Este artigo, publiquei-o quando do lançamento de Um filme por dia,  coletânea de críticas do célebre crítico Antonio Moniz Vianna organizada por Ruy  Castro. O texto vai como saiu. Sou do tempo dele, quando ia comprar, aqui em  Salvador, o Correio da Manhã que somente era vendido na Praça Municipal.  Província tranquila, saia de meu bairro, Nazaré, e ia a pé - uma distância  considerável - à citada praça para adquirir jornais do Rio e de São Paulo. No  Correio da Manhã, pontificava a figura grave de Moniz Vianna, que foi quem me  ensinou a apreciar um travelling em Robert Aldrich. Aliás, a bem dizer, o pouco  que sei sobre cinema - e sei muito pouco - aprendi indo ao cinema e lendo  críticas como as de Moniz Vianna. Sou um autodidata, portanto. E também  comprando livros sobre a arte do filme, a procurar, neles, o conhecimento  necessário à apreciação estética de uma obra cinematográfica. Mas vamos deixar  de delongas para ir direto ao texto. "A aparição em livro da reunião das críticas de Antonio Moniz Vianna se  torna, desde já, o acontecimento editorial, em relação às obras que tratam do  cinema, mais importante do ano, pois se trata de uma coletânea que contém a  quintessência do maior crítico cinematográfico de todos os tempos, que  pontificou, diariamente, no Correio da Manhã, de 1946 e 1973. Abandonou a  crítica neste ano, quando da morte de John Ford, seu cineasta favorito,  escrevendo logo um texto e se despedindo dos leitores. Antonio Moniz Vianna, no  entanto, acaba de completar 80 anos, com a lucidez e a consciência inabaláveis.  Mas há três décadas preferiu o exílio voluntário de seu apartamento em  Copacabana. Na época de sua saída, decepcionado com a crise criativa do cinema  contemporâneo, não viu mais razão de continuar na labuta diária da crítica. Para  ele, o apogeu do cinema se deu entre 1912 e 1962, acontecendo, a partir daí, o  seu perigeu. Pertenceu à geração dos grandes críticos, homens cultos,  preparados, dedicados, com profundo amor pelo cinema, a exemplo de Walter da  Silveira, aqui na Bahia, Francisco Luiz de Almeida Salles, Rubem Biáfora e Paulo  Emílio Salles Gomes, em São Paulo, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva,  entre muitos outros. Moniz, no entanto, ao contrário de Walter, que se poderia  chamar de ensaísta – e um grande ensaísta de cinema, diga-se de passagem, era um  verdadeiro crítico. O título do livro editado pela Companhia das Letras não  poderia ser mais exato e significativo: Um filme por dia, porque Moniz Vianna,  antes de tudo, era um crítico do batente diuturno, que copiava as fichas  técnicas dos filmes – completíssimas – no escuro da sala de projeção com uma  caneta na mão.
(Antonio Moniz Vianna nasce em Salvador em 1924, mas desde os 11 anos se  transfere para o Rio de Janeiro, e, mais tarde, antes do jornalismo, ingressa na  Faculdade Nacional de Medicina. A partir de 1946 começa a assinar críticas de  cinema no Correio da Manhã, vindo, nos anos 60, a ocupar, neste prestigioso  matutino carioca, o cargo importante de redator-chefe. Entre 1956 e 1965, é  diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, quando organiza  importantes e inéditas mostras (para a época) dos cinemas americano, francês,  italiano, e russo, que, até hoje, para aqueles que tiveram a sorte de vê-las,  ainda se encontram guardadas na memória. Moniz, por exemplo, trouxe, pela  primeira vez, em 1958, uma cópia de Cidadão Kane ao Brasil, apesar dessa  obra-prima de Orson Welles ser de 1941. Vieram também cópias de obras essenciais  como as de Griffith (O nascimento de uma nação, Intolerância), os primeiros  filmes de Méliès e Lumière, as obras fundamentais do neo-realismo italiano e do  realismo poético francês, além dos filmes da escola soviética (Eisenstein,  Pudovkhin, Dovjenko, Dziga Vertov, etc). Em 1965, organizou o maior festival de  cinema que o Brasil já conheceu: o Festival Internacional do Filme do Rio de  Janeiro, cujo júri, para se ter uma idéia, entre outros, era composto por  monstros sagrados como Fritz Lang, Joseph Von Stenberg, Vincente Minnelli.  Nunca, em momento algum de nossa história, houve, no país, festival de tal  envergadura).
