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23 dezembro 2009
O blog entra em merecidas férias
20 dezembro 2009
A Tortura do Medo
A tortura do medo (Peeping tom, 1960), de Michael Powell, quando lançado na Inglaterra, apesar de assinado por um cineasta famoso, recebeu as mais severas críticas e o público, incomodado, se retirou das salas, a ponto de comprometer a carreira de seu diretor, que ficaria anos sem poder exercer a sua profissão pela recusa sistemática dos produtores. Na verdade, esta obra-prima, que trata do voyeurismo, incomodou os britânicos pela sua franqueza de exposição e pela habilidade de colocar o espectador na mesma posição de voyeur de seu personagem principal, um assassino que se compraz em matar mulheres para ver, nelas, o medo estampado no rosto enquanto estão a morrer e sendo filmadas pela sua câmara portátil. O espectador gosta de ser cúmplice de determinadas situações, quando, por exemplo, o personagem não tem ciência do perigo que corre, mas já sabido pelo público que é, pelo cineasta, "avisado" com antecedência. Em Um corpo que cai (Vertigo), obra-prima do cinema e de Hitchcock, a platéia já sabe que Judy é Madeleine, mas o apaixonado James Stewart continua ignaro da situação.
Desprezado pela crítica e pelo público, Peeping Tom precisou esperar mais de uma década até que foi redivivo nos anos 70 e considerado, por realizadores e críticos como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich, Claude Beylie, entre tantos, uma obra-prima. Scorsese, inclusive, chegou a comprar o negativo em 35mm para restaurar o filme em suas cores magníficas. Com o advento do DVD, a Criterion (distribuidora que somente lança obras luminosas e bem definidas) distribuiu Peeping Tom no mercado americano. A Silver Screen, embora não mantendo a qualidade das cópias da Criterion, lançou, há dois anos, o filme no Brasil. É um acontecimento importante para o cinema e para quem gosta de cinema já que o circuito comercial, honradas as exceções de sempre, impõe ao mercado o lixo cultural oriundo da indústria americana.
Mark Lewis (interpretado por Karl-Heinz Boehm, conhecido como o imperador, marido de Romy Schneider, na série Sissi) é um jovem cameraman que vive, para cima e para baixo, com sua câmera portátil 16mm debaixo do braço. Tem prazer em filmar, com ela, as prostitutas que o abordam na rua e matá-las com um estilete dissimulado no pé da máquina. Para aumentar seu prazer, ele mostra a suas vítimas, no momento crucial, um espelho parabólico que reflete a imagem de seu pavor na hora exata de morrer. Ele faz confidências à vizinha (interpretada por Anna Massey, que, mais de dez anos depois, em 1972, Hitchcock, quando filmou em Londres seu extraordinário Frenesi/Frenzy, a convidou para o papel da namorada de Jon Finch, vítima de estrangulamento pelo serial Barry Foster – e não a dúvida que o mestre se influenciou muito no filme de Powell em Frenzy) e exibe, no seu quarto, através de um projetor 16mm, para ela, os filmes amadores feitos pelo seu pai, um psiquiatra que utilizava o filho como cobaia para estudar a reação das pessoas diante do medo. Interessante observar que o pai (visto nos filmes projetados em preto e branco) é interpretado pelo próprio Michael Powell. Renomado psiquiatra tem como objetivo a investigação do pavor no ser humano. O filho passa a infância sendo filmado a toda hora e a qualquer momento. O que lhe provoca nada menos que um imenso trauma. Seu gosto perverso pelo voyeurismo vem daí.
A polícia, no entanto, consegue pistas de sua localização. Acossado, Mark decide se suicidar e filma a si próprio com sua câmera portátil, a registrar a própria morte em película e, no derradeiro momento da agonia, vê o rosto no espelho. Há, entre outros, dois momentos antológicos: aquele no qual a atriz Moira Shearer (Viv) dança para Mark antes de ser morta e a última sequência no quarto deste, quando decide filmar a própria morte. Michael Powell usa as cores com bastante funcionalidade graças ao talento de seu diretor de fotografia Otto Heller.
