Quando do lançamento de Alô Dolly! (Hello Dolly!, 1969), de Gene Kelly, a crítica foi amplamente desfavorável, considerando-o um musical à antiga, trama frouxa e boba, e filme dotado de espetaculosidade exagerada. Revisto agora no Telecine Cult (que conservou o cinemascope original - aliás foi filmado em 70mm, mas na versão exibida o formato da tela está em toda a sua integridade espacial), não receio dizer que Hello Dolly!, que o achei na tela doméstica sem querer, ainda no princípio, deixou-me preso ao sofá sem poder deixar de contemplá-lo até o fim. O filme levou a Fox à falência, porque seus executivos não perceberam que se estava em fins dos agitados anos 60 e o mundo estava mudado. Ano antes, 1968, houve a explosão do festival de Woodstock, Hair despontava nos teatros, e o romantismo clássico estava no rés-do-chão com a emergência do sexo libertário. Não havia mais lugar para a casamenteira Dolly Levin e suas peripécias para fazer casar os habitantes de Yonkers.
O filmusical, que atingiu seu ápice entre 1942, quando da vinda de Nova York para Hollywood de Vincente Minnelli, que introduziu a musica e a dança como molas propulsoras da trama (não mais o enredo como pretexto para a explosão dos números musicais como acontecia antes de Minnelli), entrou em decadência a partir de 1958 (e muitos exegetas consideram Gigi, de Minnelli, o último musical clássico), ainda que nos anos 60 o gênero tivesse sofrido uma certa transformação em função de obras superproduzidas não mais com a simplicidade de outrora, a exemplo de Amor, sublime amor (West Side Story, 1961), A noviça rebelde (1965), ambos de Robert Wise, A moedinha da sorte, de George Sidney, Funny Girl (1968), de William Wyler, Positivamente Millie, de George Roy Hill, e Mary Poppins, de Robert Setevens, ambos estrelados por Julie Andrews, e o magnífico My Fair Lady, de George Cukor, com Rex Harrison e Audrey Hepburn, entre outros, como A estrela, de Wise, com Andrews. Tenho particular admiração por Positivamente Millie, que o acho extraordinário.
Ao contrário dos filmes da fase de ouro do gênero musical, principalmente os produzidos pelo gênio de Arthur Freed, há uma grandiloquência em Hello Dolly! que não se encontrava nos antigos. O filme, se, por um lado, tem o esplendor da magnífica tela em 70mm, e Kelly, o diretor, sabe usar o espaço cinematográfico com rara sensibilidade, caracteriza-se por uma enxurrada de belíssimos números musicais, quer seja pela música inebriante, quer seja pelas danças acrobáticas (e, nesse particular, a executada pelos garçons no restaurante Harmonia Garden, sobre ser um prenúncio para a entrada triunfal de Dolly, é de uma perfeição admirável). Mas diante de tanta beleza, desse hino pela alegria de viver, por que a exigência de um tema nobre? É bem característica da crítica de antanho esta procura quase desesperada pela nobreza temática para justificar o valor cinematográfico de um filme. Escapista? Sim, e daí? O fato é que Hello Dolly! é um espetáculo que surpreende pela beleza de sua encenação. E há, ainda, no auge de sua carreira depois do Oscar de Funny Girl, o talento de Barbra Streisand, que dá um show particular, principalmente quando canta a música que dá nome ao filme em seu dueto com Louis Armstrong.
A impressão que se tem é a de que a trama funciona apenas como pretexto para a explosão dos números musicais e, principalmente, para a apoteose da chega de Dolly Levin ao Harmonia Garden. Se é verdade que há esta intenção de preparação, a excelência dos números precedentes, porque extraordinários, não interfere no espetáculo, e um nome deve, aqui, ser ressaltado: o de Michael Kidd, um cenógrafo brilhante, um artista que somente podia nascer na idade de ouro dos filmusicais.
A ação se passa em Nova York em 1890. Uma viúva jovem (Barbra Streisand) é especialista em arranjar casamentos ricos. Seu objetivo se concentra em fazer com o sua chapeleira Irene (Marianne McAndrew) seja cortejada pelo milionário Horace Vandergeider (interpretação estupenda de Walter Matthau), que mora em Yonkers, que pede a Dolly que leve sua sobrinha Ermengarde (Jaoyce Ames) a Nova York a fim de livrá-la de um namorado impertinente, Ambrose (Tommy Tuna). Dolly, porém, que gosta dos dois, leva-os juntos. No trem (e o número da roupa de domingo é espetacular!, inspirado, talvez, naquele de Judy Garland em Agora seremos felizes/Meet me in St'Louis, 1944, de Minnelli), seguem também dois rapazes que trabalham para Horace, Cornelius (o talentosíssimo Michael Crawford) e Barnaby (Danny Lockin). Em Nova York, Irene e sua assistente Minnie (E. J. Peaker) começam a flertar com Cornelius e Barnaby, a ignorar quem são na realidade. Cornelius se apaixona por Irene, Barnaby por Minnie e Dolly, após muitas peripécias, consegue o que queria: casar-se com Horace.
A história de Hello Dolly! começou com um peça inglesa, A day well spent, de John Oxenford, encenada em Londres em1835. Em 1842, o teatrólogo austríaco Johann Nestrov fez uma versão vienense intitulada Einen jus will er sich machen. Em 1938, Thorton Wilder adaptou a idéia com o título de The merchant of Yonkers, peça dirigida por Max Reinhardt (o célebre diretor de teatro do expressionismo alemão). O próprio Wilder reescreveu a peça, que, com o título de The matchmaker, fez sucesso no Festival de Edimburgo e em Londres em 1954, com Ruth Gordon. Em 1958, a Paramount filmou a peça de Wilder: Mercadora da felicidade (The matchmaker), com Shirley Booth, Shirley MacLaine e Paul Ford, Anthony Perkins, sob a direção de Joseph Anthony. Sua versão musical, no entanto, demorou para chegar. Em 1964, ela foi lançada na Broadway, com Carol Channing, entre outros. Esta versão cinematográfica é o segundo filme de Barbra Streisand (o primeiro o já citado Funny Girl) e o nono na carreira do grande Gene Kelly - que é responsável pela co-direção daquele que é considerado o melhor musical de todos os tempos: Cantando na chuva (Singi'in in the rain, 1952), de Kelly e Stanley Donen. Vi, há quarenta anos (estou cada vez mais jovem), numa superprodução de Oscar Ornstein, a versão brasileira de Alô Dolly! com Bibi Ferreira no papel principal.
A música é de Jerry Herman, coreografia do genial Michael Kidd e a luz poderosa de Harry Stradling (De Luxe/Todd-Ao/70mm/Color).
3 comentários:
A música título é até hoje lembrada. É marcante. A presença de Barbra Streisand, idem.
É um filme que marcou um tempo. E Gene Kelly... Bom, este, principalmente pela sua co-participação em "Cantando na chuva" torna-se inesquecível como realizador.
Setaro, você só esqueceu o número de abertura que é genial. Quanto a enquete sobre Allen voto em "A rosa púrpura do Cairo"
Vimos o filme na época e adorámos e quando anos depois o revimos, como cinéfilos, a opinião manteve-se.
Abraço cinéfilo
Paula e Rui Lima
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