Das seis mil e tantas colunas que, segundo o crítico Paulo Perdigão, foram  escritas pelo mestre, apenas setenta e poucas, após processo de seleção rigoroso  efetuado por Ruy Castro e pelo neto do autor, Eduardo Moniz Vianna, constam de  Um filme por dia, obra imprescindível e obrigatória que nenhuma pessoa que se  queira cinéfila pode deixar de adquirir. Crítico de choque, de estilo admirável  – somente comparável aos grandes escritores, Moniz Vianna, apesar dos  insistentes apelos dos amigos e de editoras, sempre se recusou a publicar seus  escritos. Uma de suas filhas, Isadora, chegou, há alguns anos atrás, a lhe  pedir, mas o pai não lhe atendeu. Quem conseguiu o grande feito foi seu neto,  Eduardo, que, afinal, entrando no arquivo secreto do crítico, e ajudado pelo  especialista Ruy Castro, selecionou o material. Pena que a publicação abarque  apenas um por cento do que Moniz escreveu por toda a vida. Mas o que se encontra  em Um filme por dia é caviar, delicatessen em matéria de crítica  cinematográfica.
(Em plena adolescência, em 1964, aos 14 anos, conheci Antonio Moniz Vianna  através das páginas do Correio da Manhã. Os jornais do eixo Rio-São Paulo,  naquela época, somente eram vendidos na Praça Municipal na Banca do Careca e,  aos domingos, religiosamente, comprava o Correio da Manhã para ler Moniz Vianna,  principalmente as suas completas filmografias que eram publicadas no Quarto  Caderno – o maior suplemento cultural do Brasil, batendo, mesmo, o do Estado de  São Paulo e o afamado SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil). Ficava  estupefato (esta, a palavra) como um filme podia ser dissecado com tanta  erudição por um crítico. Admirava, em Moniz Vianna, o seu imenso conhecimento do  assunto e, principalmente, a maneira dele escrever, o seu estilo, admirável.  Moniz, como disse um amigo, e discípulo, Paulo Perdigão, era um crítico de  choque).
Moniz Vianna, respeitadíssimo em sua época, era, por outro lado,  marginalizado pelos cinemanovistas. Glauber Rocha tinha por ele grande  admiração, mas se aborreceu com a sua crítica demolidora a Terra em transe, que  Moniz espinafrou – aliás sem razão, pois se trata do melhor filme brasileiro de  todos os tempos. O grande crítico, porém, tinha lá suas idiossincrasias,  predileções, manias. Adorava John Ford a ponto de deixar a coluna diária no  Correio da Manhã assim que soube de seu falecimento. “O cinema acabou”, disse,  na época, o polêmico articulista que além de crítico era, também, redator-chefe  do jornal por longos anos.
