Delphine Seyrig em O ano passado em Marienbad (1962), de Alain Resnais |
A linguagem cinematográfica, já se disse
aqui em alguma coluna, foi sendo construída durante as seis primeiras décadas
do século passado. Se a data da aparição do cinema se dá em 1895, somente quase
20 anos depois, em 1914/1915, é que se estabelece a configuração expressiva da
sua narrativa, de sua linguagem, com O
nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith, e,
logo adiante, em 1916, Intolerância
(Intolerance), do mesmo diretor. Durante duas décadas (1895/1915), a
linguagem cinematográfica tem seus elementos determinantes descobertos aos
poucos e por acaso.
Um cinegrafista
de Auguste e Louis Lumière (os inventores oficiais do cinema, embora muitos
outros, na mesma ocasião, tentassem, em outros países, a projeção das imagens
em movimento), Alexandre Promio, numa gôndola num canal de Veneza, liga o seu
cinematografo e, a filmar os casarios com a barca em movimento, descobriu um
movimento de câmera, o travelling. Um
inglês, em 1901, G.A. Smith, da Escola de Brighton, Inglaterra, enquanto
registra uma cena de uma mulher diante de um fogão, que está a ponto de
explodir, em plano geral, tem a idéia de cortar e introduzir, neste, um close up do rosto da mulher aflita com o
acidente prestes a acontecer. A descoberta da inserção de um close dentro de um plano geral é um
grande passo na evolução da linguagem.
Assim como a
montagem alternada, quando se vê, simultaneamente, vários espaços que se
alternam em ritmo crescente até que se convergem num único espaço. A grosso
modo, num filme do princípio do século XX, ainda nos primórdios da invenção, o
exemplo da mulher que, amarrada aos trilhos por bandidos inescrupulosos
(primeiro espaço), está quase a ser espedaçada pelo trem que vai vindo ao longe
(segundo espaço) e que, com o desenvolvimento da narrativa, está cada vez mais
perto, enquanto o mocinho, namorado da mocinha, toma conhecimento de que ela
está em perigo (terceiro espaço) e vai em disparada salvá-la. No final, os três
espaços se unificam no primeiro, com a chegada do mocinho, que consegue
desamarrar a namorada dos trilhos, e fazer parar o trem. Outros elementos da
linguagem são descobertos neste período, principalmente por Griffith em seu
período na Biograph (ler, neste sentido, o fundamental livrinho da coleção Encanto Radical (Brasiliense, 1984) de
autoria de Ismail Xavier: D.W. Griffith:
O nascimento de um cinema ou, também muito importante, Serguei M. Eisenstein: Geometria do êxtase, da mesma coleção e
editora, de Arlindo Machado).
Griffith, nos dois filmes citados, é aquele
que consegue sistematizar, com eficiência dramática, as descobertas anteriores
dos elementos da linguagem cinematográfica. Mas a linguagem ainda precisa de
muitas décadas para se aperfeiçoar e se cristalizar, o que se dá em meados da
década de 60. Os inventores de fórmulas (Hitchcock, Eisenstein, Orson
Welles...) deixam de existir para dar lugar a um cinema de estilo.
Existem, a
rigor, entre os realizadores cinematográficos, dois modos fundamentais de
abordar o mundo: o cerebral/conceitual e o sensorial/intuitivo. Classificação
formulada por Marcel Martin em A
linguagem cinematográfica (pág 245), editado várias vezes por diversas
editoras e livro imprescindível para um conhecimento básico da dita cuja. O
exemplar que se está em mãos é da Brasiliense de 1990.
Nestes dois
modos de abordar o mundo, os realizadores cerebrais/conceituais procuram
reconstruir o mundo em função de sua visão pessoal, acentuando a imagem como
meio essencial de conceituar o seu universo fílmico. Que outro cineasta mais
cerebral e conceitual que Orson Welles. O autor de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) privilegia mais a imagem do que a
chamada realidade e seu filme é, no fundo, como disse o historiador francês
Georges Sadoul, "um retrato do artista por ele mesmo". Também
se incluem como cerebrais/conceituais realizadores como Eisenstein cujo
realismo, se assim se pode chamar, é um realismo conceitual, Carl Theodor
Dreyer que, com seus quadraux mouvants
(quadros moventes) sempre está a
fazer exercícios cerebrais diante do tema exposto, a exemplo de O martírio de Joana D'Arc (La passion de
Jeanne D'Arc, 1928), A palavra
(Ordet), Vampyr, Gertrud, entre outros. E o esteta Luchino Visconti cuja
forma privilegia na composição de sua mise-en-scène
embora o propósito de fazer emergir uma realidade determinada (e Rocco e seus irmãos/Rocco i suoi fratelli,
1960, não seria, então, mais intuitivo?). Robert Bresson é cérebro e conceito, assim
como Alain Resnais (cuja simbiose entre forma e conteúdo atinge as raias de um
processo inextricável em O ano passado em
Marienbad [L'année dernière a Marienbad, 1961], entre outras tantas obras
de sua rica filmografia,que se considera uma das mais importantes do cinema em
todos os tempos - recentemente Medos
privados em lugares públicos [Coeurs], filme recente de um senhor em idade
provecta, veio a mostrar diante de um cinema contemporâneo apático a
jovialidade, a inventiva, a grandeza desse cineasta francês desbravador de
fórmulas que muito acresceu à evolução da linguagem cinematográfica. O filme
permanece em cartaz por mais de um ano em uma sala paulista). E mais cérebros:
Jean-Luc Godard, que praticamente inventou o filme-ensaio, Tarkosky, entre
tantos que o espaço não permite a citação.
Os realizadores cinematográficos sensoriais
e intuitivos procuram subtrair-se diante da realidade (como se desaparecessem
diante dela), fazendo surgir, da representação da realidade direta o objetiva,
a significação que querem obter. Para estes cineastas, o trabalho de elaboração
da imagem tem menos importância que a sua função natural de figuração do real.
Os sensoriais e intuitivos não almejam confiscar o espectador diante da
fascinação da imagem, mas, pelo contrário, respeitam a sua liberdade. Assim, em
seus filmes, a característica essencial está menos no caráter insólito de suas
imagens do que na intensidade da representação da realidade. Marcel Martin diz
textualmente: “E poderíamos acrescentar, ainda esquematicamente, que o período
em que a linguagem (imagem, montagem) teve um papel predominante correspondeu
ao triunfo dos cerebrais, ao passo que o progressivo abandono da linguagem
tradicional assinala a preponderância dos sensoriais e de sua visão plástica
não mais obcecada pelo conceitualismo.”
David Wark
Griffith talvez seja o maior exemplo do cineasta sensorial e intuitivo, assim
como Charles Chaplin, Robert Flaherty, Wilhelm Murnau, Yasujiro Ozu, Jean
Renoir, Roberto Rossellini, Vittorio DeSica, Federico Fellini, Michelangelo
Antonioni, Theo Agelopoulos, Wim Wenders, etc.
Estes cineastas
se esforçam para subtrair-se diante da realidade e o que desejam é fazer surgir
a produção de sentidos pela sua representação direta e objetiva. Os
realizadores cerebrais estão a desaparecer. E o que dizer dos neófitos que
pegam em câmeras digitais e filmam a torto e a direito? Nestes, conceitualismo
e cerebralismo são bichos de sete cabeças.