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05 junho 2011

Robert Altman: humor ácido e requintado


Em inícios dos anos 70, a comédia americana - que teve seu apogeu nos anos 30, 40 e 50, a Idade de Ouro de Hollywood - dava mostras de esgotamento, principalmente por causa da aposentadoria de alguns de seus próceres, e os que ainda a continuavam não conseguiam renová-la. É neste despertar dos 70 que aparece no panorama internacional uma comédia diferente, satírica, ácida, irreverente: M.A.S.H., de Robert Altman. Localizada a ação na Guerra da Coréia, tem uma clara referência à do Vietnã que então se encontra no auge e no clamor dos protestos da sociedade americana. Conta a película a vida de soldados no front bélico, onde dois cirurgiões (Elliot Gould e Donald Sutherland) fazem o diabo para costurar os feridos. Tudo feito na base da anarquia criativa, com um dinamismo estrutural, rapidez de diálogos, que muitos críticos consideram que, neste filme, há uma renovação na comediografia cinematográfica. Sally Kellerman se revela como a oficial séria e ríspida que tem sua cortina devassada quando toma banho numa sequência memorável.
Altman, por M.A.S.H., e apenas por este, se torna, logo, um cult de uma hora para outra, ainda que já com uma filmografia cujo início se dá muito antes, em 1957, com Os Delinqüentes (The Delinquents) e, neste mesmo ano, The James Dean Story, um documentário sobre o mito que há poucos anos tinha sido vitima de um acidente automobilístico. Os produtores não gostam de Os Delinqüentes e, quanto ao documentário, não o consideram palatável comercialmente. De pires na mão, Altman procura um produtor - naquela época não se usava a famigerada captação de recursos - e, desempregado, custa a arranjar, e mesmo assim na televisão, um emprego como diretor de fitinhas sem importância - que os críticos franceses, dando uma busca nos arquivos televisivos, conseguem encontrar, nestas fitinhas, o touch altmaniano.
Dez anos se passam até que Altman encontra um produtor com mania de risco, de investir em projetos condenados. E realiza No Assombroso Mundo da Lua (Countdown, 1968), ficção-científica que rende alguns trocados na bilheteria e faz os produtores acreditarem que Altman era diferente e, assim, deviam lhe dar uma segunda chance. Esta foi um sucesso, ainda que relativo de público, mas entusiasmado da crítica: Uma Mulher Diferente (That Cold Day in the Park, 1969), um thriller de extremado rigor sobre a solidão de uma mulher (Sandy Dennis) numa grande cidade (Nova York). Filme marcante, com uma mise-en-scène baseada nos acordes musicais e no silêncio. A seguir, o estrondo de "M.A.S.H."
Espera o diretor quarenta e cinco anos para se ver reconhecido como cineasta (nasce em 1925, morre em 2006, aos 81). Após a sátira devastadora sobre o Vietnã travestido de Coréia, os produtores começam a lhe oferecer projetos. Altman, como sempre muito exigente e muito à margem do sistema hollywoodiano, procura construir uma carreira de autor. Tem tanta presença a sua assinatura que mesmo quando pega um roteiro alheio, e do qual não gosta, o resultado é sempre um filme de Robert Altman. O que constrói o cineasta após M.A.S.H.? A resposta vem no mesmo ano: Voar é com os pássaros (Brewster McCloud), com Bud Cort - o menino que contracena com Ruth Gordon em Ensina-me a Viver. Fracasso. Humor sofisticado demais. Um garoto tem o desejo de voar como Ícaro. E parte para a ação num aparelho de madeira complicado. Apesar de rejeitado pelo público, é um grande filme, difícil, é verdade, pois de configuração diferente dos padrões de Hollywood. Em seguida, Quando os Homens São Homens (Mc Cabe and Mrs Miller, 1971), com Warren Beatty e Julie Christie, um anti-western, pois sem a essência do gênero, o conflito em movimento. Altman opta pela inação, e, ainda por cima, numa paisagem cheia de neve. Outro fracasso. Mas a crítica recebe os filmes de braços abertos. E os produtores arrancam os cabelos de raiva.
Mostra ser um cineasta temperamental, difícil, incapaz de se dobrar às solicitações de uma platéia convencional. Os filmes seguintes dão ao realizador um passaporte para a rua da amargura. Imagens (Images, 1972), reavaliação do terror como componente do "impulso cinemático", com Suzannah York, e após este, um estudo crítico de gêneros, desmistificando-os como fórmulas: o filme noir em Um perigoso adeus (The long goodbye, 1973), com Elliot Gould, e o thriller com a tônica no gangsterismo em Renegados até a última rajada (Thieves like us, 1974), com Keith Carradine. Desse modo, a revisão de gêneros, que a chamada pós-modernidade se apodera, tem em Altman um precursor.
