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14 novembro 2008

A crítica como exercício da inteligência

Este artigo, publiquei-o quando do lançamento de Um filme por dia, coletânea de críticas do célebre crítico Antonio Moniz Vianna organizada por Ruy Castro. O texto vai como saiu. Sou do tempo dele, quando ia comprar, aqui em Salvador, o Correio da Manhã que somente era vendido na Praça Municipal. Província tranquila, saia de meu bairro, Nazaré, e ia a pé - uma distância considerável - à citada praça para adquirir jornais do Rio e de São Paulo. No Correio da Manhã, pontificava a figura grave de Moniz Vianna, que foi quem me ensinou a apreciar um travelling em Robert Aldrich. Aliás, a bem dizer, o pouco que sei sobre cinema - e sei muito pouco - aprendi indo ao cinema e lendo críticas como as de Moniz Vianna. Sou um autodidata, portanto. E também comprando livros sobre a arte do filme, a procurar, neles, o conhecimento necessário à apreciação estética de uma obra cinematográfica. Mas vamos deixar de delongas para ir direto ao texto.
"A aparição em livro da reunião das críticas de Antonio Moniz Vianna se torna, desde já, o acontecimento editorial, em relação às obras que tratam do cinema, mais importante do ano, pois se trata de uma coletânea que contém a quintessência do maior crítico cinematográfico de todos os tempos, que pontificou, diariamente, no Correio da Manhã, de 1946 e 1973. Abandonou a crítica neste ano, quando da morte de John Ford, seu cineasta favorito, escrevendo logo um texto e se despedindo dos leitores. Antonio Moniz Vianna, no entanto, acaba de completar 80 anos, com a lucidez e a consciência inabaláveis. Mas há três décadas preferiu o exílio voluntário de seu apartamento em Copacabana. Na época de sua saída, decepcionado com a crise criativa do cinema contemporâneo, não viu mais razão de continuar na labuta diária da crítica. Para ele, o apogeu do cinema se deu entre 1912 e 1962, acontecendo, a partir daí, o seu perigeu. Pertenceu à geração dos grandes críticos, homens cultos, preparados, dedicados, com profundo amor pelo cinema, a exemplo de Walter da Silveira, aqui na Bahia, Francisco Luiz de Almeida Salles, Rubem Biáfora e Paulo Emílio Salles Gomes, em São Paulo, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva, entre muitos outros. Moniz, no entanto, ao contrário de Walter, que se poderia chamar de ensaísta – e um grande ensaísta de cinema, diga-se de passagem, era um verdadeiro crítico. O título do livro editado pela Companhia das Letras não poderia ser mais exato e significativo: Um filme por dia, porque Moniz Vianna, antes de tudo, era um crítico do batente diuturno, que copiava as fichas técnicas dos filmes – completíssimas – no escuro da sala de projeção com uma caneta na mão.
(Antonio Moniz Vianna nasce em Salvador em 1924, mas desde os 11 anos se transfere para o Rio de Janeiro, e, mais tarde, antes do jornalismo, ingressa na Faculdade Nacional de Medicina. A partir de 1946 começa a assinar críticas de cinema no Correio da Manhã, vindo, nos anos 60, a ocupar, neste prestigioso matutino carioca, o cargo importante de redator-chefe. Entre 1956 e 1965, é diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, quando organiza importantes e inéditas mostras (para a época) dos cinemas americano, francês, italiano, e russo, que, até hoje, para aqueles que tiveram a sorte de vê-las, ainda se encontram guardadas na memória. Moniz, por exemplo, trouxe, pela primeira vez, em 1958, uma cópia de Cidadão Kane ao Brasil, apesar dessa obra-prima de Orson Welles ser de 1941. Vieram também cópias de obras essenciais como as de Griffith (O nascimento de uma nação, Intolerância), os primeiros filmes de Méliès e Lumière, as obras fundamentais do neo-realismo italiano e do realismo poético francês, além dos filmes da escola soviética (Eisenstein, Pudovkhin, Dovjenko, Dziga Vertov, etc). Em 1965, organizou o maior festival de cinema que o Brasil já conheceu: o Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, cujo júri, para se ter uma idéia, entre outros, era composto por monstros sagrados como Fritz Lang, Joseph Von Stenberg, Vincente Minnelli. Nunca, em momento algum de nossa história, houve, no país, festival de tal envergadura).
Das seis mil e tantas colunas que, segundo o crítico Paulo Perdigão, foram escritas pelo mestre, apenas setenta e poucas, após processo de seleção rigoroso efetuado por Ruy Castro e pelo neto do autor, Eduardo Moniz Vianna, constam de Um filme por dia, obra imprescindível e obrigatória que nenhuma pessoa que se queira cinéfila pode deixar de adquirir. Crítico de choque, de estilo admirável – somente comparável aos grandes escritores, Moniz Vianna, apesar dos insistentes apelos dos amigos e de editoras, sempre se recusou a publicar seus escritos. Uma de suas filhas, Isadora, chegou, há alguns anos atrás, a lhe pedir, mas o pai não lhe atendeu. Quem conseguiu o grande feito foi seu neto, Eduardo, que, afinal, entrando no arquivo secreto do crítico, e ajudado pelo especialista Ruy Castro, selecionou o material. Pena que a publicação abarque apenas um por cento do que Moniz escreveu por toda a vida. Mas o que se encontra em Um filme por dia é caviar, delicatessen em matéria de crítica cinematográfica.
