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28 junho 2009

Quando James Stewart veio ao Rio de Janeiro

Publicado no dia 23 de junho de 2009 na revista eletrônica Terra Magazine.
Em 1984 - e lá se vão trinta e cinco anos, quando, para mim, o que vou narrar, parece que foi ontem - a CIC (Cinema International Corporation) - que depois se transformou na UIP (United International Pictures), lançou um pacote contendo cinco filmes de Hitchcock que há vinte anos se encontravam proibidos de exibição por exigência do mestre - não se sabe lá bem o motivo.

O fato é que Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai (considerado pela Cahiers du Cinema um dos mais belos filmes de todos os tempos), O Terceiro Tiro, O Homem que Sabia Demais e Festim Diabólico, obras imprescindíveis de Hitch, relançadas em cópias novas, duas décadas depois, estavam livres, afinal, para serem reavaliadas e vistas pela primeira vez por toda uma geração de cinéfilos.

Para prestigiar o lançamento do pacote, James Stewart esteve no Rio de Janeiro reunido com jornalistas das principais capitais do Brasil. O gerente regional da CIC, em Salvador, resolveu me convidar como o crítico representante da Bahia - tinha, para quem não sabe, uma coluna diária e enorme na Tribuna da Bahia.

Fiquei entusiasmadíssimo, alvoroçado, pela oportunidade que teria de passar, um dia inteiro, com um veterano e mitológico intérprete, uma legenda do cinema americano. A empresa me reservou uma passagem de ida e volta - SSA-Rio-SSA, hotel de cinco estrelas - o mesmo onde ficaria hospedado o homem que matou o facínora, e a promessa de reembolso imediato nos gastos de locomoção e alimentação.

Lembro-me bem do dia: 21 de outubro de 1984. Estava chovendo. Vento leste. Medo de voar naquelas condições que se foi vencendo com várias tulipas de chope no barzinho do aeroporto. Para um amante do cinema, um presente de Zeus. Apertando o cinto, feita a aterrissagem, cheguei ao Galeão, descortinando, antes de pousar, a bela paisagem da Cidade Maravilhosa.

O Rio de Janeiro é de uma beleza indescritível. Mas a chuva continuava. Pensava em James Stewart, relembrava seus filmes enquanto sorvia mais algumas tulipas desta vez no bar do aeroporto do Rio. Telefonei para a CIC e me mandaram pegar um táxi, pois a reserva já se encontrava feita. Num hotel luxuoso em Copacabana - diria mesmo: seis estrelas. Quem sou eu, pobre comentarista de cinema, para gozar de tais mordomias! Gozei-as, entretanto. E como!

Cheguei num domingo. Dia livre, segundo a assessora de imprensa da CIC. Aproveitei para ver, no cinema Veneza, Janela Indiscreta (Rear Window). A sala estava lotada e, antes de entrar, fiquei observando as pessoas que saiam circunspectas, caladas ou comentando. Via pelas suas fisionomias que tinham acabado de assistir a um grande filme.

Já na sala escura, as imagens de Janela Indiscreta me provocaram forte emoção - já o tinha visto nos anos 60 antes de sua retirada de circulação. Apesar de uma matinée num domingo, havia silêncio na sala, respeito pelo que se estava a ver. Há vinte e cinco anos passados. A patuléia, porque ainda não nascida, ainda não comandava o espetáculo!

Saindo do cinema, fui andando até o hotel no posto seis de Copacabana. Uma caminhada e tanto. Ia pensando no encontro da segunda, o Dia D, cujas atividades se estenderiam pelo dia todo: de manhã, de tarde e de noite. Atravessei o comprido túnel, e, adentrando a Av. Atlântida, a pé, andei pelas suas calçadas cheias de bares com aquele chopinho único e especial que só se encontra no Rio de Janeiro (na Bahia não há chopp que preste, porque, na maioria das vezes, as pessoas não possuem o savoir-faire para tirá-lo). Há uma cultura do chopp entre os cariocas inexistente, por exemplo, em Salvador. Difícil - ou impossível - se encontrar, aqui, um chopp que possa ser bebido com tanto prazer como em relação ao carioca.

Assim, não resisti, cervejeiro que sou - e que, naquele tempo, jovem e disposto, era mais ainda, e sentei-me, lembro-me bem, no Cabral 1500. Impossível se ficar em apenas um chopinho. Este desce com uma leveza impressionante e, por isso, as tulipas se multiplicaram. Quando me levantei, a noite, ainda uma criança, dava sinais de que precisava parar e ir para o hotel descansar para o grande dia.

Acordei com o dia e por causa de um telefonema da assessora, Hannah de não-sei-o quê. Ela me disse que ficasse esperando uma caminhonete no saguão do hotel. Para ir ao centro da cidade à cabine da Paramount. Quando desci, encontrei um monte de gente também esperando: os críticos de outros estados que, a julgar pelos seus gestos e palavras, estavam eufóricos. Um, de Manaus, estava com vários colares e cocares indígenas para presentear James Stewart.

Chegando à cabine, uma sala de projeção com poltronas de veludo, James Stewart estava lá ao lado da assessora de imprensa que nos apresentou, um a um, explicando a ele o que as pessoas faziam e de onde vinham. Entramos na cabine onde ia ser exibido Um Corpo que Cai (Vertigo). O filme se iniciou com a fabulosa perseguição pelos telhados e, em seguida, a apresentação dos créditos feita por Saul Bass, uma novidade.
De repente, minha atenção se perturbou, pois James Stewart se sentou, por acaso, a meu lado. Enquanto o via na tela, sentia a sua presença. Não assistiu ao filme até o fim, retirando-se no primeiro terço e, na hora de sair, bateu em meu ombro e disse: "I see you later" ("Eu vejo você mais tarde").

