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31 maio 2007

Em busca do "Guarany" perdido



Hoje, dia 31 de maio, na Sala Walter da Silveira, exibição de dois curtas cujos roteiros foram premiados em concurso: Imagens do xaréu, de Marília Hughes, e O Guarani, de Cláudio Marques. O primeiro remete ao xaréu e ao pioneiro do cinema baiano, que foi Alexandre Robatto, Filho, que registrou em Entre o mar e o tendal e Xaréu, a pesca desta, que a documentarista Marília tenta resgatar nas imagens de seu filme. Já o outro curta, O Guarani, diz respeito ao cinema que ficava na Praça Castro Alves e que está se transformando em várias salas pela varinha de condão da magia empresarial (se isto é possível). Mas tenho uma ligação afetiva com o cinema Guarany. Não seria exagerado dizer que passei minha vida dentro do Guarany e, entre todas as salas de Salvador, era a minha preferida. Desde pequeno, inaugurando minha cinefilia, e, em conseqüência, minha trajetória de cinéfilo soteropolitano (que depois pisaria em outras plagas), o Guarany, para mim, tinha um encanto particular. Da Praça Castro Alves, ou, como se dizia antigamente, do Largo do Teatro, sentia o cheiro do ar condicionado do cinema, que me inebriava, como uma madeleine proustiana. Gostava de chegar mais cedo somente para ficar sentado na bela sala de espera, olhando os filmes anunciados para breve e aguardem, maravilhado com sua bombonière com os drops enfileirados, tudo muito arrumado, balas, jujubas, chicletes - longe, muito longe, da bagunça do hoje, dos baldes imensos de pipocas, dos refrigerantes 750ml post mix, das guloseimas, etc. O documentário de Marques tem imagens de arquivo, de jornais antigos, filmagens in loco, além de vários depoimentos. O de Orlando Senna é muito interessante, porque diz sobre a apresentação de Deus e o diabo na terra do sol, que Glauber Rocha, pronto o filme, pela primeira vez o apresentou aos amigos, e o cinema escolhido, num dia de manhã, foi o Guarany. Senna conta que quando o filme acabou todos ficaram por mais de dez minutos calados, extasiados, e em seguida, todos começaram a chorar. O artigo que se segue foi publicado há alguns anos no site Coisa de Cinema no qual tenho uma coluna (http://www.coisadecinema.com.br).
Inaugurado em 1917, na Praça Castro Alves, a praça do Poeta, era um cinema acanhado, embora confortável e freqüentado pela elite baiana. Nos anos 50, sofreu reforma infraestrutural para se adaptar ao novo formato que então surgia, o Cinemascope, implantando também o som estereofônico. A Fox, temendo a concorrência televisiva, decidiu colocar no mercado o Cinemascope e o filme de estréia, neste processo anamórfico – tela retangular e muita larga – foi O manto sagrado. Os baianos puderam vê-lo, em meados do decurso dos 50, no Guarany, em noite de gala, e ficaram surpresos quando Richard Burton, um de seus atores principais, ao andar do lado esquerdo para o lado direito do enquadramento, tinha sua voz também a acompanhá-lo. Era a novidade do stéreo que espantava àqueles acostumados à uniformidade do mono. Há um livro sobre a reforma do cinema Guarany, editado pela Construtora Norberto Odebrecht, que, esgotado, desapareceu, nunca conseguindo sequer vê-lo de longe. Foi no Guarany também que se deu a estréia de Redenção, em 1959, de Roberto Pires, o primeiro longa metragem do cinema baiano, cuja lente, anamórfica, foi inventada pelo próprio diretor.

Ao contrário das salas atuais, todas iguais, os cinemas do pretérito possuíam estilo, cada um com um toque diferente, uma decoração especial, e o Guarany, neste particular, era, para mim, o mais atmosférico. Antigamente, aquele espaço frente a esta sala exibidora se chamava Largo do Teatro, porque o Guarany também tinha um proscênio no qual se encenavam peças aclamadas muitas vezes oriundas do eixo Rio-São Paulo. Assim, a atmosfera do cinema começava na sua entrada, com o ‘cheiro’ de seu ar condicionado. A sala de espera era um recanto para se ficar vendo os cartazes e as fotos dos filmes que iam seguir e que em breve estariam em cartaz. Além de sua sofisticada bombonière – era desse modo que todos se referiam àquele pequeno espaço onde se vendiam drops, chicletes, chocolates, com todos arrumados em filas indianas ou, mesmo, militarmente ordenados.

A sala de projeção se dividia entre a platéia – lugar mais privilegiado – e um balcão cujo acesso se fazia por duas escadas laterais. Na primeira, antes do palco, um espaço para orquestra. E, como era hábito naqueles bons tempos que não voltam mais, quando o filme começava, antes que as cortinas fossem abertas, luzes coloridas se revezavam enquanto se ouvia um trecho de O Guarany, de Carlos Gomes. Era o sinal de que a função iria se iniciar. Antes, no entanto, enquanto esperava a sessão, o gongo anunciador, a partitura musical do filme a ser apresentado era dada aos ouvidos dos presentes para uma melhor familiarização, um esquentamento, por assim dizer. Ficava, então, a olhar os índios em fila da parede do lado direito pintados por Carybé, assim como os peixinhos enfileirados da do lado esquerdo. Havia, portanto, uma atmosfera especial, e o cinema era, como no teatro, uma função.