(Em plena adolescência, em 1964, aos 14 anos, conheci Antonio Moniz Vianna através das páginas do Correio da Manhã. Os jornais do eixo Rio-São Paulo, naquela época, somente eram vendidos na Praça Municipal na Banca do Careca e, aos domingos, religiosamente, comprava o Correio da Manhã para ler Moniz Vianna, principalmente as suas completas filmografias que eram publicadas no Quarto Caderno – o maior suplemento cultural do Brasil, batendo, mesmo, o do Estado de São Paulo e o afamado SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil). Ficava estupefato (esta, a palavra) como um filme podia ser dissecado com tanta erudição por um crítico. Admirava, em Moniz Vianna, o seu imenso conhecimento do assunto e, principalmente, a maneira dele escrever, o seu estilo, admirável. Moniz, como disse um amigo, e discípulo, Paulo Perdigão, era um crítico de choque).
Moniz Vianna, respeitadíssimo em sua época, era, por outro lado, marginalizado pelos cinemanovistas. Glauber Rocha tinha por ele grande admiração, mas se aborreceu com a sua crítica demolidora a Terra em transe, que Moniz espinafrou – aliás sem razão, pois se trata do melhor filme brasileiro de todos os tempos. O grande crítico, porém, tinha lá suas idiossincrasias, predileções, manias. Adorava John Ford a ponto de deixar a coluna diária no Correio da Manhã assim que soube de seu falecimento. “O cinema acabou”, disse, na época, o polêmico articulista que além de crítico era, também, redator-chefe do jornal por longos anos.
(A crítica de cinema, hoje, como praticada por Moniz Vianna, Rubem Biáfora Paulo Emílio Salles Gomes, Cyro Siqueira, Walter da Silveira, José Lino Grunewald, Paulo Perdigão, entre muitos outros, não mais se exercita nos tempos que correm. O que se vê, atualmente, são resenhas e comentários, a maioria delas vinculada à propaganda dos últimos lançamentos da indústria cultural cinematográfica made in Hollywood. Os estudos mais aprofundados sobre a arte do filme se encontram nos calhamaços das dissertações e teses de mestrados e doutorados e, mais recentemente, no espaço virtual. Os jornais, decadentes, não se interessam a dar espaço para reflexões sobre o cinema, preferindo textos que funcionem como guias de consumo. Mas, neste particular, a internet tem oferecido a oportunidade para o aparecimento de sites comprometidos com a reflexão teórica. De qualquer maneira e de qualquer forma, o fato é que, com a decadência da cultura humanística, os acadêmicos-críticos, ou os críticos acadêmicos, não possuem mais um estilo atraente na exposição da matéria, condicionados que ficam pelos grilhões da linguagem da academia, uma verdadeira camisa-de-força que impede o livre exercício do pensamento livre de amarras. Vale transcrever, aqui, o que escreveu o jornalista Getúlio Bittencourt sobre Antonio Moniz Vianna: “Em quantidade, apenas o americano Bosley Crowther, do The New York Times, se apresenta com tamanho similar (ambos somam 28 anos de ofício cada). Em termos de qualidade, será preciso buscar nomes na França para encontrar, dispersos, predicados comuns em Moniz Vianna: André Bazin pela profundidade de análise, Georges Sadoul pelo conhecimento enciclopédico. Já na elegância do texto, só se pode comparar Moniz Vianna com grandes escritores que se dedicaram ocasionalmente à crítica de cinema, como o argentino Jorge Luis Borges na revista Sur, o inglês Graham Greene no The Spectator de Londres, o americano James Agee na revista Time, o colombiano Gabriel García Márquez no El Espectador de Cartagena”).
Com o desaparecimento dos suplementos culturais, a crítica de cinema foi substituída pelos comentários e resenhas, assim como a literária, de rodapé, também já não mais existe. O jornalismo dito cultural, hoje, está muito atrelado ao mercado, perdendo, com isso, a independência. Na Bahia, por exemplo, não existe crítica de arte. Os artistas querem ser badalados, elogiados, tietados, e quando alguém, por acaso, os critica há, sempre, uma indisposição, uma vontade de nomear aquele que diz que o rei está nu como um maledicente. Moniz Vianna foi um bravo guerreiro e um crítico como ele já não mais existe na sociedade contemporânea ou, como se quer agora, na contemporaneidade. Os escritos de sua autoria reunidos em Um filme por dia revelam não apenas um imenso estilista e um erudito nas coisas do cinema, mas refletem, também, o espírito de uma época. Que o vento, já saturado, levou-a para sempre. Resta, agora, a recusa à banalidade ululante da cultura ou a aceitação passiva, mascarada de uma alegria debilóide, a justificar que os tempos pós-modernos abrigam um contingente maciço da dementia precox".

