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23 novembro 2008

Cinema Baiano (6): "A Grande Feira"

Análise de estrutura audiovisual
A narrativa, em A grande feira, filme baiano realizado em 1961 por Roberto Pires, está mais a serviço da fábula, ainda que o realizador tenha se preocupado em estabelecer uma mise-en-scène para o seu desenvolvimento. Há graus de narratividade que procuram o específico fílmico na transmissão do aspecto fabulístico ou, se se quiser, na ilustração da história. E estes graus de narratividade podem ser conferidos em algumas seqüências: aquela em que Rony, indo procurar Maria, após ser ameaçado com a navalha, rompe o vestido dela; o passeio turístico de Rony e Helena e, principalmente, a pontuação da seqüência com a lancha e os personagens dentro dela; o momento no qual Chico Diabo vai tocar fogo nos tanques com o dinamite e o desenvolvimento de uma montagem paralela baseada na lei de progressão dramática griffthiana da corrida contra o tempo; o prólogo, com a partitura de Remo Usai; o plano geral que antecede o epílogo, com campo visual aberto onde, no quadro fílmico, vê-se o cais do porto em toda a sua dimensão e, pequenos, os dois protagonistas (o marido que, com a porta do carro aberta, espera a esposa arrependida); etc.

Em outros momentos, o realizador estabelece a sua condução fílmica nos diálogos, desenvolvendo pouco a capacidade de articulação cinematográfica. São exemplos desses momentos: as diversas seqüências no bar de Pedro, onde, nota-se, flagrante, a ausência de um maior desenvolvimento no que tange a um melhor ritmo especificamente cinematográfico, a predominar um nítido confinamento dos protagonistas num espaço asfixiado, quando o realizador poderia ter dimensionado este mesmo espaço em termos de uma maior flexibilidade de ação geométrica para a câmera. Aqui, neste caso, valeria mais usar, por exemplo, o campo e o campo contrário ou, melhor, o campo e o contra-campo. Há, também, um abuso virtuosístico que, ao contrário de abrilhantar a narrativa, fá-la apenas decorativa, enfeitada: os ângulos inusitados e insólitos da sequência na qual Rony dança com Maria no cabaré de Zazá.

No cômputo geral, existe um desequilíbrio no campo da mise-en-scène de A grande feira, causado, talvez, pela falta de recursos da produção. Roberto Pires, vale ressaltar, nesta sua segunda longa metragem, revela, por outro lado, uma artesania bastante apreciável e uma idéia de cinema capaz de fazê-lo um cineasta de vôos mais altos no plano narrativo. Não é, entretanto, um autor, ou, mesmo, um estilista, mas aquilo que se pode chamar de um artesão cinematográfico, pois tem capacidade de articular as imagens e de contar uma história.
No caso de A grande feira há, evidente, na distinção entre narrativa e fábula, (distinção que é válida mais no plano teórico), que são, a rigor, indissociáveis, que a fábula, de autoria de Rex Schindler, passou por um tratamento ainda literário através do roteiro feito pelo próprio cineasta que, pré-visualizando o filme, capacitou-o de uma linguagem própria e específica. Se a fábula original, o argumento, a história, é de Rex Schindler, a narrativa, porém, é de responsabilidade de Roberto Pires. Na transferência de signos – a transfer, o que é literatura, símbolos, passa para uma outra especificidade, qual seja a linguagem cinematográfica. Daí se dizer que a adaptação de uma obra literária para o cinema é impossível na medida em que a narrativa literária se destrói na transfer para a narrativa cinematográfica, a ficar, apenas, a intriga, as personagens, as situações, a idéia central.

É verdade que Rex Schindler, ao escrever a história de A grande feira, pensou em termos imagéticos, pois seu propósito era o de desenvolver uma história para ser filmada. Mas enquanto escrevia, com o uso de um referencial simbólico (letras articuladas em frases e, estas, em orações e períodos), fez literatura e não cinema. O cinema começa a partir do momento em que Roberto Pires escreveu o roteiro, fixando, neste, os elementos determinantes e componentes da linguagem cinematográfica.

