características kubrickianas na maneira de encenar, na composição do enquadramento (a câmera no chão com os gladiadores de corpo inteiro, por exemplo, em angulações ousadas), no sentido peculiar do ritmo, do timing, e da concepção de montagem (Laurence Olivier, como Crassus, enquanto fala para sua tropa, tem, intercalando-a,  Spartacus a falar para seus comandados em montagem alternada extremamente funcional).
O melhor de tudo, porém, é a seqüência da batalha final, que somente poderia ter sido dirigida mesmo por um mestre como Kubrick, pois se assemelha, pelo impacto, pela força expressiva, à seqüência da batalha do gelo de Alexandre Nevsky (1938), de Serguei Eisenstein. Se, nesta, a partitura é de Prokofiev, a deSpartacus é de Alex North, músico especializado em grandes temas para cinema e que tem neste filme um de seus momentos de glória.
Filme de produtor, Spartacus, ainda que comandado administrativamente por Kirk Douglas, este confiou na capacidade daquele rapaz e lhe deu carta branca para a concepção das grandes seqüências. Este imenso espetáculo, singular na história do cinema, saiu (há alguns anos) em edição especial cheio de extras em DVD, e pode ser considerada a superprodução hollywoodiana que melhor se conservou com o passar do tempo e, vista hoje, é como se o filme tivesse sido feito agora.
A sensação que se tinha, quando do seu lançamento em 1961, era de um filme avançado para a sua época em termos da sua concepção de mise-en-scène, deixando em segundo plano Ben-Hur e Os dez mandamentos, embora estes possam, também, serem considerados espetáculos primorosos dentro das fronteiras de seu gênero. Spartacus, no entanto, ganha de todos eles por sua magnificência, sentido de cinema pulsante, elenco inexcedível. E Laurence Olivier, como Crassus, tem, aqui, uma de suas performances mais eloqüentes.
Baseado em livro de Howard Fast, com roteiro do grande roteirista Dalton Trumbo (que entrou para a lista negra de MacCarthy), Spartacus, sobre ser um épico empolgante, é um filme que mostra a relação escravocrata e a necessidade de um grito de liberdade.
Em Roma, um escravo trácio (Kirk Douglas/Spartacus) é comprado por um comerciante romano, Batiatus Lentulus (Peter Ustinov, que ganhou o Oscar por este desempenho) para a sua escola de gladiadores. Nesta vem a conhecer uma bonita escrava inglesa, Varinia (Jean Simmons) pela qual se apaixona. Quando o treinamento de Spartacus se encontra quase concluído, um general de Roma, Crassus (Laurence Olivier) faz uma visita à escola e exige, para satisfazer os desejos sadicos de sua comitiva, que dois escravos/gladiadores lutem até à morte. O escolhido é Spartacus, que se vê obrigado a enfrentar o guerreiro etíope Draba (Woody Strode, um dos atores preferidos de John Ford, negro alto e forte). Draba é vitorioso, mas se recusa a matar o companheiro. Tem início então uma rebelião e a fuga quando Spartacus começa a comandar um verdadeiro exército de escravos para lutar contra Roma.
A versão original, segundo dados do Imdb (The Internet Movie Database), o maior banco de dados sobre cinema do mundo, incluía uma cena em que Crassus tenta seduzir Antoninus (Tony Curtis). O Código Hayes, porém, então vigente e draconiano, não autorizou e a cena foi cortada da versão exibida nos cinemas quando de seu lançamento. Com a restauração milionária realizada em 1991 (fotograma por fotograma) a cena foi acrescentada. Mas, durante o trabalho de restauro, a equipe encontrou alguns problemas. A faixa sonora estava perdida (música e diálogos). Os atores, assim como foi feito em Lawrence da Arábia, de David Lean, os que ainda estavam vivos, se prestaram a dublar seus personagens. Mas a voz de Laurence Olivier, particularíssima, com ele já morto, deve que ser dublado por Anthony Hopkins, que procurou imitar, na medida do possível, a voz do maior ator de teatro do século XX.
Vi Spartacus, pela primeira vez, no velho cine Tupy (Salvador/Bahia) antes da reforma de 1968. No já distante ano de 1961, quando, com 11 anos, quase que não conseguia entrar, pois, na época, o filme era proibido para menores de 14 anos. Assim, talvez meu entusiasmo pelo filme tenha vindo pelo impacto que provocou no adolescente que estava se formando como cinéfilo impertinente. Mas continuei, pela vida inteira, a ver Spartacus, indo assisti-lo onde estivesse passando. A última vez que foi exibido em cinema, creio, se a memória não falha, foi nos anos 70, no Tupy, em cópia esplendorosa na bitola de 70mm. Depois passou para a fita magnética, em horrendo full screen, e, agora, vem restaurado em edição que respeita a integridade de seu enquadramento, isto é, preservando o cinemascope original.
O elenco é excepcional, um cast de primeiríssima: além de Douglas, Simmons, Olivieri, Ustinov, Strode, estão presentes: Tony Curtis, Charles Laughton (em fim de carreira e que tem aqui uma interpretação soberba como um senador romano), John Gavin, Nina Foch, John Ireland, Herbert Lom, John Dall (um dos estudantes assassinos de Festim Diabólico/Rope, 1948, do mestre Hitch), Harold J. Stone, Charles MacGraw, entre outros. A iluminação é de um artista da luz: Russell Metty.
O fascínio que permanece em Spartacus se deve muito à contribuição de Stanley Kubrick como metteur-en-scène e, também, pela confiança que Kirk Douglas depositou nele. Produtor de visão, este dispensou a Kubrick a necessária liberdade para conceber o espetáculo, embora com algumas discussões e atritos por causa do temperamento do realizador de Lolita.
Spartacus é um filme permanente que, se for ser sincero, o colocaria entre os 10 melhores filmes que já vi. Há, nestas listas de melhores, as listas afetivas e as protocolares, que procuram aferir a importância dos filmes no processo histórico da sétima arte. Posso dizer que após os 11 anos de idade, quando o vi pela primeira vez, naquele Tupy com o teto cheio de teias de aranhas negras, Spartacus permaneceu comigo, fazendo parte, portanto, de minha história de cinéfilo.
Spartacus foi lançado no Brasil há quase meio século no dia 17 de novembro de 1960 (mas para a Bahia veio somente no ano seguinte).