Um estilo que se caracteriza pela preocupação em desmontar a lógica que precede o discurso cinematográfico, subvertendo, sempre, o diapasão de seu itinerário. A grande arma de Altman é o humor, ácido, por vezes cruel, mas sempre refinado, requintado, um humor para o sorriso interior, mas, quase nunca, para a explosão de gargalhadas - exceto em M.A.S.H. Sua linguagem se concentra num "texto" e num "subtexto", em tons e subtons. Altman, definitivamente, não pode ser admirado pela horda selvagem multiplexiana, pela patuléia que comanda o espetáculo de horror - que é ir a uma matinê numa das salas dos complexos dominantes.
Por causa dos apupos da crítica, um produtor, que não tem medo de negócios arriscados, banca Altman. E, ainda em 1974, faz Jogando com a sorte (Califórnia split), com Elliot Gould, ator preferido na época, e George Segall, uma viagem altmaniana sobre os deserdados da sorte e a "feérie" da jogatina. Mas até o produtor, que lhe banca os filmes, quis dar o fora, pois o dinheiro investido não retorna a contento. Mas Altman arranjou produção e, num golpe de sorte, acerta em Nashville (1976), que muitos consideram sua obra-prima. Retrato da América, o filme se concentra num festival de música country.
Segue outro anti-western, com Paul Newman: Oeste Selvagem (Buffalo Bill and the indians or Sittings Bull's history lesson, 1976), celebrado em Berlim. O sucesso de Nashville compensa as perdas internacionais. Sittings Bull é outra desmistificação, desta vez do heroísmo de Buffalo Bill, tão cultuado nos Estados Unidos, mostrando-o como um homem de caráter duvidoso e comportamento ambíguo. A paisagem do oeste, selvagem, como diz o título original, e a ausência total de uma "clicheria" não contentam os amantes do gênero.
Um estudo da alma feminina feita com sensibilidade e emoção neste filme que considero um de meus preferidos do realizador de "Assassinato em Godsford Park". Janice Rule, Sissy Spacek e Shelley Duvall estão inexcedíveis como as personagens de "Três mulheres" ("Three Women", 1977), criaturas atormentadas pela angústia do existir e que se debatem no inferno de suas existências. Obra rara e severa, mas difícil de encontrar para uma revisão.
O espaço chegando ao fim e eu, aqui, ainda com Altman na década de 70. Que fazer? É dizer logo que Cerimônia de casamento (A Wedding, 1978), afresco notável sobre os comportamentos hipócritas numa festa de casamento burguesa, é um sucesso. Elenco fabuloso, que inclui Vittorio Gassman e Lillian Gish e Carol Burnett. Nunca a burguesia é tão bem radiografada quanto neste A Wedding. Grande filme, mas também assinala o começo de sua decadência nos anos 80 cuja reabilitação somente se dá em 1992 com O Jogador (The Player). Se em 1970 tem início o culto a Altman, 1980 assinala a sua descida ao inferno com Popeye, com Robin Williams e a magricela Shelley Duvall como Olívia. Os produtores são, literalmente, enganados. Ao invés de um filme para agradar as platéias populares, Altman prefere a caricatura, a desmistificação - como sempre o olhar irônico, o riso que se multifaceta nas entrelinhas. O público quer gargalhar com Williams no papel de Popeye e se depara, sem entender nada, a piada oculta.
Antes deste elabora um filme que particularmente não gosto, Quinteto (Quintet, 1979), com Paul Newman, novamente, e também trazendo de volta Gassman - cujo desempenho em A Wedding deixa Altman entusiasmado. Um Casal Perfeito (A Perfect Couple) é simpático, mas sem o brilhantismo habitual. E com o afundamento de Popeye as portas se cerram para o realizador. Realiza o que quer, no entanto, nos anos 70, e somente por esta safra o título de grande cineasta já lhe poderia ser dado.
Enfraquecido, sem crédito, Robert Altman desaparece de circulação. Nenhum filme seu estréia mais no circuito. Aos poucos, na década de 80, vai sendo substituído no culto por outros realizadores, como Wim Wenders. A maior parte dos filmes que o diretor de Godsford Park faz nesta década nada prodigiosa para ele não foi distribuída no Brasil, como, por exemplo, Come back to the Five and dime, Jimmy Dean, com Karen Black - que fim levou essa atriz? e Cher, e Além da terapia (Beyond therapy, 1986), com Glenda Jackson e Tom Conti, sátira à psicanálise, ou Fool for love (1985), com Sam Shepard e Kim Bassinger. O único Altmam com alguma notoriedade nos 80 é O exército inútil (Streamers, 1983), por causa de prêmio internacional dado a todo o elenco na categoria "melhor ator". Baseado em peca teatral, segue ao pé da letra as torrentes verbais, constituindo-se quase que num teatro filmado desenvolvido em planos-sequências e movimentos de câmera inteligentemente manipulados.
Finalmente, os anos 90 lhe abrem novamente as portas: O Jogador, Short Cuts (este, uma obra-prima), Prêt À Porter, Kansas City, A Fortuna de Cookie, o admirável O Assassinato em Godsford Park, e A última noite, seu canto de cisne. A sua narrativa polifônica marca época e influencia uma geração de cineastas, principalmente a encontrada em Nashville e Short Cuts.
Meu melhor Altman continua sendo Short Cuts.