Powell, cineasta essencialmente inglês, foi produtor dos primeiros filmes de Hitchcock e, antes de Peeping Tom, era muito considerado por causa de filmes como Neste mundo e no outro(A Matter of Life and Death, 1946), Coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp” 1943), com Deborah Keer, Narciso negro (Black Narcissus, 1947), também com Deborah Keer e Jean Simmons, e, principalmente pelo fascinante Sapatinhos vermelhos (The Red Shoes, 1948), que tem no seu elenco a mesma Moira Shearer de Peeping Tom. Fala-se que este filme revolucionou o balé. Todos os citados, menos Peeping Tom, foram dirigidos em parceria com Emeric Pressburger.
Filme fantástico do segundo ou mesmo do terceiro grau, sentenciou o crítico francês Claude Beylie a respeito de Peeping Tom, esta obra surpreendente apresenta o caso de um Jack, o Estripador, moderno, que teria visto muito Um cão andaluz, de Buñuel, e Janela indiscreta.
Beylie, aliás, se impressionou tanto com A tortura do medo que o colocou entre os melhores filmes de todos os tempos em seu imprescindível livro As obras-primas do cinema (editado aqui no Brasil pela Martins Fontes, mas esgotadíssimo). Segundo o ensaísta, "Este filme que seríamos tentados a atribuir a algum epígono de Buñuel ou Hitchcock, é obra de um respeitável cidadão britânico, Michael Powell (nascido em 1905), que, até então, dedicara-se a trabalhos prestigiosos (mas já marcados por um sólido humor) como Coronel Blimp ou ‘Neste mundo e no outro’. Retrospectivas recentes permitiram aquilatar a dimensão de um talento que não é indigno dos mestres americanos do cinema de aventuras ou do musical”.
Ainda Beylie: “A escolha de uma história – bastante sórdida – que evoca os romances de crime de Edgar Wallace, e apimentada com private jokes, pode surpreender. De fato, não só tudo neste filme gira em torno da escoptofilia, concebida como uma variante inquietante da cinefilia, mas o diretor multiplica-as ‘as piscadas de olhos’: ele próprio faz o papel de um pai indignado que filma os medos de um garoto (seu próprio filho), enquanto o deux ex machina cabe a uma senhora alcoólatra e cega! Para coroar tudo, Powell afirma tranqüilamente que não há nada de malsão nisso, que se trata, ao contrário, de um filme ‘terníssimo, delicadíssimo, quase romântico’. Em todo caso, a obra impressionou várias gerações de espectadores – e de cineastas como Martin Scorsese e Brian De Palma”.
16 dezembro 2009
"O Superoutro", em festa, completa 20 anos
15 dezembro 2009
"Tocaia no asfalto" é restaurado
Com seu negativo em processo de deterioração, Tocaia no asfalto foi inteiramente restaurado e vai ser exibido, nesta cópia luminosa e novíssima, quarta, 16 de dezembro, na Sala Walter da Silveira, que fica à rua General Labatut, nos Barris, às 19 horas. Quem mora em Salvador, uma oportunidade e tanto para ver ou rever este filme, que considero o melhor já feito dentro do itinerário de longas do cinema baiano.O talento de Roberto Pires é inegável e pode ser considerado um dos melhores artesãos do cinema brasileiro. Pires foi o responsável pelo primeiro longa metragem feito na Bahia: Redenção, em 1959, que se encontra sendo devidamente restaurado. Pires também realizou, no apogeu do Ciclo Baiano de Cinema, A grande feira (1961). Depois, retirou-se para o Rio de Janeiro para continuar a sua carreira (Máscara da traição, Crime no Sacopã etc).
Clique na imagem para vê-la maior.
13 dezembro 2009
Saudade do velho Cine-Theatro Guarany
Com a decadência galopante do centro histórico da cidade, e a abertura das avenidas de vale e, principalmente, a construção dos shoppings centers, os cinemas do centro entram em decadência. A CIC não se interessa em renovar o contrato. Existe, nesta época, 1980, toda poderosa, a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A), que, com sucursal bem montada em Salvador, assina contrato com o Estado para entrar no mercado exibidor. Iniciativa pioneira em todo o Brasil, porque a Embrafilme se restringe à produção e distribuição de filmes brasileiros. Neste período, em 1982, uma Jornada foi toda concentrada nesse cinema, com grande êxito, aliás. O Guarany passa a ser administrado por esta empresa e vem daí, talvez, sua decadência. Luis Carlos Barreto praticamente mandava na programação do cinema, determinando que filmes produzidos por sua empresa ficassem semanas e semanas em cartaz, mesmo que vistos por moscas. O Guarany de meus tempos tem perdida, paulatinamente, a sua aura.