13 novembro 2008

Sim, "Dagoberto" já está "in paradise"

Transcrevo o que escrevi hoje, 13 de novembro em minha coluna da Tribuna da Bahia.
"Lançado quinta passada no Cinema do Museu, "Dagoberto vai ao paraíso", de Raul Moreira, assinala a estréia na direção cinematográfica desse jornalista irrecuperável, mas, desde logo, disposto a jogar na tela o seu humor e a sua “nonchalance”, que caracterizam a sua esfuziante personalidade.

A cópia exibida, em 35mm com Dolby, para um cinema com gente a sair pelo "ladrão", provocou 20 minutos (trata-se de um curta metragem de divertimento e, também, informação, pois o filme faz uma rápida panorâmica sobre os vultos brasileiros das últimas décadas).

Antes de "Dagoberto" começar a narrar a sua trajetória, Moreira, performático, decidiu que o filme deveria ser parido, "comme il faut". E convidou todos os presentes, que estavam se fartando de chopes e salgadinhos, a subirem a escada que leva à entrada do Cinema do Museu e se perfilarem pelas paredes (para se chegar à sala propriamente dita do Cinema do Museu, que fica no Corredor da Vitória, há a necessidade de se descer uma ladeira bem "proporcionada"). O "parto", ainda que ausente um médico obstetra, veio através de uma surpresa, qual seja a de o próprio diretor, Raul Moreira, vestido de noiva e grávida.

A "via-crucis" de Dagoberto é o calvário de um velho Chevette, que pede surrealisticamente a seu último dono que o leve a um ferro-velho para ser desmontado e amassado. O Dagoberto do título é, portanto, o Chevette, que, na sua última "viagem" em vida, a caminho do cadafalso, recorda os seus antigos donos, e através destes, o realizador faz uma espécie de panorâmica dos acontecimentos na política e no comportamento brasileiros dos derradeiros tempos. A voz, portanto, que "comanda" a narrativa, é a voz surrealista do provecto Chevette a ir ao encontro da destruição mas que "pensa", talvez, entrar no paraíso.