Quanto à abrangência do poder narrativo de Roberto Pires, limitado, como se viu, mas talentoso, deve-se considerar que, havendo, a grosso modo, duas espécies de cineastas, um cerebral e conceptual, outro sensorial e intuitivo, o realizador de A grande feira se insere no segundo grupo, aquele dos sensoriais e intuitivos. Como diferenciar, no entanto, os dois tipos? Os cerebrais e conceituais reconstroem o mundo em função de sua visão pessoal, acentuando a imagem como meio essencial de conceitualizar o seu universo fílmico. Não perece ser, este, o caso de Roberto Pires. Já os sensoriais e intuitivos, ao contrário, procuram, antes, subtrair-se diante da realidade, fazendo surgir da representação direta da realidade a significação que querem obter. Assim, Roberto Pires, por sensorial e intuitivo, faz surgir, em A grande feira, a representação direta e objetiva do drama da Feira de Água de Meninos, a significação pretendida. Para ele, o trabalho de elaboração da imagem tem menos importância – não descuidando, porém, é claro, da mise-en-scène – que sua função natural de figuração do real. O seu virtuosismo – como no caso da cena que Rony e Maria dançam em ângulos insólitos – está em função dessa figuração do real, sendo um cineasta, nesse particular, realista. Ao contrário de um expressionista – que deforma o real, retorcendo segundo a sua visão, ou de um surrealista – que junta a realidade exterior e a interior, ou, mesmo, um intimista – que filtra, da realidade, alguns aspectos desta que exalta.

Cineastas conceituais e cerebrais são Serguei Einsenstein (Outubro), Orson Welles (Cidadão Kane), Jean-Luc Godard (Acossado), Alain Resnais (O ano passado em Marienbad), entre tantos outros, que tendem a reconstruir o mundo em função de sua visão pessoal. Neles, a narrativa tem predominância absoluta sobre a fábula, confundindo-se com esta ou, mesmo, o conteúdo, se se pode falar assim, nestes cineastas, é a forma.

Um outro exemplo de cineasta conceitual e cerebral é Alfred Hitchcock. O conteúdo de seus filmes está condicionado pela forma. Inventor de fórmulas, criador, Hitchcock não se incomoda – nem se preocupa – com a figuração do real, mas de seu real, pois autor completo. Ainda que, em relação a Roberto Pires, não se possa compará-lo a estes monstros sagrados da sétima arte, o fato é que, sendo sensorial e intuitivo, aproximando-se de outros, ainda que sem a força imagética destes, Pires é um realizador cuja intuição da imagem leva-o ao espírito griffthiano da narrativa, a uma concepção mais trabalhada em termos do desenvolvimento da imagem in crescendo. É mais um administrador da imagem do que um criador da imagem.

Tomando a palavra emprestada a Walter da Silveira (em ensaio-crítico publicado no suplemento literário do Diário de Notícias em novembro e dezembro de 1962 – em vários domingos), vale ressaltar que a mise-en-scéne de Roberto Pires, é, de certa forma, imperfeita. Diz Walter: “O roteirista-diretor-montador quis, com vários cortes, violentos e inesperados, criar ou renovar o interesse pelo relato, quebrando no espectador aquela acomodação subjetiva produzida pela acomodação ótica. Mas o efeito obtido, longe de representar o choque físico e espiritual desejado, às vezes não passou de uma agressão visual, insólita e dolorosa, sem fim estético ou dramático. Nenhum exemplo mais tangível do que a transposição do plano longo do automóvel, distanciando-se no porto, para o primeiro plano de Cuíca de Santo Amaro, gritando no final. Roberto Pires deve ter pensado que montage, na gramática moderna do cinema, equivale a um rompimento do convencional. Seria simples demais. Pode-se tentar uma nova ordem para o ritmo cinematográfico, jamais destruí-lo. Usar o corte imprevisto seguidamente termina numa academização, portanto em outro convencionalismo, sem a certeza de que o resultado artístico supere o tradicional. A única opção justa seria a de entender que um estilo de continuidade, de montage, acompanha e traduz o sentido do roteiro, assim como o estilo do verso, a sua brevidade ou alongamento, traduz e acompanha o sentido interno do poema. Esse entendimento, como totalidade, foi cumprido em A grande feira: nas suas particularidades, faz crer, porém, que Roberto Pires transforme em sistema o que apenas tinha validade para a natureza episódica de seu segundo filme.”.