17 novembro 2010

Duas décadas sem Carlos Alberto Vaz de Athayde



Poucos os cineastas idealistas como Carlos Alberto Vaz de Athayde, que, falecido há vinte anos, em julho de 1990, vitimado por um fulminante enfarte, deixou imensa lacuna no meio cinematográfico baiano, embora, considerando a falta de memória típica dos soteropolitanos, a maioria não mais se lembre desse autêntico Don Quixote.  E Quixote em todos os sentidos, pois sua idéia fixa, sua vontade de fazer cinema, sua abnegação pela causa, faziam com que lutasse contra moinhos de vento. Vamos recordá-lo, portanto.

 Fotógrafo, cineasta, escritor, Carlos Alberto Vaz de Athayde fora, antes de tudo, um amante do cinema, um idealista, um sonhador que acreditara nas possibilidades de o baiano poder vir a se expressar através das imagens em movimento. Humanista, de natureza tranqüila, lhano trato, caráter de retidão indiscutível, Athayde, quando comprara, no Rio de Janeiro, em 1965, durante o Festival Internacional de Cinema que ali se realizara, uma câmara Paillard Bollex, decidira colocar esta a serviço do cinema baiano. No seu retorno da temporada carioca, pensara num projeto há muito acalentado: realizar em Salvador um curso de iniciação cinematográfica. Em 1967, no seu primeiro semestre, conversando com o sociólogo Yves de Oliveira, sentira neste o entusiasmo pela idéia e, principal responsável pela Escola de Sociologia e Política, que ficava situada na Ladeira da Barra (logo no princípio), colocou esta à disposição de Athayde como um espaço disponível para a realização do curso desejado. Com sua câmara Bollex de 16mm, Athayde programara suas aulas de "Fotografia no cinema" e, para ajudá-lo em outras disciplinas, convidara Orlando Senna, que se encarregara de "História do Cinema", e Carlos Vasconcelos Domingues, que ficara responsável pela "Sociologia Cinematográfica". Vendo uma nota no jornal, este comentarista, ainda com seus dezessete anos incompletos,  resolvera se inscrever e, então, na Escola de Sociologia Política, que depois seria fechada pela ditadura, viera a conhecer o cineasta Carlos Alberto Vaz de Athayde.