12 dezembro 2009
Tuna registra Marighella em imagens
10 dezembro 2009
Truffaut: cineasta terno e afetuoso
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, cuja tradução literal é Os Quatrocentos Golpes), além de inaugurar a Nouvelle Vague – juntamente com Acossado, de Godard, Hiroshima, de Resnais... -, dá início à carreira de Truffaut como realizador de longas. E, neste 2009, a distância deste filme é de exatos 50 anos. Aqui também começa o ciclo dedicado a Antoine Doinel (sempre interpretado por Jean Pierre Léaud), um personagem com evidentes elementos autobiográficos, através do qual aborda o rito de passagem da infância à idade adulta. É a nostalgia da adolescência que Truffaut reflete nos filmes do ciclo Doinel, a fugacidade do tempo e a ânsia de amar, a chegada a idade adulta, o casamento... (Antoine et Colette, 1982, episódio de O Amor aos Vinte Anos/L’Amour a vints ans; Beijos Proibidos/Baisers Volés, 1968, Domicílio Conjugal/Domicile Conjugal, 1970, e; Amor em Fuga/L’Amour en Fuite, 1978).
(Em Os Incompreendidos, Truffaut, avant la lettre, considerando a época, alude à Nouvelle Vague e a seu amigo e colega Jacques Rivette, quando os pais de Antoine – que, por sinal, nos outros filmes do ciclo estão sempre ‘indo ao cinema’ – decidem ir ver Paris Nous Appartient, de Rivette, filme emblemático, apesar de pouco conhecido do movimento francês, e, de volta, no automóvel, consideram-no ‘muito bom’ – melhor homenagem impossível).
Romântico, sem, contudo, abandonar a visão irônica e dolorosa das relações afetivas, Truffaut tem a sua obra-prima já na terceira incursão longametragista: Uma Mulher para Dois/ Jules et Jim (1961), crônica de uma relação triangular (Oskar Werner, Jeanne Moreau...) baseada no texto literário de Henri Pierre Roché, autor que lhe serviria de inspiração para realizar, dez anos depois, abordando a mesma temática da dificuldade de amar, As Duas Inglesas e o Continente/ Les Deux Anglaises et le Continent (1971). O problema da comunicação no amor, aliás, do amor impossível, en fuite, é uma constante na filmografia de Truffaut, como revelam A História de Adele H/ L’Histoire de Adele H (1976), com Isabelle Adjani, A Mulher do Lado/ La Femme de la Cote (1981), entre outros.
Se seus colegas da Nouvelle Vague procuram elaborar uma linguagem que desconstrói o discurso cinematográfico tradicional, revertendo os cânones da lei de progressão dramática griffithiana, François Truffaut não pretende nunca em seus filmes dissolver a estrutura lingüística, mas, ao contrário, busca desesperadamente a fluência narrativa, o toque mágico capaz de envolver o espectador a fazê-lo pensar que não está no mundo’. É verdade que brinca com a metalinguagem, mas num sentido de reverência e ao cinema como em A Noite Americana/ La Nuit Americaine (1973), belíssima homenagem ao processo de criação cinematográfica onde Truffaut comparece como ele mesmo no papel de um diretor que faz um filme. O filme dentro do filme, portanto.
