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03 outubro 2013

Norma crítica: ser obscuro para parecer mais profundo



“A função do crítico não é trazer numa bandeja
de prata uma verdade que não existe, mas pro-
longar o máximo possível, na inteligência e na
sensibilidade dos que o lêem, o impacto da obra
de arte.”
ANDRÉ BAZIN

Creio que a tarefa dos críticos especializados em cinema – não considerando, aqui, os comentaristas meros aficionados – é a de atuar como mediadores entre a obra cinematográfica e o espectador comum, oferecendo um modelo de leitura da primeira e sublinhando os eventuais valores poéticos nela presentes. Refiro-me aos críticos que atuam em jornais e revistas ou que escrevem em suplementos culturais cujo público alvo não se restringe ao meio acadêmico. A função daqueles que escrevem sobre cinema é ajudar – e não complicar – ao leitor a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento linguístico – de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante e o que não o é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios.

Sempre que não se queira ficar pelo desempenho de uma mera atividade de informação cronística – como sói acontecer no fracassado e desesperado jornalismo cultural, o crítico de cinema deve valorizar a obra examinada, fazendo emergir, dela, as suas valências ocultas e interpretando-as em ligação com o macrocontexto cultural em que a primeira vê a luz. Na condição, naturalmente, de que tal ação seja desempenhada com uma certa discrição a fim de garantir o respeito pelo texto fílmico contra o perigo de leituras forçadas e de distorções generalizadas, com o uso de ganchos que nada dizem, a exemplo de ‘roteiro enxuto’, ‘lugar comum’, etc – muito comum, aliás, nos neófitos que se arvoram em críticos nesta província da Bahia. De resto, a própria polivalência que caracteriza o filme, como sistema orgânico de sinais susceptível de múltiplas leituras, favorece a pluralidade interpretativa. Portanto, se o espectador normal se limita geralmente a ver um filme, o crítico lê-o por ofício e ajuda o primeiro a fazer outro tanto.

Porém, nesta sua função de intérprete e guia, o crítico de cinema deve contar com uma dificuldade resultante da natureza não-homogênea da linguagem escrita por ele utilizada relativamente à linguagem visual empregada pelo filme. Dificuldade esta que o intérprete dos textos literários não conhece, podendo entremear tranquilamente o seu discurso crítico com o do texto analisado em virtude da identidade linguística que preside a ambas as manifestações expressivas. Isto se mostra tanto mais intrigante quanto mais presente se tiver o caráter narrativo do filme, caráter assente nas outras artes visuais que também têm as suas práticas críticas correspondentes, não obstante serem igualmente irredutíveis às formas da linguagem verbal. A complicar ainda mais o caso está a natureza de linguagem sem língua – como gostam de dizer os semiólogos – que é típica do filme. De fato, a partir do momento em que não existe um sistema abstrato preexistente ao filme, mas, apenas, obras fílmicas isoladas, não parece possível – como acontece, pelo contrário, na análise dos textos literários – estimar o eventual afastamento, entre a parole-film e a langue-cinema, afastamento do qual derivaria a poeticidade do texto fílmico. Trocando em miúdos: é impossível distinguir entre um uso banal ou cotidiano da linguagem cinematográfica e uma sua utilização que obedeça a propósitos artísticos, e isto pela simples razão de que no filme o plano de denotação coexiste sempre com o da conotação e que, por conseguinte, não existe um grau zero da escrita fílmica a partir do qual se possam avaliar os eventuais afastamentos efetuados em sentido expressivo pela linguagem examinada.

Ainda que sem emitir, mas, nas entrelinhas, já emitindo, juízos valorativos, não acredito numa cientificização da crítica cinematográfica, quando o analista mais se assemelha a um cientista pacientemente a procurar significados na obra cinematográfica e, com isso, destruindo não apenas a emoção do filme – essencial em toda obra que se queira de arte – como também o prazer de ler o resultado da investigação. Sigo, desde sempre, as palavras do eminente jurista Vicente Rao – sou também formado em Direito e advogado de carteirinha, embora não saiba entrar nos labirintos forenses, quando escreveu no volume 60 de seus comentários ao Código de Processo Civil: “A clareza tem o direito de fazer parecer superficial, mas que não se infira desse aviso a conveniência de ser obscuro para parecer mais profundo.”

Estou a refletir sobre a condição de crítico que, no geral, é pedante e autoritário. Como fui um pouco neste texto.