O curso serviria de oportunidade para que várias pessoas interessadas em cinema se conhecessem e daí partissem para a formação de um grupo de estudos cinematográficos que, meses depois, estruturado, organizado, tomara o nome de GIC (Grupo de Iniciação Cinematográfica), núcleo que dera origem à evolução de alguns dos cineastas que hoje batalham no cinema da Bahia. Athayde fora um animador, entusiasta do grupo, fazendo extrapolar o curso para uma amizade com os demais integrantes deste, os quais, neófitos, procuravam dar seus primeiros passos na arte da contemplação da obra fílmica. Reunindo-se, a princípio, na Residência do Universitário, R2, na Vitória, o GIC não tardará a tentar uma empreitada mais arrojada: a realização de um filme em 16mm, curta-metragem, com roteiro escolhido democraticamente entre os apresentados pelos membros do grupo. E surgira ”Perambulo”, obra impregnada de realismo social, de cinema ’enragé’, influência do Cinema Novo, de Glauber e do neo-realismo. Quem seria o diretor de fotografia? Athayde, evidentemente, que emprestara sua câmera e seu trabalho, sempre disposto a animar a equipe, a indicar-lhe os caminhos dos sonhos concretizados. Antes, porém, a mesma Paillard Bollex servira a O Carroceiro, de Ney Negrão (de saudosa memória), com Athayde mirabolante, entusiasmado, fazendo as maiores estripulias para dotar o filme de ângulos inusitados. E para isso, com suas propostas de enquadramentos ‘sui generis’, Carlos Alberto Vaz de Athayde, com seu indefectível paletó e gravata, subira até em árvores na tentativa de captar um ângulo melhor para O Carroceiro.

.Outra característica de Athayde era a sua impontualidade. Nunca chegara a um encontro na hora certa. Seu tempo não conseguira se ajustar à temporalidade da rotina diária, vivendo num tempo à parte, particular. Numa filmagem de “Perambulo”, marcada para as 9 horas da manhã, Athayde, como fotógrafo, fizera a equipe lhe esperar até às 14 horas. Lembra-se este comentarista que todos os componentes da equipe foram à casa de Athayde (que, nesta época, morava na Princesa Isabel, perto o Clube Bahiano de Tênis) e o encontrara ainda em pijama mergulhado (literalmente) num prato de feijão. Poder-se-ia dizer que Athayde fora uma figura folclórica do cinema baiano, mas, inegável e indiscutível, o seu prestígio como um homem abnegado que amara o cinema sobre todas as coisas e nunca se recusara a participar e ajudar aqueles que se iniciavam no ‘métier’ cinematográfico. E fora assim que ajudara José Umberto no longa que este realizara em 1972 chamado “O Anjo Negro”, participando, ainda, como ator na figura de um padre, papel, aliás, que parecia lhe cair como uma luva, pois fora também como padre que aparecera em “Doce Amargo”, de André Luiz de Oliveira e José Umberto, curta premiado no Festival do "Jornal do Brasil" e Mesbla.

Carlos Alberto Vaz de Athayde também filmara projetos pessoais, como um filme inacabado sobre os monumentos de Salvador: “Ensaio de Perspectiva”, cujo título já dá para se ter uma idéia da tentativa de dimensionamento estético na arte de fotografar. Nos últimos anos, vivera sozinho, num apartamento na Ladeira da Barroquinha, de onde vira o poente pela última vez, por trás da imagem do poeta Castro Alves. Sozinho, meio desiludido, o cinema ficara como coisa do passado.