Filme de montagem, que introduz na sua estrutura narrativa além das situações em plano "real", imagens de arquivo e animação. Do primeiro dono do Chevette em 1983, o filme acompanha os seus outros compradores e, com eles, registra um certo tipo de comportamento da época abordada, como o rapaz que, a princípio desregrado e amante do "dolce far niente", que se torna um típico yuppie, o padre pedófilo (interpretado com a elegância e a compostura habituais por Lula Meteorango), a moça bonita (aliás a imagem dela no navio, acompanhada de um menino é bem sugestiva).

O único senão que se poderia fazer a "Dagoberto vai ao paraíso" é que as histórias exigiriam uma maior duração para se ter um quadro mais exato da época. Mas a síntese tem mais urgência do que o desdobramento ficcional maior, porque no cinema baiano há a necessidade de se ser sintético por uma questão de sobrevivência, viabilidade e exeqüibilidade.

O mote do filme? Com a palavra Raul Moreira: "Sim, mostrar as transformações do Brasil a partir dos ex-proprietários de Dagoberto e costurá-las com o drama atual de sua existência, que partia do fato de que ele não mais reconhecia o mundo e o mundo muito menos o reconhecia, foi o mote do filme. Para tanto, fundamental era dar uma cara a Dagoberto, quando me veio à idéia de usar um boneco do Topo Giggio, um personagem também fora de tempo, como o próprio Chevette Hatch."

"Dagoberto vai ao paraíso" existiu quase por um milagre de persistência de seu autor, pois segundo ele, "O roteiro foi enviando para participar de um edital da Petrobrás, sem sucesso. E, como a fruta estava ficando madura e caindo do pé, resolvi fazer o filme, ainda que praticamente sem um tostão, levando-se em conta os custos de um curta. A partir de ações quase esquizofrênicas e graças ao apoio de mamãe (Terezinha) e de alguns amigos, entre eles Cássio Sader, Flávio Lopes e o pessoal da Olhar Filmes resolvemos partir para as gravações. Tivemos três fotógrafos: o competente Hans Herald, o preciso Alexandre Andrade e o experimentalista Flávio Lopes. O fiz dispondo basicamente de uma câmera Sony Z1, um refletor pockt, obra de Henrique, da Quanta, dois rebatedores e a velha e imbatível iluminação natural, claro. Com os atores escolhidos, Antônio Fábio, Igor Epifânio, Olga Lama, Tom Valença, Lula Martins, Ricardo Luedy e tantos outros, perfeitos, rodei, em quatro dias, sem que eu carregasse o roteiro nas mãos, pois conhecia o filme de trás para frente. Depois, também em quatro dias, o montamos, graças à habilidade de Cláudio Schwabacher, o mesmo que havia dando o primeiro corte em Eu me Lembro, de Edgard Navarro. Por fim, vieram os efeitos sonoros e música original do mestre Ricardo Luedy."
Que "Dagoberto vai ao paraíso" tenha mais exibição pelo circuito alternativo da cidade. Há um sentido de humor que parece desaparecido do cinema baiano contemporâneo. Graça e espontaneidade.

12 novembro 2008

Últimas fotos de Álvaro Guimarães



Dois momentos de Álvaro Guimarães em seu retiro espiritual em Arraial D'Ajuda um ano antes de sua morte ocorrida no último dia 15 de outubro, aos 65 anos. Na primeira, ele conversa com Marcos Pierry, que foi a Porto Seguro procurá-lo para realizar (juntamente com Júlia Centurião e Ajurimar Sales) o doc. Marginal My Friend, que deve ser fonte de muitas informações sobre o Underground baiano e brasileiro. Vale dizer que a cópia de Caveira, my friend está sendo restaurada pelo Departamento de Audiovisual da Fundação Cultural da Bahia (DIMAS).