6 comentários:

Armundo disse...

O meu também. A violoncelista que se suicida, a dona de casa, mulher de marido desempregado, que faz bico em serviços de pornografia (ou pornofonia) ao telefone (ela batendo um bolo enquanto fala de felação e o diabo sob as vistas do marido perplexo). Jack Lemmon genial, etc, etc. Agora, Pret A Porter é uma delícia. É tudo que esse tal mundo da moda merece. Uma pergunta: "The long goodbye é baseado no romance de Raymond Chandler?

Adalberto Meireles disse...

Lembro que vi alguns trechos de Três Mulheres, depois de muito tempo, no início dos anos 00 em uma reprise no SBT. Mas a cópia era tão ruim... Um filme admirável, entre tantos outros: M.A.S.H, Nashville, A Wedding, Short Cuts, O Jogador. Altman é um divisor. Difícil dizer qual o melhor. Ele sempre cutuca, fere.

André Setaro disse...

Acho que não citei 'Três mulheres' ('Three woman'), filme que gosto muito. Uma falha imperdoável. Vi-o no antigo Bristol, quando este cinema passava, aos sábados, filmes interessantes e de pouca valia para o mercado consumidor. Em cinemascope, lente anamórfica, passou no Tv Cult, mas, finda a apresentação dos créditos, houve um espichamento para a tela cheia (full screen) que me assombrou de tal maneira que desliguei a televisão. Se não me engano, trata de três mulheres neuróticas,um delas pintora (Janice Rule), que passa a maior parte dentro da piscina vazia a pintar suas laterais, Sissy Spacek, e Shelley Duvall, a magrinha que também trabalhou em outro filme de Altman: 'Popeye'.

ANTONIO NAHUD disse...

O meu favorito continua sendo CERIMÔNIA DE CASAMENTO. Acho um verdadeiro show de direção.

Jonga Olivieri disse...

Ainda esta semana revi MASH. Já é a 3ª vez em pouco mais de dois meses que o adquiri e o revejo.
Lembro que assisti MASH pela primeira vez num cinema na esquina da Pulista com a Augusta. Não me lembro o nome dele pois já ficava em um shopping, que hoje está transformado e tem vários cinemas no estilo “Multiplexes” da vida.
E você tem toda razão quando diz que a Coréia do filme é uma “projeção” (no sentido psiquiátrico do termo) da vida real no Vietnã, quando a população civil se manifestava fortemente nos EUA contra a guerra neste último país.
Costumo dizer que a última guerra justa foi a do mundo contra o fascismo alemão e italiano, mormente o primeiro mais forte e bem sucedido bélicamente falando, pois a Itália foi um desastre neste sentido... Do início ao fim. Daí em diante, inclusive a Coréia, foram o fruto da guerra fria, sujas e contra paisécos...
Mas voltando à vaca fria, ou à guerra quente, MASH é uma obra prima do humor e de novos conceitos... Constitui-se como uma das obras mais anti militaristas de todos os tempos. Por uma razão muito simples: ela esculhamba com a instituição ‘Army’. Arrasa mesmo com o comportamento militar. Basta notar que seus “vilões” são os que “respeitam a farda”. Os personagens de Sally Kellerman e Robert Duval, milicos “caxias” da vida são levados ao ridículo desde a “trepada” transmitida em “viva voz”, até o famoso “banho” de “Lábios Ardentes”, nome pelo qual ela fica sendo conhecida porque na primeira cena citada ela diz entre sussurros: “...beije os meus lábios ardentes”...
Um filme que marcou uma época. Ao lado de “Easy Rider”, completamente diferente, mas também questionador da sua época e da sociedade estadunidense e seus padrões de “perfeição”, o ‘american way of life’...

André Setaro disse...

Você entendeu bem o 'espirito' satírico de 'MASH'. Trata-se, na verdade de uma paráfrase sobre a guerra do Vietnã, assim como o solitário Gary Cooper, que enfrenta a covardia de uma comunidade, em 'Matar ou morrer', é também uma paráfrase, mas ao 'maccarthismo'.