Carlos Alberto Gaudenzi, Kabá, cineasta baiano, depois de ter lido esta minha pequena homenagem ao grande Athayde, enviou-me uma preciosa mensagem que faço questão de aqui registrar:
"Setaro,

Bela homenagem a Athayde. Por merecimento, o exemplar amigo foi lembrado por você. Meu quase primeiro curta O CORTIÇO (nada a ver com o livro do Azevedo), foi rodado com a velha Paillard Bolex de Athayde. Ficamos no cortiço (Pelourinho, bem perto do Hotel de mesmo nome) uns 3 dias, fazendo a pré-produção, anotando, fazendo o roteiro, tomando depoimentos etc. Rodamos numa sexta-feira num verdadeiro passeio de câmera sobre os 4 andares do casarão, cenas que serviriam de base para o filme. Ali, moravam umas 30 pessoas de 5 ou 6 diferentes nacionalidades e baianos mesmo em maioria. Lembro que no dia seguinte encontramos o Cliton Vilella no Pelourinho e conversamos sobre amenidades do meio no Rio e S.Paulo). No dia seguinte iríamos filmar 3 depoimentos (sem sync, na base de 5 palavras e corte para off, flash back e outros recursos improvisados). Athayde chegou a contactar um ex-comandante do Corpo de Bombeiros, seu conhecido, pois precisava viabilizar umas cenas que eu queria fazer de fora para dentro dos quartos, numa visão espacial e, certamente, esteticamente ricas. Para tanto estava tentando conseguir a escada Magirus que usaríamos como uma formidável grua. No domingo, lá estava a escada Magirus...tentando apagar o fogo que destruira o casarão, o cortiço e o nosso filme. Ficamos perplexos, sem acreditar no que víamos. Por muita sorte, ninguém morreu. Morreram sonhos de muitas pessoas que perderam pequenos bens e muitas referências. E também morreu ali o nosso sonho do primeiro filme, depois das aulas de padre barçote, Paulo Emílio Salles Gomes e das palestras de Walter da Silveira num breve curso, não me lembro promovido por quem, no Palácio Arquiepiscopal, na Praça da Sé. Roberto Gaguinho à época trabalhando na Tv Itapuã, resgatou um poucos dessa história, revelando os negativos 16mm P&B que também se perderam no tempo.

Conto essa história para reverenciar a memória de Carlos Alberto Vaz de Athayde, ou simplesmente, Athayde, um apaixonado pelo cinema que fazia o que estivesse ao seu alcance sem nenhum interesse comercial, confirmando sempre grande apreço pelos seus amigos e pelo cinema que, para ele, era vida, era tudo".
abraços,
Kabá
* Acho que a Paillard Bolex de Athayde deveria fazer parte do museu de Roque Araujo na Dimas. Ele tinha um irmão que foi diretor do serviço de meteorologia do Estado que ficava no alto de Ondina. Talvez seja uma pista para se contactar a família.