O parto mais insólito da história do cinema

Acontecimento inusitado aconteceu quinta passada quando da sessão especial de Dagoberto vai ao paraíso. O jornalista e vestibulando de cineasta Raul Moreira decidiu parir seu próprio filme e, para isso, vestiu-se, comme il faut, de noiva grávida e desgrenhada. Descendo a ladeira que dá acesso ao Cinema do Museu, no Corredor da Vitória, em absoluta nonchalance, ao chegar à entrada da sala exibidora, deitou-se para o trabalho de parto, ainda que algumas pessoas, preocupadas, achassem melhor que o nascimento fosse acompanhado de um médico obstetra. Uma alma caridosa, no entanto, ofereceu seus préstimos e o filme foi parido com dor e satisfação. Como se pode ver na foto que ilustra este post: a mamãe Raul Moreira vê o filho/filme ser retirado de sua, como dizer? barriga. Por não ser mulher, o parto foi cesariano. Uma pequena incisão na barriga, sangue por todos os lados, mas o filme saiu inteiriço e logo foi se alojar na cabine de projeção para ser exibido. A atitude de Raul Moreira deveria ser seguida por todos os cineastas brasileiros.

Dagoberto é um velho Chevette que, indo ser desmontado em ferro-velho, conta a história de seus antigos proprietários. E pensa que vai ao paraíso como aquela classe operária de um antigo filme de Elio Petri.

Cliquem na imagem para vê-la maior.

10 novembro 2008

Fazendo uma homenagem a Roberto Pires

Ao lado do produtor Braga Netto, um dos principais produtores do Ciclo Baiano de Cinema (Barravento, de Glauber Rocha, A grande feira, de Roberto Pires, Bahia, por exemplo, de Rex Schindler, e do inacabado O rio das almas perdidas), este bloguista/blogueiro dá algumas palavras após a exibição de A grande feira, durante o Festival Sala de Arte de Cinema (que foi projetado em cópia luminosa). Na oportunidade, antes do longa, apresentado também o documentário O artesão de sonhos, de Paulo Hermida e Petrus Pires (filho de Roberto), que focaliza alguns momentos de um homem vocacionado para fazer filmes e realizar sonhos: Roberto Pires. Nota-se, na foto, que o bloguista está um tanto quanto preocupado com o que está a dizer haja vista os ouvidos parados de Braga Netto (ator em Redenção, o primeiro longa baiano de longa metragem realizado por Pires em 1959).

09 novembro 2008

Cinema Baiano (4): Álvaro Guimarães



O seriado Como nasce o cinema baiano continua, mas vai apenas mudar de título. Deste domingo em diante, o título é Cinema Baiano: o que vem a seguir é o assunto. Por exemplo, Cinema Baiano (8): O surto underground, Cinema Baiano (16): o superoitismo dos anos 70 e as jornadas, etc. Hoje, já no quarto capítulo, o post é dedicado a Álvaro Guimarães, que morreu no último dia 14 de outubro em Arraial D'Ajuda, lugarejo perto de Porto Seguro para onde se retirara nos últimos anos de sua vida. Homem de mil instrumentos, caracterizava-se pelo imenso conhecimento das artes em geral. Seus textos de estética teatral, publicados no Suplemento Dominical do Diário de Notícias (Salvador), são irrepreensíveis, que revelam o pleno domínio de Alvinho (como era carinhosamente chamado) da literatura dramática. No teatro soteropolitano, dirigiu montagens que ficaram célebres, a exemplo de Uma obra de governo, baseado em Dias Gomes, que depois teria o texto desmembrado na série O Bem Amado, da Globo, com Paulo Gracindo na pele do prefeito Odorico Paraguassú. Uma obra de governo, porém, era uma peça com uma mise-en-scène incendiária, um teatro quase de agressão e de propósitos desestruturais. No Rio de Janeiro, entre muitas outras, montou Os sete gatinhos, de Nelson Rodrigues. Segundo Caetano Veloso, em escrito quando da morte de Álvaro Guimarães, este foi o responsável por ele ter se iniciado na música. Álvaro o convidou para fazer a parte musical de algumas peças, assim como a Maria Bethânia. No cinema, apenas dois filmes: o underground Caveira, my friend (1969), e, antes, uma experiência curtametragista de certo encanto poético: Moleques de rua (1962). Mas já tinha se iniciado no set cinematográfico desde que Glauber Rocha dirigia, em 1959, Barravento, onde funcionou como seu aplicado assistente de direção (perdeu-se, com sua morte, um depoimento valioso sobre a verdade do golpe aplicado pelos produtores na derrubada de Luis Paulino dos Santos para a ascenção glauberiana), assim como assistente de direção e diretor de arte de Menino de engenho, de Walter Lima Junior, baseado no célebre romance de José Lins do Rêgo. Entre outros filmes. Caveira, my friend, exibido no Festival de Brasília em 1969, e porque proibido pela censura, teve sua cópía queimada na Praça dos Três Poderes como protesto. Vivia-se o clima asfixiante do Ato Institucional número 5. Mais ou menos da mesma época é Meteorango Kid, o herói intergalático, de André Luiz Oliveira, filme underground que apareceu nos rastros de O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla e logo foi alçado à condição de obra cult do underground brasileiro ou, como alguns gostam de chamar, do Cinema Marginal.

