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13 março 2014

Cinema: arte ou divertimento?

Falconetti em La passion de Jeanne D'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer

No seu excelente Ponto de Encontro, coluna que saia todo domingo no Mais! (que acabou) da Folha de S.Paulo, o Professor Jorge Coli, que sempre escrevia coisas pontuais e interessantes, tocou num assunto fundamental, qual seja o do "cinema de arte". Não resisto à transcrição. Saiu no dia 21 de setembro de 2008. O tempo decorrido não desatualiza o que está dito.

"Inácio Araujo, com seu sentido certeiro das formulações, escreveu outro dia em uma de suas críticas na Ilustrada: "Mas, ainda assim, não mais que um "filme de arte'".

É uma frase que abala convenções. Se fosse "não mais que um blockbuster" ou "não mais que um filme de shopping", tudo pareceria coerente. Do jeito que ficou, tem o aspecto de uma contradição: a noção "filme de arte", em princípio, elevada, foi percebida como pejorativa.

É que o chamado filme de arte deixou de ser o campo da invenção e da ousadia, como era percebido até algumas décadas atrás. Existe agora uma concepção preestabelecida que enquadra "filme de arte", com algumas receitas mais ou menos explícitas. Passou a existir o academismo do "filme de arte". Ele cumpre parâmetros e se submete a convenções implícitas, que restringem o espírito criador em benefício de um trabalhinho bem feito.

A razão principal não é cinematográfica.
Ela formou-se a partir de um pacto entre público e diretores culturalmente sofisticados, pacto que se estabelece por meio de sinais exteriores de reconhecimento, espécie de feromônios sem cheiro. Tudo isso substitui a criação cinematográfica mais autêntica.

Sim, perfeito, digo eu, passou a existir o academismo do "filme de arte". Os pseudo-cinéfilos que se deliciam com tudo que passa em sala alternativa da cidade, a pensarem, eles, que se trata de "filmes de arte", estão a trocar bolas, a misturar alhos com bugalhos. É interessante observar o comportamento dos pseudo-cinéfilos quando nas citadas salas alternativas. O Professor Coli foi preciso e tocou no ponto certo, quando diz da existência de um pacto entre público e certos diretores sofisticados, da "moda". Mas, por outro lado, pode advir do chamado cinemão (da indústria cultural hollywoodiana) filmes de grande expressão cinematográfica (Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, A árvore da vida, de Terrence Mallick, entre tantos). Já vi gente a torcer o nariz para os filmes de Clint Eastwood, o que é revelador de uma grande, profunda, imensa, ignorância. O grande cinema pode existir em qualquer lugar, quer seja pela obra autoral, quer seja pela obra oriunda de um esquema industrial. O resto é besteira. Cinema de arte não existe!

Os filmes resultam cheios de bons sentimentos, os temas são definidos de antemão como profundos; têm boa iluminação, boa filmagem, boa montagem. Os espectadores se encantam com algumas metáforas fáceis ou alusões que se querem densas. No fim, sai do cinema levemente entediado, mas com a satisfação de um dever cultural cumprido. Tudo isso é bastante simbólico e meio cerimonial. Cinema é uma arte, e a noção "cinema de arte" não é um título de nobreza, mas um pleonasmo. Ninguém consegue dizer de onde vai brotar a criação artística.

Mas voltando às palavras do Professor Jorge Coli: “Clint Eastwood, que nasceu de um cruzamento entre filmes baratos de Hollywood e o western spaghetti, tornou-se um artista maior na história do cinema. As sequências dos "Alien", dos "Batman", para além da discussão sobre cada filme, formam magníficas sagas. É bobagem multiplicar os exemplos: um filme não é bom apenas porque é "de arte" ou ruim porque blockbuster.

A sensação de tédio, nada boa em princípio, pode, curiosamente, ter um papel valorizador no campo da arte. É um fenômeno perverso. Espera-se das obras que elas ofereçam prazeres superiores, mas não muito bem definidos, que elas tragam revelações preciosas, que agucem a sensibilidade. Em nome deles, suporta-se estoicamente o tédio, imaginando-se que, de algum modo, a recompensa virá mais tarde. Muita gente faz uma distinção nítida entre arte e divertimento, como se divertir com arte fosse quase um pecado.

Existe, por sinal, uma história filosófica desse pecado, que Hans Robert Jauss retraçou em sua "Pequena Apologia da Experiência Estética". A cultura norte-americana, com sua forte pregnância classificatória, insiste muito na separação entre "art" e "entertainment". Simplificando: se é arte, é chato, se é gostoso, não é arte. Esse jogo preconceituoso é péssimo: ele faz engolir gato por lebre e recusar lebre por gato. Há certas obras que são apaixonantes, mas consideradas difíceis. É que o espectador não encontrou as boas chaves para elas. Procurá-las é um desafio: dificuldade não quer dizer tédio, mas estímulo. As artes foram feitas para oferecer prazeres dos tipos e gêneros diversos. “Se eu me aborreço, é que alguma coisa está errada”.


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