16 novembro 2010

Dez momentos inesquecíveis


Colhidos na memória, dez momentos antológicos do cinema. Há, porque a colheita foi feita sem uma investigação mais apurada, outros momentos que venha considerá-los maiores. Os dez aqui citados são, no entanto, delirantes como ato de criação e da beleza cinematográficas.
1) Quando Kim Novak sai do banheiro já transfigurada em Madeleine, a pedido de James Stewart, é como se uma auréola fosse imposta à imagem da mulher, imagem fascinante, que não parece real. Em seguida os dois se beijam e a câmara passa ao espectador a impressão de estar circulando ao redor dos personagens envolvidos no idílio amoroso. Enquanto ela, a câmara, circula, imagens outras aparecem e desaparecem ao fundo, imagens do lugar onde Madeleine tinha se atirado. Ao ver Kim saindo, feito Madeleine, Stewart, emocionado, chega a chorar. A música, brilhante, de Bernard Herrmann dá o tom adequado e a solenidade auditiva necessária. Um corpo que cai (Vertigo, 1957), de Alfred Hitchcock.
2) Os travellings se sucedem na mansão, a câmara passeia pelos seus longos e intermináveis corredores, como se à procura de um cinema que se faz como um processo de investigação do universo mental. Delphine Seyrig salta na cama imensa, como se fosse um pássaro numa gaiola dourada. Nas imagens, a incursão na mente. Matéria de memória. O ano passado em Marienbad (L'année dernière a Mariebad, 1961), de Alain Resnais. Com roteiro do pai do nouveau Roman, Alain Robbe Grillet.
3) A suspeita do espectador se faz através do ato criador do artista. Inventor de fórmulas, o artista criador procura sugerir ao invés de mostrar explicitamente. Diferentemente de obras em que o recurso fácil ao susto é um dos sustentáculos do choque, nos filmes realmente criativos é muito mais a sugestão que encanta e faz suspense. É o ato criador do cineasta a se utilizar dos recursos da linguagem fílmica, dos seus elementos constitutivos. Assim, Cary Grant, numa angulação expressionista, sobe a escada, uma grande escada meio circular, com um copo de leite na mão. O espectador suspeita que o leite está envenenado e ele vai matar a mulher. O realizador colocou uma lâmpada dentro do copo para fazê-lo mais sugestivo. Suspeita (Suspicion, 1941), de Alfred Hitchcock.
4) O início lembra um clássico antigo do cinema: A turba, de King Vidor. O enquadramento dá idéia do formigamento de um escritório burocrático estadunidense, com suas mesas e máquinas de escrever e muitos funcionários trabalhando. Um simples enquadramento capaz de sugerir um escaldante depósito de homens e máquinas. Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960) de Billy Wilder.
5) No final do Cidadão Kane, morto Charles, o magnata da imprensa, suas coisas, no Palácio de Xanadu, são empilhadas para serem transferidas. Caixotes e mais caixotes, e o cineasta faz com que a câmara execute um travelling para mostrar ao espectador a imensidão da herança de Kane. Mas, ao executar o travelling, a impressão que se tem dos caixotes é a de vários arranha-céus de uma grande metrópole. O efeito é perfeito. E a câmara, sempre em travelling, termina por parar numa imensa lareira onde o fogo começa a consumir o trenó de Charles menino no qual está inscrita a tão procurada palavra-enigma de Rosebud.Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles.
6) No princípio, apresentando-se como mágico, com cartola e tudo, Welles diz que tudo que falar durante uma hora é verdade, mas a partir desta, o que contar a partir de uma hora de projeção de filme, é mentira. Assim, tem-se o relato sobre o falsificador Elmyr De Hory. E depois a história de uma musa que inspirou Picasso. A história sobre De Hory é verdadeira. A história da musa é pura mentira. Brilhante exercício de cinema, um ensaio sobre a faculdade do artista em deturpar a arte e a realidade. E, principalmente, sobre a arte da falsificação.Verdades e mentiras (F for fake, 1975), de Orson Welles.
7) Quando Manoel mata o fazendeiro latifundiário por causa da exploração, o tom retumbante toma conta do filme com um ritmo de cavalgada que lembra John Ford. Os capangas do fazendeiro investem contra a modesta morada de Manoel, matando sua mãe. O clima é alucinante, com ritmo rápido, envolvente. O cinema se faz pleno. Deus e o Diabo na terra do Sol, 1964, de Glauber Rocha.
8) Carl Theodor Dreyer, cineasta dinamarquês, faz um cinema que tem um extraordinário poder de convencimento. O poder de sua arte leva a um poder de verdade nas suas imagens em movimento. A sequência é de uma obra-prima de sua filmografia. O cenário, de um branco que resplandece, comporta o caixão de uma mulher que, morta quando dava à luz, é o centro das atenções. De repente, pela força do verbo de um irmão, que pede à Deus que a faça retornar à vida, ela acorda do sono profundo e ressuscita. Assim dita, não se pode ter uma idéia nem de longe da beleza deste momento, um dos maiores do cinema em todos os tempos. A palavra (Ordet, 1941), de Carl T. Dreyer.
9) James Cagney é um executivo da Coca-Cola na Berlim de 1961, empresário carreirista e sempre disposto a agradar o chefe nos Estados Unidos. Este lhe pede o favor de hospedar a sua filha (Pámela Tiffin) que está a fazer um tour pela Europa e pretende ficar um tempo na Alemanha. A mulher, porém, vem a se apaixonar por um berlinense oriental, comunista, o que contraria e deixa preocupado Cagney. É o ponto de virada dessa comédia genial. O final, no entanto, é o que interessa aqui. No aeroporto, com a resolução do conflito, Cagney convida a sua família para mostrar uma máquina que tira as cocas-colas em lata. O último plano o apresenta a tirar, um a um (daí o título original: one, two, three), os refrigerantes, mas, de repente, toma um susto quando verifica que veio um errado e de empresa concorrente: Crush. Cupido não tem bandeira(One, two, three, 1961), de Billy Wilder.
10) Ethan (John Wayne), soldado sulista derrotado na Guerra de Secessão, parte, com um parente meio índio (Jeffrey Hunter) para encontrar a sobrinha raptada pelos índios após ataque que destruiu a casa de seus pais. A perseguição demora mais de dez anos e quando, finalmente ela é encontrada, ele a traz de volta para seus familiares. Todos entram, felizes, em casa. A câmera, dentro desta, observa Ethan na porta que recua, sem entrar, e sai a andar numa reflexão acerca da solidão extrema do herói cumprida a sua missão.Rastros de ódio (The seachers, 1956), de John Ford.