Outra vertente temática na obra truffautiana é a dominante policial, influência, na certa, de sua admiração por Alfred Hitchcock – seu livro de entrevista com este, Hitchcock/Truffaut, da Brasiliense (e, agora, em outra edição pela Cosac ou Companhia das Letras), é, simplesmente, uma aula magna de cinema. Há Hitchcock em Fareinheit 451 (1966), que faz na Inglaterra, com o mesmo Oskar Werner de Jules et Jim, baseado na ficção-científica de Ray Bradbury. Outra obra alusiva ao mestre é A Noiva Estava de Preto/ La Mariée Était em Noir (1967), com Jeanne Moreau ou, mesmo, Tirez sur le Pianiste, segundo filme (1960), e A Sereia do Mississipi/ La Sirene du Mississipi (1969), no qual declara, através das imagens em movimento, a sua paixão momentânea, Catherine Deneuve, que trabalha, aqui, ao lado de Jean Paul Belmondo. E no seu canto de cisne De Repente num Domingo/ Vivement Dimanche (1984), cujo ‘claro/escuro’, proposital, vem em auxílio de uma proposta estilística em função do film noir francês. Sem esquecer o elaborado, como mise-en-scène, Um só pecado (Le peau douce, 1963).Que, revisto agora, considero um dos melhores filmes do cineasta.
Autor, porque dono de um estilo próprio, marcante, ainda que com um universo temático diversificado, François Truffaut, na sua filmografia, envereda por assuntos diversos, a exemplo de O Garoto Selvagem/ L’Enfant Sauvage (1970), filme sobre a luta de um médico, no século XIX, para ‘domar’, um menino bárbaro criado sem contato com a civilização – influência possível para Werner Herzog em O Enigma de Kaspar Hauser. Na Idade da Inocência/ L’Argent de Poche (1976), experiência na qual, repetindo Jean Vigo (Zero de Conduite), o universo que retrata é constituído somente de crianças. Sem esquecer O Último Metrô/ Le Dernier Metro (1980), uma volta ao passado, Segunda Guerra Mundial na França ocupada, para valorizar, numa situação-limite, a importância dos pequenos gestos.
Em todos os filmes de François Truffaut, um denominador comum: a narrativa que sobrepuja a fábula, a doce fabulação que advém de um sentido preciso de mise-en-scène, o touch truffautiano, sempre terno, apaixonado, capaz de levar ao espectador o prazer do autor com o que está a filmar e o prazer, imenso, de se assistir ao que se está a ver.
06 dezembro 2009
Notas ligeiras sobre o teatro baiano
2) Há, em cartaz na cidade, uma outra montagem que pretendo ver. Trata-se de uma peça em homenagem ao veterano ator baiano Harildo Deda dirigida por Luiz Marfuz e que se encontra no Teatro Vila Velha.
3) Sempre gostei muito de teatro. Vi quase todas as montagens baianas dos anos 60 e 70, mas, de repente, parei de ir aos palcos da soterópolis. Certas peças de teatro de laboratório, com os atores sujos e de malhas pretas a pular como macacos no proscênio, me incomodaram a paciência e me provocaram a aporrinhação. E depois veio o besteirol. Nada contra o besteirol, se bem feito, se articulado com engenho e arte e que seja capaz de fazer rir. Sinto, no entanto, falta de montagens de textos antológicos como se fazia antigamente. Quase que não se monta mais Ibsen, Strindberg, Camus, Tenneesee Williams, Ionesco, Tchecov, Bertold Brecht, Molière, William Shakespeare, entre tantos.
4) Assim de memória, tenho, dentro de seus arcanos, as lembranças inesquecíveis de O macado da vizinha, de Jorge Salomão, creio que vista em 1966 na Escola de Teatro, Stop, Stop, de João Augusto, Teatro de Cordel, de vários diretores (entre eles, João Augusto, Péricles, Orlando Senna), Esta noite improvisamos, de Alberto D'Aversa, Santo sepulcro para casal, também deste último, A escolha, de Orlando Senna, segundo texto de Ariosvaldo Mattos, Eles não usam black-tie, de João Augusto, O noviço, baseado em Martins Penna, cujo diretor, agora, esqueço, mas montada pelo grupo do Teatro dos Novos, Uma obra de governo, de Álvaro Guimarães, entre muitas outras. Nos anos 70, Marilyn Miranda, A casa de Bernarda Alba, dirigidas por José Possi, quando foi diretor da Escola de Teatro. E Calígula, de Camus, montada no interior devastado do Teatro Castro Alves, que se incendiou em 1958 e somente teve restauradas as suas instalações na primeira reabertura de 1967, quando vi, no seu imenso palco, O burguês fidalgo, de Molière, com Paulo Autran, O avarento, também de Molière, com Procópio Ferreira, A úlcera de ouro, deliciosa comédia musical com Marília Pêra, O Gonzaga, de Orlando Senna, entre muitas outras que o cansaço e a memória fraca deixam de registrar.