(A crítica de cinema, hoje, como praticada por Moniz Vianna, Rubem Biáfora  Paulo Emílio Salles Gomes, Cyro Siqueira, Walter da Silveira, José Lino  Grunewald, Paulo Perdigão, entre muitos outros, não mais se exercita nos tempos  que correm. O que se vê, atualmente, são resenhas e comentários, a maioria delas  vinculada à propaganda dos últimos lançamentos da indústria cultural  cinematográfica made in Hollywood. Os estudos mais aprofundados sobre a arte do  filme se encontram nos calhamaços das dissertações e teses de mestrados e  doutorados e, mais recentemente, no espaço virtual. Os jornais, decadentes, não  se interessam a dar espaço para reflexões sobre o cinema, preferindo textos que  funcionem como guias de consumo. Mas, neste particular, a internet tem oferecido  a oportunidade para o aparecimento de sites comprometidos com a reflexão  teórica. De qualquer maneira e de qualquer forma, o fato é que, com a decadência  da cultura humanística, os acadêmicos-críticos, ou os críticos acadêmicos, não  possuem mais um estilo atraente na exposição da matéria, condicionados que ficam  pelos grilhões da linguagem da academia, uma verdadeira camisa-de-força que  impede o livre exercício do pensamento livre de amarras. Vale transcrever, aqui,  o que escreveu o jornalista Getúlio Bittencourt sobre Antonio Moniz Vianna: “Em  quantidade, apenas o americano Bosley Crowther, do The New York Times, se  apresenta com tamanho similar (ambos somam 28 anos de ofício cada). Em termos de  qualidade, será preciso buscar nomes na França para encontrar, dispersos,  predicados comuns em Moniz Vianna: André Bazin pela profundidade de análise,  Georges Sadoul pelo conhecimento enciclopédico. Já na elegância do texto, só se  pode comparar Moniz Vianna com grandes escritores que se dedicaram  ocasionalmente à crítica de cinema, como o argentino Jorge Luis Borges na  revista Sur, o inglês Graham Greene no The Spectator de Londres, o americano  James Agee na revista Time, o colombiano Gabriel García Márquez no El Espectador  de Cartagena”).
Com o desaparecimento dos suplementos culturais, a crítica de cinema foi  substituída pelos comentários e resenhas, assim como a literária, de rodapé,  também já não mais existe. O jornalismo dito cultural, hoje, está muito atrelado  ao mercado, perdendo, com isso, a independência. Na Bahia, por exemplo, não  existe crítica de arte. Os artistas querem ser badalados, elogiados, tietados, e  quando alguém, por acaso, os critica há, sempre, uma indisposição, uma vontade  de nomear aquele que diz que o rei está nu como um maledicente. Moniz Vianna foi  um bravo guerreiro e um crítico como ele já não mais existe na sociedade  contemporânea ou, como se quer agora, na contemporaneidade. Os escritos de sua  autoria reunidos em Um filme por dia revelam não apenas um imenso estilista e um  erudito nas coisas do cinema, mas refletem, também, o espírito de uma época. Que  o vento, já saturado, levou-a para sempre. Resta, agora, a recusa à banalidade  ululante da cultura ou a aceitação passiva, mascarada de uma alegria debilóide,  a justificar que os tempos pós-modernos abrigam um contingente maciço da  dementia precox".
3 comentários:
Bom, muito bom o seu artigo sobre Moniz Vianna. Ela nos dá uma idéia exata da dimensão do --não apenas crítico-- grande escritor que foi.
Por outro lado, amplia-nos a visão de uma época em que era gostoso ir a uma determinada banca para comprar o Correio da Manhã, cujo Quarto Caderno foi a maior expressão de uma cultura brasileira efervecente.
O mundo mudou muito! Certas coisas ficaram fáceis de adquirir. Bom por um lado, mas o gostinho da busca diluiu-se bastante. Enfim, as coisas difíceis têm um sabor especial...
Na sua 'temporada' baiana, lembro-me bem, caro Jonga, que você ia comigo à Praça Municipal em busca dos volumosos jornais do sul do país, em especial o inesquecível 'Correio da Manhã', com seu Quarto Caderno, que somente era possível ler durante a semana, tal a sua extensão, tal a sua profundiade, tal a sua quantidade de textos únicos e substanciosos: Carpeaux, Álvaro Lins, Paulo Francis, Moniz Vianna, tantos e tantos. Lembro-me que carregar 'O Estado de S.Paulo' era um trabalho de Hércules.
Por essas e outras que me tornei admiradora, estou aprendendo cinema com os seus ensinamentos. Quanto ao modus vivendi, ainda bem que temos livre arbítrio, escolhemos nossas leituras cinematográficas e bebemos na fonte que nos parece mais confiável. Principalmente, hoje, tempos de cegueira branca. Um fim de semana a seu modo, Professor André.
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