01 outubro 2013

Cuíca de Santo Amaro

Cuíca de Santo Amaro, documentário dos baianos Joel de Almeida e Josias Pires, antes de ser um filme sobre a personagem lendária que dá título, é um extraordinária passeio pelas imagens da Bahia antiga e, também, a revelação para uma nova geração de como os soteropolitanos puderam viver num celeiro de artes e criatividade na Bahia dos efervescentes anos 50 e 60. Os realizadores, Almeida e Pires, estabelecem a estrutura audiovisual do filme apoiada em arquivos de imagens, fotos de jornais e dos livros de cordéis, e  em depoimentos de personalidades da terra. O resultado é gratificante para o espectador. O verdadeiro Cuíca somente aparece em imagens captadas de A grande feira (1961), de Roberto Pires. Mas como  fio condutor da narrativa há uma voz bem parecida com a de Cuíca, que passa, verossímil, a impressão de que é o próprio quem fala as suas diatribes peculiares. Poderiam os cineastas responsáveis ter procurado um ator que o representasse, mas a solução da voz creio mais engenhosa e eficaz. 

Apesar de parecer mais velho, Cuíca morreu com 57 anos de idade, pois nasceu em 1907, vindo a falecer em 1964. Figura, além de lendária, folclórica, com seus escritos em cordel. Homem de inspiração, era um crítico social, ainda que, no seu último decênio, deu-se a fazer propaganda para políticos interesseiros, tal o alcance de sua literatura peculiar.

Cuíca de Santo Amaro tem a sua última apresentação em Salvador amanhã, dia 2 de outubro, às 20 horas e 25 minutos, no Cinema do Museu (Corredor da Vitória).

Maiores informações no site:  http://www.cuicadesantoamaro.com.br/

29 setembro 2013

"A última estação", de Marcio Curi



Em Salvador, o filme está em cartaz no Espaço Itaú Glauber Rocha

Filme de inusitada importância no panorama do cinema brasileiro contemporâneo, A última estação é uma viagem interior de descoberta, uma obra de sentimento, construída com boa artesania por Marcio Curi, veterano da cinematografia nacional (tem uma filmografia cheia de títulos como diretor de produção, assistente de direção, inclusive ajudou muito a produção do cultuado Meteorango Kid, o herói intergalático, de André Luis Oliveira, entre muitos outros). Narra a trajetória de um adolescente libanês que vem tentar a vida no Brasil. Na tortuosa viagem de navio, faz amizade com vários companheiros árabes e sírios, mas, quando da chegada, cada um segue o seu caminho, a sua vida. Os anos passam. Meio século depois, já velho, e com a ajuda de sua filha, o adolescente do pretérito decide reencontrar aqueles que conheceu e faz uma viagem por várias capitais brasileiras. Filmado no Líbano e no Brasil, A última estação se insere como uma educação sentimental no ocaso da vida e, em alguns momentos, chega a lembrar Morangos silvestres, de Ingmar Bergman, porque a viagem do personagem principal tem, no seu itinerário, várias estações. Notar a presença, como ator, de Edgard Navarro como Joseph. Abaixo uma declaração do próprio autor sobre o seu filme:

 "Ao filmar essa delicada história de um homem comum, um imigrante libanês, movido por paixões bem simples, mas dono de uma vontade gigantesca, quis homenagear a um só tempo os libaneses (árabes) e os brasileiros. 

Os libaneses, pela capacidade de adaptação que os fez os imigrantes mais queridos. Por trazerem consigo, como diria Drummond, "apenas as duas mãos e o sentimento do Mundo". Pelo carinho e generosidade que espalham por onde andam.



Os brasileiros, por terem herdado da matriz lusitana o melhor da tradição mourisca transplantada para a Península Ibérica. Por serem sonhadores incansáveis. Por sofrerem as dores da "imigração" dentro do seu próprio País e, ainda assim, ostentar a fama de um povo feliz.



A Última Estação quer celebrar a amizade, a tolerância, a diversidade... Acredita na convivência harmoniosa entre raças, entre culturas, entre religiões. Celebra o encontro do homem com a mulher, do jovem com o idoso, do oriental com o ocidental. Sonha com um mundo em que a cultura da paz e da não violência una definitivamente a humanidade.



Convido todos a assistirem logo nos primeiros dias e garanto que sairão com uma vontade enorme de celebrar a vida. De aproveitar melhor o tempo e as pessoas queridas."



Marcio Curi - diretor