O
jardim das folhas sagradas, primeiro longa metragem de Pola Ribeiro, é uma
produção genuinamente baiana (um filme da Bahia e não um filme na Bahia, como
se costuma muito confundir), que procura um tratamento temático em plural: a
questão ambiental (as folhas e, principalmente, o verde, muito mais que um
símbolo assume a dimensão de uma proposição), a intolerância religiosa (o
candomblé como manifestação autêntica da cultura negra), o preconceito racial
(a posição do negro na sociedade brasileira), e um brado retumbante contra a
matança de animais em liturgias religiosas e, ainda, a questão da identidade do
homem negro e sua necessidade de uma adequação num meio social que ainda revela
preconceitos e animosidades.
Bonfim
(Antonio Godi) é um bancário que se torna
gerente, bem posicionado no trabalho, negro e bissexual, casado com Ângela
(Evelyn Buchegger, atriz baiana que também está presente em O homem que não
dormia, de Edgar Navarro), mulher branca e evangélica. Vivendo na Salvador contemporânea, a mãe
dele fora uma figura importante nos rituais de candomblé, e, por isso, alertado
por Martiniano (Harildo Dêda, o grande ator soteropolitano), homem branco, mas
de importância na hierarquia dos terreiros, entra em crise de identidade. De
repente, toma a decisão de sua vida: rasgar as vestes da sociedade branca
(cabelo cortado, roupas clássicas) e assumir a sua cultura (rastafari, roupas
coloridas e típicas, e, principalmente, a branca). Tem como objetivo montar um terreiro de candomblé no
espaço urbano. Para atingir o seu plano, todavia, enfrenta a especulação
imobiliária sedenta de lucro e corrupta (compra um lote de terras e é enganado
pelo corretor), o preconceito racial e a intolerância religiosa. Bonfim, apesar
de obediente aos ensinamentos de Martiniano, não concorda com a morte de
animais nos rituais de celebração, e procura substituí-los pelas folhas verdes,
o jardim das folhas sagradas, como sugere o título do filme.
Produção
caprichada, O jardim das folhas sagradas, sobre ser um filme bem cuidado na sua
elaboração técnica, tem, no entanto, uma sobrecarga temática que determina um
não aprofundamento dos diversos assuntos em que pretende questionar, além de
uma ausência de ritmo mais dinâmico que é substituído por uma virtuose de
imagens com teor mais ilustrativo e maneirista do que propriamente estético. Na
estrutura narrativa (e Pola Ribeiro, o diretor, tem consciência de que o cinema
é uma estrutura audiovisual), há um desequilíbrio na estruturação do dínamo
propulsor dos conflitos. Em seu lugar, O jardim das folhas sagradas perde tempo
dramático na virtuose da contemplação da paisagem, das folhas, do verde, e na
inclusão de efeitos figurativos desnecessários ao desenvolvimento da idéia
(Godi agachado, rodando, plenamente iluminado, por exemplo). O diretor não
seguiu o conselho de Alberto Cavalcanti, quando disse que ao invés de se fazer
um documentário sobre o correio é melhor fazê-lo sobre uma carta.
Mas
estas observações não eliminam a beleza plástica da obra cinematográfica,
havendo, nela, um fascínio mais para a contemplação de sua plástica de imagens.
O que resiste à crítica é concernente ao elo semântico (a hipertrofia temática)
e defeitos estruturais narrativos concernentes ao elo sintático, à sintaxe
cinematográfica para ser mais exato. Há um momento, inclusive, de especial
especulação não imobiliária, mas satírica e futurística: a câmera, acelerada,
registra um metrô de filme de ficção científica a andar nos trilhos de uma
paisagem idealizada. O que dá, ao filme, um touch especial.
Pola
Ribeiro em O jardim das folhas sagradas faz o seu primeiro longa muitas décadas
depois de sua iniciação cinematográfica. É um ativo participante da explosão
superoitista, desse boom da pequena bitola que deu origem também à iniciação de
praticamente todos os cineastas baianos que labutam na árdua tarefa de
expressar seus pensamentos e seus anseios por meio das imagens em movimento. Lembro-me ,
inclusive, se não há falha memorialística, que seus primeiros ensaios no Super 8, A conversa e Abílio matou
Paschoal, que foram proibidos pela Polícia Federal na época da ditadura militar
(1977). A lenda do pai Inácio, feito em 35mm, ainda que um média metragem, foi
exibido com grande sucesso de público e crítica no extinto Teatro Maria
Betânia, que ficava no bairro do Rio Vermelho.
A
função da crítica é apontar, na sua leitura do filme, os desequilíbrios na
ordenação do tempo e do espaço cinematográficos, e verificar a devida
correspondência entre o seu elo semântico (o chamado conteúdo) e o seu elo
sintático. O fato é que, observados esses aspectos, O jardim das folhas
sagradas é um filme bonito de se ver e que vale a locomoção do cinéfilo. Há, nele,
patente, como já me referi, o cuidado de produção, a fotografia funcional de
Antonio Luiz Mendes, e a consonância da cor na estrutura dramática, isto quer
dizer: o filme é verde e o verde se integra à sua paisagem
cinematográfica.
Nas fotos, Harildo Dêda (o grande ator baiano, decano de toda uma geração) e Antonio Godi (que faz Bonfim). Cliquem nas imagens para vê-las ampliadas.
6 comentários:
Voce é um critico muito elegante.
Lamentável que um veículo local, formador de opinião, como o jornal Correio, dedique ao filme apenas uma estrela (o que deve afastar muita gente da obra).
Pola, cujo primeiro prêmio foi no "V Festival Brasileiro de Curtas" com o filme "Por Exemplo, Caxundé", é um realizador que tem seu nome projetado para alem da Bahia.
No entanto, pergunto, quando chegará por aqui?
Ainda não vi...
O Falcão Maltês
Uma crítica muito tímida. Esqueceu falar das péssimas atuações e muitos outros "vazios" deste filme...
Há um "conchavo" no sub-mundo do cinema baiano para que sejamos "mornos" com as criações de nossos "cineastas." Em se tratando do irmão do secretário do planejamento, a coisa tem que ser morna ao quadrado.
Desculpe-me cinéfilos, mas eu não vou entrar nesta "novíssima onda!" Faço cavaleira só, sou igual à Apocalipse: o filme tem que ser quente, por que morno, eu vomito!
Graça
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