A foto é de Paulo Autran na pele de Tartufo, de Molière.
03 dezembro 2009
Bons tempos aqueles do CinemaScope
Se, com a entrada deste formato todos os cinemas tiveram que se adaptar a ele, com as lentes anamórficas e mudança de telas, os exibidores, no entanto, não modificaram as janelas dos projetores adequados para o Vistavision. Resultado: todos os filmes da Paramount (incluindo a maioria dos de Hitchcock) foram exibidos no Brasil cortados pelos lados. Somente agora, com as cópías em DVD é que, pela primeira vez, os brasileiros estão a ver os filmes em Vistavision na sua integridade.
Infelizmente, a maioria das pessoas tá pouco se lixando para o formato dos filmes. O que interessa é a história, a trama, a intriga. Fiquei estarrecido quando ouvi de um jovem que prefere ver os filmes dublados porque tem preguiça de ler as legendas. A incultura cinematográfica cresce a passos largos. O cinéfilo do pretérito virou um simples consumidor de filmes e, como já disse aqui, o ir ao cinema atualmente é diferente do ir ao cinema no passado. O ir ao cinema hoje é uma das fases do processo do 'shoppear'. Não se vai mais ao cinema, mas se vai ao shopping e, estando nele, ao cinema. Os consumidores, débeis mentais, não possuem, portanto, um propósito estabelecido a priori de ir ao cinema ver determinado filme. Entra-se numa sala 'multiplexada' por causa de um cartaz, de um rosto bonito, de determinado ator ou atriz ou pela sugestão da ação, violência e sexo. Lembro-me que, em priscas eras, comprava o jornal para saber das estréias, estabelecendo, por exemplo, "amanhã, sem falta, vou ver Matar ou morrer logo na primeira sessão, às 14 horas, no cinema Guarany".
Era uma outra cultura, uma outra época. O cinema como casa de espetáculos já morreu e está devidamente morto e enterrado.
02 dezembro 2009
"Joanna D'Arc" promove o teatro baiano
A concepção cênica tem eficiência dramática, com acentuado sentido da utilização funcional do tempo e do espaço teatrais. Poder-se-ia dizer, até, que Joanna D'Arc é uma peça em movimento, por causa do sentido dramático em que se propõe a construção do espaço, com os cenários que se armam ou se desarmam em função do estabelecimento da agilidade da mise-en-scène. Os intérpretes, quando não estão "em cena", permanecem sentados, e calados, nas laterais do proscênio. Há, nisso, uma proposta de desmistificação do teatro realista para assumir a sua condição de ação dramática especificamente teatral.
Se o uso do espaço é funcional, o do tempo também o é. Joanna D'Arc é apresentada, no início, presa e prestes a ser julgada e, por meio de flash-backs, por assim dizer em linguagem cinematográfica, retorna-se aos momentos nos quais ela luta pela França, com a sua perseverança e ânimo guerreiro. Assim, o espetáculo entrelaça momentos presentes com momentos pretéritos. O fato em si, desse procedimento, que já é lugar comum no teatro, não daria a Joanna D'Arc um maior valor na articulação de sua temporalidade, não fossem a "construção" do tempo por meio do décor e da luz, além dos movimentos dos atores em cena. E entra, de repente, a "desconstruir" esta aparente dualidade temporal (passado/presente) um "hiato", quando a personagem confessa as suas hesitações ao público diretamente. Há, neste procedimento, um acento brechtiano, de distanciamento dramático. A atriz procura a catarse da dor, mas, ao mesmo tempo, "sai" da construção heterodoxa da personagem para uma abrangência maior no seu diálogo com o público.