A partir da introdução do Cinemascope todos os outros cinemas tiveram que se adaptar ao novo formato, mas o Cinemascope do Guarany era especial, pois era o mais espetacular da província da Bahia. Nos cinemas atuais não existe mais esta atmosfera, esta preparação, este, se quiser, ‘esquentamento’, pois a tela, sem cortina, recebe o filme de repente, jogado de supetão sem nenhum aviso prévio. Mas os tempos são outros. Antes, as imagens em movimento estavam confinadas apenas nas salas escuras dos cinemas, enquanto, hoje, estas podem ser vistas nos mais variados suportes. Já se chegou ao requinte de baixar filmes pela internet com uma bem razoável definição de imagem.

Walter da Silveira, em meados dos anos 60, instalou o seu Clube de Cinema da Bahia no Guarany, com as sessões realizadas aos sábados pela manhã, às 10 horas. Foi, portanto, nesta sala, que comecei a minha formação cinematográfica, acostumado à programação do circuito cuja característica principal estava no cinema de gênero americano – os westerns, os musicais, as comédias românticas, os thrillers, etc. Vim a conhecer o cinema como expressão de uma arte, o cinema de autor, vendo filmes como Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais, Guerra e humanidade, de Masaki Kobayashi, O eclipse, de Antonioni, Morangos silvestres, de Ingmar Bergman, entre muitos e muitos outros.

De propriedade do Estado da Bahia, o Guarany era arrendado a Condor, cuja distribuição ficava a cargo de Aluísio Ribeiro e a gerência administrativa exercida por Francisco Pithon. Pressentindo a crise pela qual passava o cinema como espetáculo – superada com o toque de Mídias de George Lucas e a suas ‘guerras nas estrelas’ e a descoberta do filão infanto-juvenil, quando se deu a infantilização temática que continua a infestar até hoje os produtos audiovisuais da indústria cultural hollywoodiana, a Condor resolveu sair do mercado exibidor, em 1975, e transferir o arrendamento de suas salas à CIC (Cinema International Corporation) que, anos mais tarde, viria a se chamar UPI (United International Pictures). A passagem do Guarany às mãos multinacionais da CIC foi motivo de protesto da associação congregadora dos cineastas baianos, que emitiu uma nota furiosa, denunciando que o governo estava entregando um imóvel de seu patrimônio a uma multinacional contrária aos interesses do cinema brasileiro. Se na há engano no andamento de minha memória, assinei tal protesto – foi durante a administração da Embrafilme que o Guarany se tornou Glauber Rocha, quando da morte deste que é o maior cineasta brasileiro de todos os tempos. ACM, então governador da Bahia, no dia seguinte ao falecimento do realizador de Terra em transe, assinou ato determinando tal mudança nomenclatural.

Com a decadência galopante do centro histórico da cidade e a abertura das avenidas de vale e, principalmente, a construção dos shoppings centers, os cinemas do centro foram entrando em decadência. A CIC não se interessou em renovar o contrato. Existia, nesta época, 1980, toda poderosa, a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A), que, com sucursal bem montada em Salvador, assinou contrato com o Estado para entrar no mercado exibidor. Iniciativa pioneira em todo o Brasil, porque a Embrafilme se restringia à produção e distribuição de filmes brasileiros. Neste período, em 1982, uma Jornada foi toda concentrado nesse cinema, com grande êxito, aliás. O Guarany passou a ser administrado por esta empresa e vem daí, talvez, sua decadência. Luis Carlos Barreto praticamente mandava na programação do cinema, determinando que filmes produzidos por sua empresa ficassem semanas e semanas em cartaz, mesmo que vistos por moscas. O Guarany de meus tempos foi perdendo a sua ‘aura’.

Em 1985, mais ou menos, a Embrafilme, ‘cansada’ de tanto insucesso, entrega o cinema ao Estado e este, novamente, resolveu fazer uma licitação para arrendá-lo. A Art ganhou, mas, pelo menos, era uma companhia brasileira importadora de filme e também exibidora. Mas desfigurou o projeto original com uma reforma oportunista. Não diria que foi a Art quem levou o Guarany à ‘sepultura’, mas foi na gerência desta empresa que o Guarany fechou suas portas.

E a lembrança do Guarany leva, necessariamente, à lembrança do Bar e Restaurante Cacique, lugar ideal para uma cerveja gelada ‘a las cinco de la tarde’, após uma ‘matinée’.

3 comentários:

André Setaro disse...

Setaro: estou lhe dizendo que o Guarany, na verdade, deveria voltar reconstituído como era antigamente. Tudo no lugar.

Jonga Olivieri disse...

Guarany. Inesquecível. Um cinema fantástico que eu tive a felicidade de conhecer. Bons tempos em que cinema era CINEMA...

Anônimo disse...

Setaro,
Para completar a sua análise, faltou dizer que o novo "Guarany" recebeu uma fachada HORROROSA, que destoa completamente do conjunto arquitetônico singelo da Praça Castro Alves. O(a) arquiteto(a) que projetou aquilo merece ter o diploma cassado. Mais uma vergonha para a Bahia, ates berço da cultura nacional, hoje berço da "axé music" e da "máfia do dendê", que só pensam em uma punica coisa: DINHEIRO. Pobre e vergonhosa Bahia!