Referia-se à grande entrevista coletiva que ia acontecer no salão do hotel no horário vespertino. A tarde chegou cedo, e o meu tempo, o psicológico, por fugaz, fez com que, mal terminada a projeção, já estivesse a postos no grande salão onde se realizaria a entrevista. Os lugares, todos marcados com os nomes dos jornalistas e, em cada cadeira, uma pasta contendo dados sobre os filmes e sobre Stewart, além de muitas fotografias.

Lembro-me de Ruy Castro, que, naquele tempo, era free lance da Folha de S. Paulo. Cada jornalista tinha de esperar a sua vez. Quando chegou a minha, perguntei a Stewart qual o seu filme preferido de Hitch. Olhando-me com aqueles dois olhos azuis resplandecentes, respondeu-me que Janela Indiscreta, fazendo longas considerações pelo motivo de sua preferência.

À noite, um jantar no hotel. Conversei um pouco com Stewart, que, nessa ocasião, me apresentou à sua esposa, Gloria, de longa data. Fiquei de olho em Stewart e nas bandejas circulantes dos garçons, que continham um delicioso scotch. Depois da quarta dose, aproximei-me dele, que estava em pé, disponível, ao lado da intérprete.

Foi então que conversamos mais. Ele me falou de sua infância difícil, da conquista, nos anos 40 (por A Mulher Faz o Homem/Mr.Smith goes to Washington, 1939, de Frank Capra) do Oscar de melhor ator, que o enviou ao pai, dono de uma loja comercial, que colocou a estatueta na vitrine. Falou-me de Hitch, de Capra, de John Ford (tinha medo de trabalhar com Ford e só entrou no cast de O Homem que Matou o Facínora por insistência de John Wayne, mas Ford gostou dele, e o convidou para mais filmes).

Dentro do avião de volta, peguei a Folha de S.Paulo para ler. Fui direto à Ilustrada, que estampava: "O melhor filme de Hitch para Jimmy é Janela Indiscreta". Minha pergunta fora roubada, pensei com meus aflitos botões. Mas já era tarde demais.

Naquela época não havia internet e a matéria que fiz para o jornal, que tomou toda a capa do segundo caderno, foi batida à máquina, quando já de volta ao lar.
A foto mostra James Stewart ao lado de Grace Kelly, ambos envelhecidos.

6 comentários:

Romero Azevêdo disse...

Não seja tão implacável com o tempo, passaram-se "apenas" 25 anos da visita de Jimmy para os dias de hoje.

Marcelo Miranda disse...

Setaro, viajei junto com suas palavras e lembranças. Imagino que esse "I see you later" ainda reverbere na sua cabeça. Momentos mágicos, viu... Parabéns pelo belo texto!

Jonga Olivieri disse...

Essa emoção do encontro com Jimmy você até já havia contado em outras postagens neste blogue. Mas a emoção do chope carioca e de toda uma “aventura” para um garoto em estar lado a lado com a figura simpática de Jimmy, este ator que tanto nos encheu de sonhos a inf^ncia/juventude.
Não me recordava que estes filmes do Hitch haviam sido proibidos durante a famigerada ditadura dos “generais-presidentes de plantão”.
Que coisa! Em que ponto os piores e mais corruptos governantes que tivemos ao longo de nossa história (não que os atuais não o sejam) descobriram atitudes “subversivas” em um diretor que pouco falou de pol´tica. E quando falou, foi do lado estadunidense, como em “Intriga Internacional”.
No entanto, fiquei a pensar e conclui que “Janela Indiscreta” tem tudo a ver com a invasão que eles mesmo faziam nas vidas alheias com fotos e escutas telefônicas. Que “Um Corpo que Cai” são os estudantes de esquerda que jogaram de aviões (sem para-quedas) em cima do Atlãnico.
De toda forma, um brinde ao seu encontro com um dos grandes ícones do cinema. Nada mais, nada menos do que o mito James Stewart.

André Setaro disse...

Jonga,
Esqueci de esclarecer no texto. A proibição de circulação dos cinco filmes foi feita pelo próprio Alfred Hitchcock - não se sabe lá por que. Após a sua morte, em maio de 1980, sua filha, Pat Hitchcock, resolveu relançá-los em parceria com James Stewart (que também foi produtor associado e tinha interesse). Daí a sua viagem ao Rio de Janeiro. Os filmes ficaram proibidos durante 20 anos e ausentes da visão de toda uma geração.

Jonga Olivieri disse...

Esclarecedor o seu comentário, porque desconhecia este fato e não estava a entender porque a ditadura haveria de proibir filmes como aqueles.
Embora tenham proibido tantas coisas sem sentido nenhum.
Um exemplo? Nos dias que se seguiram ao golpe, queimaram um livro chamado "Do cubismo ao surrelismo", obviamente porque acharam que cubismo tinha a ver com Cuba.
Importante: não é uma piada. Aconteceu... Acredite, se quiser!

Tucha disse...

Gostei demais de lhe descobrir aqui na blogfera, vou lhe seguir para acompanhar suas mémorias de cinéfilo e de jornalista. Acompanhei durante muito tempo a sua coluna na Tribuna, eram os únicos comentários inteligentes nas imprensa baiana. Quando vai acontecer um novo curso de iniciação ao cinema?