Não se concorda, aqui, com o brilhante crítico e ensaísta a respeito do corte direto do plano longo do automóvel esperando no cais para o close up de Cuíca de Santo Amaro. Pires, ao contrário do que diz o ensaísta, provoca, é verdade, um choque ao sair de um plano geral para um close up e, com isso, nesta concepção moderna da montagem, não está sendo convencional. Se se puder concordar, com Walter, que o excesso de corte estridente na passagem de uma seqüência a outra (como o golpe desferido no policial que persegue Chico Diabo, o saxofone que dá início à seqüência na qual Zazá é morto, etc) pode conduzir a uma forma de academicismo, no que se refere ao corte final, que anuncia o término de A grande feira, o resultado é altamente funcional. Como a sugerir que a fábula do filme não passou de uma história de Cuíca de Santo Amaro. A tomada demorada, em plano geral, sinaliza um comportamento novo em estilística, a indicar que Roberto Pires estava antenado com o cinema mais moderno em prática em outros países. Ainda que, se se analisar no geral, o filme não deixa de ser, como diz Walter, acadêmico em sua estrutura narrativa. A ruptura desse cinema academizante (a câmera em volta da cama de Maria, os ângulos insólitos e virtuosos apontados) só viria a se dar em Glauber Rocha, dois anos depois, quando este realiza Deus e o diabo na terra do sol.
Outro crítico, Orlando Senna, em artigo sobre A grande feira publicado em novembro de 1962 no Diário de Notícias, discorda de Walter da Silveira em relação ao plano longo do final, quando escreveu: “O ponto alto do filme é a seqüência em que Ely (ou Helena), abandonada pelo marinheiro, retorna ao conforto do seu marido: um longo plano, ao fundo, entre dois armazéns das docas, Ely indecisa, seu marido, o automóvel próximo: a tomada é longa, parada, sofrida”. Mas Walter, a rigor, não discorda do plano em si, de sua longa duração, mas da montage, do corte ex-abrupto que, terminando a seqüência do cais, faz aparecer em expressivo close up o rosto falante de Cuíca de Santo Amaro.

A construção de uma narrativa fílmica, ou o arranjo que o material narrável assume na obra, pode obedece a diversos critérios. A distinção mais evidente é entre estruturas simples e estruturas complexas, sendo fato consumado que, neste caso, a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa (pode haver histórias intricadas, mas de estrutura elementar e, pelo contrário, histórias lineares mas que se tornam intricadas por uma disposição dos segmentos narrativos). Deu-se, na verdade, forma ao que se encontrava espalhado aqui e ali, procurando o entendimento do cinema dentro de um corpus sistematizador – e não aleatório. Assim, em A grande feira, considerando-se os vários tipos de estruturas narrativas, pode-se classificá-lo como um filme de estrutura simples e narrativa linear, aquela que é percorrida por fios condutores, que se desenvolvem de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema a que obedece é aproximadamente o seguinte: (a) introdução ambiental; (b) apresentação dos personagens; (c) nascimento do conflito; (d) conseqüências do conflito; (e) golpe de teatro resolutório. O esquema repete à letra o que era a estrutura base do romance naturalista ou psicológico do século XIX.

2 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Mais um capítulo deste fantástico compêndio sobre o cinema baiano.
Você já o publicou? Merece um livro. Realmente merece...

Faroeste disse...

Já tinha visto A Grande Feira e gostado. O revi hoje e o pontuei mais ainda.
Um filme limpo, bem iluminado, bem interpretado por uma turma de atores em inicio de carreira, com uma fotografia esmerada e muito bonita, sem falar na direção de Pires, que conseguiu fazer uma fita muito melhor que programado, sefgundo minha visão.
A fita tem falhas? Sim. É meio artesanal e um pouco amadora, com uma visível inocencia criando uma pelicula que peca muito pouco e nos dá uma visão do que era nossa capital 50 anos atrás.
Se observarmos que nosso cinema na época se plantava sobre as chamchadas com Oscarito, Ankito e Grande Otelo, fomos premiados com um filme bonito e com tomadas que nos mostra nossa cidade virgem de sujeita e transito, além de com nosso verde ainda plantado em suas raizes.
jurandir_lima@bol.com.br