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05 abril 2010

"I Vitelloni", de Federico Fellini

A visão de Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952), de Federico Fellini, filme inédito no Brasil desde o seu lançamento, foi importante para se ter uma idéia de como um gênio cinematográfico já expõe suas coordenadas temáticas e estilísticas desde a sua primeira obra. Fellini, antes de Lo Sceicco Bianco já tinha compartilhado a direção em Mulheres e Luzes (Luci de Varietà, 1950), com Alberto Lattuada. Abismo de um Sonho é, porém, o seu filme inaugural como autor integral e completo. O começo de uma carreira extraordinária que fez de Fellini um dos grandes artistas do século XX. O seu filme seguinte, I Vitelloni (Os Boas-Vidas, 1953) pertence, hoje, a qualquer antologia de cinema. É obra surpreendente. Considerando que a obra-prima de um cineasta só pode ser uma, Fellini rasgou o conceito de obra-prima, pois, extrapolando a lógica classificatória, realizou várias.Filme- crônica, I Vitelloni tem como centro a cidade natal do cineasta (rodado em Viareggio representa, porém, a eterna Rimini, que seria, décadas mais tarde, e de maneira estilizada, a inspiração de Amarcord). Fellini fala de sua juventude, de seus vizinhos, parentes, em especial dos amigos. Dos cinco boas-vidas, três têm exatamente o mesmo prenome dos atores que os interpretam: Alberto (Sordi), Leopoldo (Trieste) e Ricardo (Fellini, irmão do realizador). Há, portanto, um espírito familiar-comunal, um encanto particular na narração, os indicativos de um cineasta excepcional cuja poesia emerge a cada seqüência (e não se pode esquecer da inebriante música de Nino Rota). O cineasta de La Dolce Vita faz com que cada personagem se defina, represente uma coisa: Fausto (Franco Fabrizzi), o sedutor barato, Alberto, o bufão da turma, Leopoldo, o intelectual de província, Ricardo, a nulidade personificada. Mas a maneira de Fellini tratá-los foge ao que pode parecer, assim à primeira vista, uma estereotipia acadêmica.
No italiano popular, vitelloni significa literalmente vitelos gordos. No filme, "os boas-vidas" são jovens provincianos, que praticam o ócio e vivem às custas de suas famílias. Segundo o próprio Fellini, estes boas-vidas "chegam à casa dos trinta fazendo discursos e repisando suas piadas de moleques. Brilham durante a estação balneária cuja espera os ocupa durante o resto do ano. São desempregados da burguesia, mas são também amigos a quem eu quero bem. Flaiano, Pinelli (os roteiristas) e eu começamos a conversar sobre isso e, sendo todos ex-vitellonis, cada um tinha milhões de coisas para contar. Após toda uma série de histórias engraçadas, fomos tomados por uma grande melancolia, e fizemos este filme" Alberto é um sentimental, um grande chorão, agarrado à infância, que se emociona muito facilmente e que, na sua ingenuidade provinciana, não percebe as armadilhas do destino. Leopoldo, um escritor frustrado, cuja ambição se situa no âmbito de sua "paróquia" (e, com este, a fantástica seqüência do velho dramaturgo homossexual, um farsante, que o convida a ler seus textos na praia). Moraldo é o mais jovem, que, enfastiado, decide sair, ir para Roma (é nele que Fellini se projeta), e nele se encontra o embrião de um filme não realizado, Moraldo in Città
Sérgio Augusto, num ensaio intitulado Os boêmios errantes de Fellini (publicado no livro que contém o roteiro de I vitelloni) observa com muita precisão: "Como todas as outras confissões, inclusive as mais diluídas (As Noites de Cabíria) e as transferidas (Julieta dos Espíritos), elas correspondem a um período na vida do autor em que a profissão, o trabalho, o fazer-alguma-coisa, possui uma significação primordial. Abismos de um sonho: recordações do Fellini-fumettista; A estrada da vida: lembranças do Fellini-saltimbanco; Trapaça, Cabíria, Dolce vita: memórias e impressões da província e da metrópole pela ótica urbanizada (leia-se romanizada) do Fellini-repórter, com graduações variáveis de envolvimento e distanciamento; Oito e Meio: as angústias do Fellini-cineasta.
As fantasias "postas em ordem" em Vitelloni pertencem a uma fase anterior à do Fellini en route, fora de casa, em transito entre a Romagna ou a Toscana e Roma, do Fellini mais dominado pelo sentimento de vegetar e pela inércia sonolenta de Rimini que pelo esplendor vitalístico dos anos de aprendizado vividos com uma máscara de responsabilidade nas estradas do interior e nas avenidas da capital."Quatro os "capítulos" principais através dos quais o filme se articula. É importante observar que Fellini não segue a lei de progressão dramática da cartilha griffithiana (de David Wark Griffith, o pai da narrativa cinematográfica), parecendo, às vezes, que o filme é meio descosido. Mera impressão. Tem-se, portanto, estes quatro atos, por assim dizer, subdivididos num grande número de situações secundárias, que se concluem no epílogo com a despedida de Moraldo, o mais jovem dos vitelos gordos. Que inventividade cinematográfica, que poesia emana do momento em que Moraldo, da janela do trem em movimento, observa seus amigos adormecidos!
O primeiro capítulo conta o casamento apressado de Fausto, que engravidou Sandra, a irmã de seu amigo Moraldo. O segundo descreve a existência dos outros boas-vidas durante a lua-de-mel de Fausto e Sandra. No terceiro, assiste-se à fracassada e indolente tentativa de Fausto de se dedicar a um trabalho estável, e, finalmente, no quarto, à passagem de uma companhia de revista (com o velho farsante já citado), com mais uma traição de Fausto e uma crise conjugal mais séria."
Os boas-vidas, por sua originalidade de composição e tratamento temático, é quase um filme-arquétipo, que influenciou sobremaneira obras posteriores. Vê-se, nitidamente, rastros de I Vitelloni em Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973), de Martin Scorsese, em Loucuras de Verão (American Graffiti, 1974), de George Lucas, em O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas (St.Elmo fire, 1986), de Joel Schumacher e, principalmente, em I Brasilischi. de Lina Wertemuller, entre muitos outros.

2 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Disse tudo de forma brilhante não se tendo nada a acrescentar, a não ser reforçar que nós (a nossa geração) que vivemos aquele período colossal que foram os anos 1960, tivemos o privilégio de contemplar gênios e obras primas na arte e em toda a cultura mundial... Apesar do golpe 1964, ter-nos jogado nos anos de chumbo, parecia que estávamos no Olimpo.

Mirdad disse...

Maravilha ler um post teu sobre Fellini!