Rogério Sganzerla foi, sem dúvida, um dos mais coerentes e íntegros
realizadores do cinema brasileiro, além de possuir uma pulsão criadora rara que
o integra na seleta galeria dos cineastas mais criativos da cinematografia
nacional. A sua obra de estréia, O Bandido da Luz
Vermelha (1968), traumatizou duramente os realizadores e pode ser
considerada um marco ou, até mesmo, um filme divisor de águas. Lançado pouco
antes do Ato Institucional número 5 – que cerceou por muitos anos qualquer
manifestação livre no Brasil, modelou um tempo e uma época. Se formalmente
continha elementos explosivos e inovadores dentro do ponto de vista da
linguagem – a narrativa como um programa de rádio dos mais bregas, os cortes
brilhantes, a fragmentação com a adição de material de procedência diversa como
recortes de jornais, histórias em quadrinhas, filmes, etc, também continha uma
significação exemplar propícia para o momento histórico no qual viviam os
brasileiros amordaçados pela ditadura implacável. O Bandido da Luz
Vermelha se insurge contra os postulados cinemanovistas – que
procuravam retratar a realidade brasileira em tom grave – e instaura a
anarquia, a iconoclastia pela impotência de seus criadores no estabelecimento
de um cinema representativo. Como diz seu personagem num determinado momento do
filme: “A gente quando não pode fazer nada se avacalha e se esculhamba”. Melhor
retrato do país impossível. Melhor explosão de criatividade, difícil. O
Bandido da Luz Vermelha desencadeou uma onda de filmes
que foram intitulados de ‘marginais’, ou, mesmo, ‘udigrudis’. O carro-chefe é
este filme de Rogério Sganzerla, ainda que alguns críticos estudiosos desse
momento prefiram considerar A margem (1967), de Oswaldo
Candeias como o ponto de partida do ‘Cinema Marginal’
Se o trauma foi
imenso, Sganzerla ofereceu as coordenadas para a continuidade de um cinema
autoral que estaria morto com o advento do Ato Institucional 5. Dificilmente
existiria, por exemplo, na Bahia, Meteorango Kid, O Herói
Intergalático (1970), de André Luiz Oliveira, ou Caveira My
Friend (1969), de Álvaro Guimarães, ou, mesmo, o média Vôo
Interrompido (1969), de José Umberto, sem a existência anterior
de O Bandido da Luz Vermelha, obra insólita e brilhante,
renovadora, que pode ser incluída entre os cinco maiores filmes brasileiros de
todos os tempos. A fita de Sganzerla é um brado retumbante de artistas que,
asfixiados, tentam, pela verve da criação, respirar o cinema em seus vinte e
quatro quadros por segundo. Sganzerla morreu com o estigma do ‘primeiro filme’,
pois passou a vida a ser cobrado por um outro ‘bandido’ que, na verdade, nunca
mais apareceu, apesar de suas tentativas de renovação das estruturas
lingüísticas em obras posteriores. Mas nada que se pudesse equiparar a esta
obra de estréia de um cineasta que contava, apenas, 22 anos. E que, desde os 16
já assinava críticas cinematográficas no sisudo O Estado de S.Paulo.
Mas Sganzerla,
se em O Bandido da Luz Vermelha, sua indiscutível obra-prima,
estabelece um cinema de montagem, com tomadas rápidas, pulsação alucinante, já
em A Mulher de Todos, filme seguinte, de 1969, aciona um freio
no conceito de duração. A radicalidade chega em Sem Essa
Aranha (1970), quando abandona o corte em movimento para dar lugar a
um cinema muito mais de mise-en-présencedo que de mise-en-scène.
Se O bandido da luz vermelha é o supra-sumo desta, os filmes
radicais de Rogério Sganzerla dos anos 70 são arredios à fluência narrativa,
propõem ao espectador estar em presença do que é registrado,
enfim, são obras que se caracterizam pelo estabelecimento do plano-seqüência
como moto dainação. Inação, porém, do que se poderia
chamar do discurso fílmico porque, na essência, a ação está
dentro da tomada. Em Sem essa aranha, se não há falha de memória,
apenas nove são os planos-sequências. Em particular, a festa no quintal de uma
casa com o próprio rei do baião, Luiz Gonzaga, a promover o agito enquanto a
protagonista, Helena sempre Helena, perambula meio desesperada. Em outro
momento, é Jorge Lordelo (Zé Bonitinho) quem compõe o plano-sequência, que
depois o repetiria, quase no mesmo tom, em Abismu.
Sganzerla, após
brilhar no cinema de mise-en-scène, com sua magistral obra de
estréia, parte célere para um processo de radicalização tal que se poderia ver,
nisto, uma tentativa homicida de matar a mise-en-scène,
arrebentando as estruturas de sua linguagem para fazer emergir, quase como uma
totalidade, o sentido da mise-en-présence. O cinema é, para
Sganzerla, uma narrativa dentro do plano, mas não como faz Michelangelo
Antonioni com sua desdramatização em obras-primas como A
aventura, A noite, ou O eclipse, entre outras,
pois aqui há um fio condutor. Sganzerla parte este fio condutor e deixa os
planos-seqüências quase como se fossem filmes autônomos.
Um comentário:
Um dos grandes clássicos do cinema brasileiro. Tomara que a continuação também seja boa.
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