Ana Maria Magalhães e Tarcísio Meira em A idade da terra, de Glauber Rocha
A linguagem cinematográfica nos filmes de Glauber Rocha não é
uniforme, sofrendo variações estilísticas bem acentuadas, principalmente em Deus
e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe
(1967), sem falar no puzzle que é o seu canto de cisne, A
idade da terra (1980). Se, antes de Glauber, o cinema brasileiro
segue os cânones da narrativa griffithiana (de David Wark Griffith, cineasta
americano que faz O Nascimento de uma Nação, em
1914, e Intolerância, em 1916, e é considerado o pai da narrativa
cinematográfica), a registrar na sua história poucas ousadias formais – exceção
se faça a Limite, 1930, de Mário Peixoto, é a partir dele que são
introduzidos conceitos de Sergei Eisenstein no corpus do filme.
Em Barravento (1959/1962), ainda que timidamente, a presença do
soviético se faz sentir, assim como uma procura de distanciamento dos moldes
praticados por Griffith – a narrativa de progressão dramática in
crescendo, com a apresentação do conflito, desenvolvimento deste,
clímax e desenlace.
Mas é
somente a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra que
efetua um corte longitudinal na história do cinema brasileiro, que Glauber
Rocha instaura um certo paradoxo estético num filme que conjuga várias influências,
desde a tragédia grega (o cego Júlio como fio condutor), passando pelo western,
na exploração dos grandes espaços, e Buñuel, na seqüência do assassinato do
Beato Sebastião por Rosa, até chegar a Eisenstein, na matança dos beatos em Monte Santo (influenciada
pela escadaria de Odessa de O Encouraçado Potemkin, 1925) e a
Kurosawa, com os rodopios dissonantes de Corisco, entre outros.
O
ritmo em Deus e o Diabo na Terra do Sol não segue um mesmo diapasão. Ora vem com
cortes rápidos (quando Manuel esfaqueia o fazendeiro ou com os cavalos correndo
na invasão da casa do vaqueiro que acaba por matar a sua mãe) num espírito
quase fordiano, ora vem com tomadas longas (a segunda parte no encontro de
Manuel com Corisco). Glauber Rocha, neste filme extraordinário, por mostrar uma
enxurrada de influências, revela que sabe reprocessá-las, dando a elas um
estilo, o estilo glauberiano, que seria copiado ad infinitum
pelas gerações posteriores sem, contudo, nunca igualá-lo.
Este
ritmo paradoxal de Deus e o Diabo na Terra do Sol não seria
repetido em Terra em Transe, que possui uma
estrutura narrativa de cortes ligeiros, montagem sincopada, e tomadas rápidas.
O cineasta opta por este ritmo para adequá-lo melhor à sua temática. Um poeta
que agoniza enquanto relembra fatos pretéritos. O filme se passa todo neste
instante de agonia e as imagens surgem, portanto, dispersas, não enfeixadas
dentro de uma narrativa corrente. Neste caso, é o pensamento tumultuado do
personagem interpretado por Jardel Filho que se situa como o próprio móvel do
filme. A Biografia de um Aventureiro, onde apresenta a trajetória
do político vivido por Paulo Autran, é extremamente wellesiana até mesmo por seu tom radiofônico. O processo
do pensamento agônico pode lembrar Alain Resnais.
Em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), Glauber Rocha se apóia numa estrutura de narração
que é, poder-se-ia dizer, antípoda da de Terra em Transe. Nela, uma
espécie de suite de Deus e o Diabo na Terra do Sol,
há uma radicalização estilística já experimentada em Cancer: a
dos planos-sequências – tomadas longas sem cortes. Em O Dragão...,
todo filmado na aridez da paisagem de Milagres, no interior baiano, mais
conhecido no exterior pelo nome de seu personagem principal, Antonio das
Mortes (sempre interpretado por Maurício do Valle), a utilização do
plano-sequência chega às raias da exasperação. Um bom exemplo é a do enterro de
Jofre Soares, quando a câmera acompanha uma ladainha e segue, em travelling,
o trajeto do funeral. Há, no entanto, na abertura, uma invenção fascinante:
Antonio das Mortes surge do lado direito da tela e passa por ela atirando com
seu rifle até desaparecer do lado esquerdo. De repente, com o cenário vazio de
pessoas, começam a cair vários cangaceiros, que foram atingidos fora
do enquadramento. Genial, um verdadeiro cinema de invenção.
As
variações estilísticas encontradas na filmografia glauberiana significariam uma
dispersão autoral? A resposta é negativa no sentido de que o estilo de Glauber
Rocha, particularíssimo, admite a confluência de ritmos dessemelhantes na
composição de sua mise-en-scène. Ora o corte rápido, como em Terra
em Transe, ora a ausência deste como em O Dragão
da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Neste caso, não se estaria diante
de duas mises-en-scènes? Sim, mas duas que se revelam variações
sobre um mesmo diapasão autoral, ainda que com timings diversos.
Glauber
Rocha não é nem um estilista nem um artesão, mas um autor de filmes, com
universo ficcional próprio e estilo particular. O cineasta estilista não tem uma
visão de mundo, embora possua um estilo característico que o faz reconhecível
de filme para filme, enquanto o artesão não tem nem uma coisa nem outra, mas
sabe articular uma narrativa, tem carpintaria, artesania. Glauber é bastante
pessoal na sua visão que dá do mundo através das imagens em movimento. Em O
Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro procura uma transfer
do ritmo da literatura de cordel para imprimi-la no cinema. A
sensação que se tem, vendo este filme, é a sensação de quem lê uma história cordelista,
com a diferença de que a transferência de uma linguagem a outra se processa com
extrema felicidade. Da palavra escrita, da sintaxe verbal, passa-se à sintaxe
cinematográfica que busca aquela.
O
cinema glauberiano é um cinema de ritmo, portanto. Barroco, tem o sentido da
linguagem, a compreensão de estar criando por meio de uma sintaxe própria, a
unir esta à morfologia característica do específico cinematográfico. Um plano é
morfológico, mas, quando este plano entra em contato com outro, deixa de sê-lo
para dar lugar à sintaxe cinematográfica. Glauber, nesse sentido, é um cineasta
que louva o verbo cinematográfico. Poucos os autores no cinema
nacional, compreendendo-os como tais, como dizia François Truffaut, que possuem
uma visão do mundo e um estilo de fazer cinema. Glauber Rocha encaixa-se
perfeitamente na definição do severo crítico do Cahiers du Cinema.
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Um comentário:
Tudo muito bem escrito e lacrado dentro do celofane do intelectualismo. Acho pena misturar nomes como o de Grofith e até de Eisenstein, com o trabalho do Sr. Rocha. Visto hoje, seu trabalho é de uma tremenda chatura and it bore us to death... como a maioria do "cinema Novo", que virou uma coisa datada, ultrapassada e extremamente cansativa - típico de um "movimento" que foi tao superficial...
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