II Mostra de Cinema de Cinema & Vídeo de Jacobina

Para maiores informações: http://mostradejacobina2010.wordpress.com/

15 novembro 2010

Entre umas e outras

1.) Um momento sublime de Rastros de ódio (The seachers), de John Ford, quando, na sequência final, encontrada a sobrinha (Natalie Wood) criada no meio dos índios, John Wayne (Tio Ethan) a traz de volta ao seio de sua família. No enquadramento (e, para vê-lo melhor é preciso que se dê um clique nele), há um sentido muito poético da paisagem e da ansiedade da espera, tantos anos se passaram. Para mim, The seachers é o melhor filme do Homero do cinema, que é, sem dúvida, John Ford. Na filmografia fordiana, no entanto, há outras obras que são primas, contrariando o próprio conceito de obra-prima, que deveria ser uma na carreira de um cineasta. O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance) é, na minha opinião, um monumento da arte no século XX. Assim como tantas outras. Ver Ford é sentir o cinema em sua pureza absoluta, um exercício de dignidade e que proporciona um prazer incomensurável ao cinéfilo.

2.) Morreu Jill Clayburg. Embora o registro atrasado, fica, porém, uma nota. Ela se destacou em Uma mulher descasada, de Paul Mazursky (por onde anda este realizador que já chegou, inclusive, a filmar em Ouro Preto e na Bahia um filme chamado Luar sobre o parador, com Richard Dreyfuss, Raul Julia, Sonia Braga?). Mas quem soube mostrar todo o talento dramático de Jill Clayburg foi Bernardo Bertolucci em La Luna, quando a atriz faz uma mãe, cantora de ópera, que tem relações incestuosas com seu filho. E a vida prossegue: enquanto muitos morrem, muitos continuam a viver. Jane Fonda acaba de ser operada para tirar um nódulo canceroso da mama. Mas se salvou. Tem já 72. E parece que foi ontem que a vi num strip-teaser espacial em Barbarella, de Roger Vadim, ou como a garota saliente de Dívida de sangue (Cat Ballou).

3.) O livro que vai ser lançado junto ao DVD de Cascalho, de Tuna Espinheira, no próximo dia 15 (daqui a um mês) é a última edição do romance original do escritor consagrado Herberto Salles. Não se trata, como alguns chegaram a pensar, de um livro sobre o filme. Trata-se do romance em toda a sua integridade. Cascalho também será apresentado na Mostra de Cinema e Vídeo de Jacobina, a realizar-se entre os dias 6 e 10 de dezembro.

4) Esta mania de, agora, em muitos DVDs, se colocar "baseado em fatos reais" é de uma estulticie monumental.