O ponto de vista
adotado pela narrativa fílmica é sempre – e simultaneamente – objetivo e
subjetivo, nunca redutível a uma única perspectiva por causa da dupla e
concomitante ação realista e irrealista do cinema. O que não exclui, em todo
caso, a hipótese de a narrativa abraçar uma ótica em detrimento de outra em
relação ao desenvolvimento global da narração. Um filme, portanto, nunca pode
narrar um acontecimento inteiramente visto de dentro – a coisa que o romance
pode fazer, mas tem a necessidade de recorrer a um ângulo de observação que
permita unificar a matéria representada a fim de não gerar confusões de
perspectiva. No filme-ensaio (vide Meu tio da América/Mon oncle d’Amerique,
1979), do imenso Alain Resnais, esta ótica se identifica com a do autor que
seleciona e ajuíza. No filme de ficção, esta ótica segue o olhar de um dos
protagonistas, procurando, no entanto, não se confundir completamente com ele.
A perspectiva da câmera é diferente da do olho humano e, como demonstram
inúmeros filmes, a lente pode ocupar o olhar de um gato (Um dia, um gato, filme tcheco no qual, em
alguns momentos, tem-se a perspectiva do olhar do gato que vê as pessoas de uma
localidade segundo o seu caráter, dando-lhes as cores correspondentes). O
objeto focalizado também pode ser totalmente deformado – e, nesse particular, o
expressionismo alemão é farto de exemplos – O Gabinete
do Dr.Caligari, 1919, de Robert Wiene, Nosferatu, o vampiro, 1922, de
Friedrich W. Murnau etc. Em Cidadão Kane,
1941, de Orson Welles, filme com forte influência expressionista, o cineasta
usa tetos baixos para dar uma dimensão insólita aos personagens e, na sequência
do palácio de Xanadu, Susan Alexander, a segunda mulher de Kane, é vista em
pequena silhueta diante de uma gigantesca lareira. Dentro da mesma obra, um
jogo tipo quebra-cabeça – um puzzle que, no final das contas, é a própria
chave para a compreensão da obra – tem suas peças em dimensão enorme. Welles,
nestes casos, deforma os objetos com a lente com um propósito estético
contextual.
Henri Angel,
ensaísta francês, acha que o ponto de vista de um filme deve ser sempre o que é
adotado pelo cineasta, quer este decida ver o mundo através dos olhos de um dos
protagonistas, quer decida manter-se o mais possível exterior à ação narrada.
Um caso de identificação autor-personagem é representado por O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), de
Antonioni, onde a realidade é vista pela câmera não como efetivamente é, mas
como se apresenta aos olhos do protagonista. Há uma experiência radical feita
em 1947: A dama do lago (Lady in the lake)
no qual o personagem principal não aparece, substituído pela câmera subjetiva.
O que se vê na tela é o que o personagem está a ver. Mas a experiência não deu certa,
e o público ficou confuso. A este processo, chama-se câmera subjetiva, que é
muito usado, mas com alternância do objetivo e do subjetivo.
Outro caso de
identificação autor-personagem está representado em Repulsa ao sexo (Repulsion, 65), de
Roman Polanski, onde os pesadelos da protagonista (Catherine Deneuve),
apresentados como objetivos, não são mais que o fruto da personagem psicopata,
uma manicure sexualmente reprimida que se isola em seu apartamento e vai
enlouquecendo. Por falar em Polanski, vale ressaltar que seu derradeiro filme, O escritor fantasma (The ghost writer),
tudo indica que vai constar da lista dos melhores filmes do ano em curso, cuja
publicação, aqui, nesta coluna, será feita nas próximas semanas.
No pólo oposto
situam-se, pela sua objetividade extrema, filmes como Nashville, de Altman, uma crônica de
cinco dias da vida de uma cidade no Tennessee, Nashville, na hora do show business e de uma campanha
eleitoral que serve como um testemunho à beira do desespero sobre os Estados
Unidos contemporâneos. Também Lancelot,
de Robert Bresson, e Nicht
Versohnt, 65, de Jean-Marie Straub, obras centradas numa radical
objetividade e construídas de modo a esvaziar qualquer identificação
personagem-espectador e, também, redutíveis ao ponto de vista exclusivo do
realizador onisciente.
Existem também
filmes nos quais os pontos de vista são contraditórios ou contrastantes entre
si. Rashomon, 1950, de
Akira Kurosawa, filme que projetou o cinema japonês no mercado internacional, é
um exemplo bem marcante. A fábula se passa no século XV numa floresta perto de
Tóquio, quando um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a
mulher dele. A mulher, porém, diz que foi ela quem matou seu próprio marido.
Surge, então, a alma do morto que conta a todos, estupefatos, como se suicidou.
Mas um açougueiro que a tudo ouvia, dá uma quarta versão. Em Rashomon, portanto, são fornecidos três
pontos de vista diferentes do mesmo fato, todos igualmente espectáveis, até
emergir deles um quarto que é o verdadeiro. Ou não?
Há o caso de a ação ser contada por um morto que relata do além a sua história trágica – não existem nem realizador oculto nem personagem visível. É o que acontece em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, no qual o encenador protagonista conta da sua situação de defunto, o como e porque de sua morte devida à atriz famosa da qual tinha sido hóspede. A ex-estrela é Glória Swanson que, vivendo esquecida num suntuoso palácio antiquado de Hollywood, acompanhada de seu fiel criado (Erich von Stroheim), contrata um roteirista fracassado que se torna seu amante e que ela mata quando ele se recusa a continuar a relação.
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