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30 novembro 2011

Metamorfose da crítica

A crítica de cinema sofreu, com o passar do tempo, uma metamorfose, e tudo se relaciona a uma questão cultural. Com o desaparecimento dos suplementos culturais, a exemplo do "Quarto Caderno" do "Correio da Manhã", do SDJB ("Suplemento Dominical do Jornal do Brasil"), entre outros, os textos ficaram reduzidos de tal maneira a ponto de, atualmente, ser impossível se ter uma página inteira, em corpo pequeno, de uma análise caudalosa sobre Rastros de ódio, entre tantos filmes, como faziam Antonio Moniz Viana nas décadas de 50 e 60, ou Rubem Biáfora e Paulo Emílio Salles Gomes no Estado de S. Paulo ou, mesmo, em Salvador, Walter da Silveira em A Tarde.

Os críticos do pretérito se caracterizavam por uma forte formação nas chamadas humanidades, e tinham cultura literária, o que significa dizer: sabiam escrever bem e possuíam estilo. Com o império da cultura audiovisual, os críticos foram se formando pelo cedeefismo canalizado na contemplação das imagens em movimento. Se Moniz Viana, Walter da Silveira, Paulo Emílio, Francisco Luiz de Almeida Salles, Paulo Perdigão, entre tantos, distinguiam-se por uma cultura generalista, ampla visão de mundo, cultura geral, por assim dizer, os que escrevem hoje sobre cinema, na sua grande maioria, são 'especialistas' e não estão preocupados em tratar bem a língua pátria.

Assim, na crítica pretérita havia esta ampla visão do mundo. Paulo Emílio, por exemplo, pensava o homem e a sociedade através da visão de filmes, nunca esquecendo que estes sempre refletiam o seu momento histórico, o seu momento político. A crítica pretérita, portanto, abraçava a política em conjunção com a arte, a haver, nisto, um compromisso do artista com a sua circunstância. O que determina uma abrangência na análise fílmica antes que esta fosse tomada de assalto pela crítica estruturalista, que lê a obra cinematográfica como se esta fosse um rato a ser destrinchado em laboratório. A tentativa de "cientifização" do cinema se tornou um passo avançado no sentido de matar a emoção de um filme para acomodá-lo aos modelos acadêmicos.

Quer-se, hoje, nesta maldita contemporaneidade, ler-se o filme e não vê-lo com os olhos da emoção e da razão. A visão crítica é fundamental, mas não se pode apartá-la da sensibilidade, porque a obra de arte deve ser vista em toda a sua integridade significativa e na sua essencialidade poética. Quem quiser tirar uma prova basta ler as antologias críticas já editadas, principalmente Um filme é um filme, de José Lino Grunewald, Um filme por dia, de Moniz Viana, Um filme é para sempre, de Ruy Castro, - todas as três da Companhia das Letras, os escritos de Paulo Emílio editados em dois volumes pela Nova Fronteira nos anos 80, Fronteiras do cinema, de Walter da Silveira (Tempo Brasileiro), entre muitas outras.

A ausência da cultura literária e o desprezo pela política aliadas ao império do audiovisual determinaram a falência do estilo e do prazer da leitura. É claro que toda regra tem as exceções, mas o fato é que a crítica que se pratica é uma crítica mais carregada de um fanatismo filmográfico, por assim dizer, do que uma crítica analítica dotada de presença de espírito, humor, estilo.

Mas seria bom se destacar que a análise do filme tem nuances, a haver, nela, um cipoal de pontos de vistas. A ligeireza de uma resenha para guia de consumo, que não pode se considerar uma crítica na expressão da palavra, assim como o comentário ¿ o cinema se tornou, hoje, objeto de verificação analítica por quase todo aspirante a intelectual no Brasil, como todo brasileiro que é "técnico de futebol" - são as constantes no papel impresso. O que o cinema, pobre coitado, fez a esta gente?

Poder-se-ia ver a crítica propriamente dita e o ensaio, este mais rigoroso, mais profundo, a ser dotado de um instrumental analítico de maior investigação perfuratriz. Desaparecida dos suplementos as críticas copiosas, o pensar cinematográfico tomou, no último decênio, principalmente, as dissertações e teses acadêmicas e, com isto, lá se foi embora o prazer da leitura. E com o advento da internet, a sua expansão em sites especializados (alguns bons) e blogs -todo 'blogueiro' que se atreve a comentar filmes se considera um crítico de cinema.

Questão cultural, portanto, esta da crítica de cinema. De homens cultos e inteligentes, com ampla visão da arte, ela passou às mãos de fanáticos e 'cdfs', maníacos despreparados, fanáticos para os quais o youtubismo é o avatar mais proeminente da contemporaneidade.

Há que se ler, então, para aprender a criticar, os escritos do pretérito. Ler os textos de Moniz Viana, Grunewald, Walter da Silveira (quatro volumes de seus ensaios foram já lançados), Paulo Perdigão, Sérgio Augusto, Almeida Salles, et caterva. Para se ter uma idéia, basta dizer que a crítica como era escrita nos jornais e revistas nos anos 50 e 60 se poderia considerar, talvez, até num gênero literário, porque tinha um estilo revelador na maneira de apreensão da estesia cinematográfica. Lia-se os escritos sobre filmes além da necessidade de esclarecimento na tradução do filme, mas, e sobretudo, apreciava-se o estilo de seus mestres. A leitura de Moniz Viana revela não somente um erudito do cinema, mas, também, um estilista. Assim como a de Walter da Silveira, Almeida Salles, entre os outros citados. Esta maneira de escrever é que desapareceu e o seu desaparecimento vem associado à ausência quase completa da cultura literária que se estimulava e era um hábito dos bem pensantes.

E a crítica, com o tempo, passou por uma metamorfose que se poderia mesmo dizer kafkiniana. A ponto de, muitas delas, não sair da condição de baratas pseudo-análises destituídas de qualquer base referencial.

3 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Você falou uma coisa muito importante, no meu entender... Não que as outras sejam menores e/ou menos significantes, pois sua análise sobre a falta de cultura reinante e o embasamento da crítica cinematográfica “do pretérito” tem uma abordagem que beira a perfeição...
Refiro-me à emoção. Sim, a EMOÇÃO. Uma questão fundamental em qualquer narrativa. Já chorei lendo um livro. Por que? Simplesmente a descrição era EMOCIONANTE.
Engraçado, mas domingo fui com minha mulher assistir “O Palhaço” de Selton Melo. Nas cenas finais emocionei-me. E pensei: “o filme tem seu valor!”. Aliás, apesar de alguns vícios “globísticos” –como pobre ser bonitinho—e tambem apresentar o circo, nos dias de hoje como algo que não é mais, nos tempos da televisão.
O filme deveria ter sido ambientado na década de 1950. Lembro que nesta época morava no interior e circo era CIRCO mesmo!

André Setaro disse...

Queria seria, caro Jonga, da obra de arte sem a emoção?

Carlos Cabús Oitavén disse...

É isso aí, André. As pós-graduações não ajudam a desenvolver o senso crítico. Elas preferem que façamos uma colagem de textos acadêmicos. Não há espaço para análises pessoais nem para a cultura que absorvemos fora das salas de aula.