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17 setembro 2009

"C'eravamo tanto amati"

Filme que abarca trinta anos da história da Itália e, também, do seu cinema, Nós que nos amávamos tanto (C'eravamo tanto amati, 1974), visto hoje, é uma preciosidade. Realizado com muita sensibilidade e com aquela maneira de expor as situações como somente os italianos sabem fazer, o filme aborda também o itinerário de três amigos desde o final da Segunda Grande Guerra, quando se conheceram, até o engajamento político (ou a alienação) dos conturbados anos 60, a chegar, inclusive, neste panorama temporal, à primeira metade da década de 70. O sabor de C'eravamo tanto amati, no entanto, advém de certas sequências magistrais que Scola as concebe com extremada força poética como aquela em que Nino Manfredi vai ao teatro pela primeira vez com Stefania Sandrelli, e, porque apaixonado por ela, ao sair, na rua, repete os gestos dos atores numa ação de congelamento para, por meio dela, declarar o seu amor à companheira.
Nino Manfredi, Vittorio Gassman e Stefano Satta Flores são os três amigos que se conhecem durante a resistência à ocupação nazista e, a partir daí, acompanhamos as suas trajetórias por três décadas. Manfredi, enfermeiro, vem a conhecer, no hospital, a belíssima Stefania Sandrelli, a iniciar, com ela, um romante, até que surge Gassman, que a conquista, deixando Manfredi na rua da amargura. Mas se, a princípio, há uma celebração da amizade e da alegria, com o passar do tempo, os três tomam caminhos diversos e antagônicos. Gassman é ambicioso, advogado, casa-se com Giovanna Ralli, filha de um milionário, por oportunismo e interesse, e deixa Sandrelli, que volta aos braços do antigo namorado. Stefano Satta Flores toma a decisão de se casar e ser professor e crítico de cinema numa cidade interiorana da Itália, mas, descontente com o provincianismo do lugar, volta a Roma, onde reencontra Manfredi. Quer ser crítico de cinema. Há um momento particularmente interessante quando Flores passa, num cineclube da cidade, Ladrões de bicicletas (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio De Sica, e se aborrece com os graves pronunciamentos dos professores que condenam o neo-realismo italiano.
Aliás, C'eravamo tanto amati é um filme sobre o cinema italiano. Também. São frequentes as alusões aos filmes e há uma sequência na qual Scola reconstrói as filmagens da cena de Fontana Di Trevi com Federico Fellini, Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg, todos a fazer os papéis deles mesmos. Em outro momento, Flores, em programa televisivo, ao responder perguntas sobre Ladrões de bicicleta, erra uma delas e perde o prêmio. Anos depois, porém, numa palestra de Vittorio De Sica (como ele mesmo numa de suas últimas apariçoes no cinema), vem a testemunhar, pelas próprias palavras do diretor do filme, que tinha razão e o programa estava errado. São momentos preciosos deste filme encantador.
Da euforia do início, surge o desencanto, a nostalgia do pretérito, a amargura. Gassman se torna poderoso, mas solitário, egoísta. Não se pode deixar de mencionar a presença de Aldo Fabrizi, grande nome da cinematografia italiana, no papel de seu sogro: gordo, disforme, autoritário, enorme performance. Trata-se, em suma, de um filme que não pode deixar de ser visto e que traz saudades dos grandes momentos do cinema italiano nos anos 50 e 60 nestes tempos em que a indústria cultural hollywoodiana tomou completamente conta do mercado e raros os filmes em língua italiana que frequentam a imaginação dos cinéfilos.

Triste a constatação, como vi agora no Imdb, o maior banco de dados da internet sobre filmes, que Manfredi, Gassman, o grande Gassman, o Laurence Olivier do cinema italiano, e Stefano Satta Flores não vivem mais na Terra.


2 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Gassman era tão grandioso que quando você diz que ele era o Lawrence Olivier do cinema italiano eu me pergunto se não seria o contrário.
Claro que isto é apenas um jogo de palavras, mas sua magnanimidade é de fato incontestável.
Todavia digo isso porque acabei de adquirir (e rever) "Il Sorpaso" e de vez em quando assito "Brancaleone" e fico admirado com o seu desempenho fabuloso...
Pena que nunca pude vê-lo no teatro, onde dizem era fantástico.

André Setaro disse...

Vi 'Aquele que sabe viver' ('Il sorpasso'), do grande Dino Risi, com Vossa Senhoria no extinto, falecido e incendiado cinema Capri do Largo 2 de Julho, em 1967, quando você aqui estava fugindo do inferno (não propriamente na concepção johnsurgesiana).

Lembro que Gassman vai um mictório e faz um gesto inesquecível quando coloca o seu * para dentro da braguilha. É uma pantomina quase chapliniana.