Pedi a José Umberto, cineasta e escritor (O anjo negro, Revoada...), cujo média-metragem Vôo interrompido, que precisa urgentemente de uma revisão, foi considerado por Álvaro Guimarães o primeiro filme verdadeiramente underground do cinema baiano, que escrevesse um texto sobre Alvinho. Zé não perdeu tempo: sacou logo suas armas afetivas para falar do colega que a Implacável já o levou. E abrindo as devidas e imprescindíveis aspas:

"Alvinho é um renascentista tupiniquim. Cultivou o teatro em vida; o cinema, foi a necessidade súbita de criar; sempre.
Sempre tive Álvaro Guimarães na conta e em alta, no meu coração. Logo, sou suspeito de falar dele. Mas insisto, por dever e por saudade.
O talento lhe foi inato com precocidade. Embora um intelectual de base sólida, com fúria poética na camada visceral de ser. Figura de fino trato: rapaz bonito, franzino e baiano de cepa.
Um rebelde romântico na linha de exílio perpétuo.
Alvinho estava sempre acima do cotidiano.
Não conheci o seu curta metragem Meninos de rua. Fez esse filme quando também escrevia sobre estética teatral no Suplemento Dominical do DN. Eu lia essas coisas ainda no Clube de Cinema de Feira de Santana, quando passou por lá a Caravana da cultura de Paschoal Carlos Magno. E o Péricles Cunha era o meu diretor no Centro Popular de Cultura do Auto de Zé da Silva.
Falo dessas coisas por que o Alvinho tava por dentro de tudo isso.
E quando ele entrava numa coisa - entrava de corpo-e-alma unificados. Assim era o rapaz, da Barra chique.
Quando ele criou o jornal udigrudi Flores do mal, logo me chamou pra escrever. Sonhos de ouro em vidas de chumbo grosso. Alvinho teve atitude heróica enfrentando a ditadura com as flores e a plástica do Lácio. Um liberador de energia: vanguarda por amor puro ao próximo - assim a praxis de Álvaro Guimarães.
E fora um doador de si: produziu Caveira, my friend (chamava-se originalmente Os Assaltantes) com a grana de uma herança familiar. E, depois, incinerou a fita na Praça dos 3 Poderes, em Brasília.
Não suportou a podridão; - Hamlet a transcendentou.
Mas a vida, para ele, é um dádiva. Senão, uma delícia de guerra.
Alvinho esteve à frente. Quem não percebeu... perdeu a garra de reconhecer coisa-rara-de-existir.
"Adeus, meu canto", escreveu o bardo romântico contestador Castro Alves, seu conterrâneo de alma e atavismo .
Zé Umberto