Assim como no cinema, quando o valor cinematográfico de um filme se expressa pela "maneira" através da qual o realizador articula os elementos da linguagem fílmica, no teatro o texto, a rigor, é um conduto para o estabelecimento de uma mise-en-scène. O valor teatral a ser aferido por uma obra posta em cena pode ser encontrado na articulação dos elementos feita pelo diretor: a cenografia, a indumentária, a luz (fundamental), e, principalmente, pelo poder de convencimento dos atores. Mais do que no cinema, o ator surge como conditio sine qua non para o êxito de um espetáculo teatral. Sem bons intérpretes que consigam convencer, envolver, os espectadores, toda peça se vê condenada ao fracasso.
Joanna D'Arc, neste particular, tem atributos inegáveis capazes de situá-la como um espetáculo profissional, inventivo, que encanta pela conjunção dos elementos específicos da linguagem teatral: o "tratamento" criativo do texto por meio da utilização funcional do décor, do tempo, do espaço, como já dito, e um elenco homogêneo, onde se destaca, no papel-título, a presença de Jussilene Santana (que, além, de excelente atriz é, também, escritora, autora de Impressões modernas, livro desmistificador sobre os tempos de Martim Gonçalves na Bahia).
Por que tanto fascínio por Joanna D’Arc? Carl Theodor Dreyer, cineasta dinamarquês, filmou, em 1928, a obra definitiva sobre esta personalidade histórica em La passion de Jeanne D’Arc, que tem, no papel, uma atriz inexcedível, que sofreu, durante as filmagens, um martírio quase semelhante ao de sua personagem: Renée Falconetti, que, finda a produção, amargurada, depressiva, internou-se num sanatório para curar os traumas impostos pelo perfeccionista diretor na construção do personagem. Walter da Silveira, ensaísta baiano de cinema, numa lista de seus melhores, publicada na extinta revista “Filme/Cultura”, colocou La passion de Jeanne D’Arc no topo de sua lista, como o melhor filme de todos os tempos. Robert Bresson, o mais ascético dos realizadores, inspirou-se nela para seu O processo de Joanna D’Arc, datado de 1961. Há uma Joanna contemporânea, que não vi, dirigida pelo francês Luc Bresson.
Joanna D'arc surge na história da França durante a Guerra dos 100 Anos (1337-1453) entre franceses e ingleses. Há, segundo os historiadores, dois motivos fundamentais para a guerra: a intenção do rei da Inglaterra, Eduardo III, em ocupar o trono francês e outro, de ordem econômica, sobre a disputa franco-britânica pela região de Flandres, rica na produção de tecidos.
Em 1429, ocorre uma importante mudança nos rumos da guerra em favor dos franceses. Trata-se da libertação da praça forte de Orleans, dominada pelos ingleses, por Joana D’Arc, até então vista apenas como uma camponesa mística. Sua liderança e carisma se aliaram e, à frente de um pequeno exército, Joana leva os franceses à vitória e, com isso, contribui para exaltar o sentimento nacionalista, vital para a posterior formação do Estado Moderno francês. Com a intenção de abafar o nacionalismo francês, Joana D’Arc é aprisionada e acusada pelos ingleses de heresia e bruxaria, para depois ser condenada por um tribunal da Igreja e queimada viva em Ruão em 1431.
Há muito não se via, na Bahia (mas Joanna D’Arc vai viajar ao eixo Rio-São Paulo) espetáculo de tal magnitude. Além de Jussilene, destaque especial para o elenco: Carlos Betão, Caio Rodrigo, Jefferson Oliveira, Hamilton Lima (excepcional em dois papéis: o conselheiro do rei e o bispo), Antonio Fábio e, last but not least, Widoto Áquila.
01 dezembro 2009
Robert Mulligan: cineasta da evocação
Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.
Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehicle para Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.
O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.
Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neo-realista em O homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.
Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.
O touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue: À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.
Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.
Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.
Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em O caminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel without a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.
E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.
Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.
Encerra-se esta breve homenagem a Robert Mulligan com as palavras de Carlos Reichenbach, que fecha com chave de ouro a trajetória desse importante realizador, destacando, o Comodoro, a beleza de um filme como The nickel ride.
“É curioso notar que outros cineastas da mesma geração, como Robert Mulligan, por exemplo, que não foram tão incensados pela crítica no começo, acabaram realizando uma obra menos pretensiosa e muito mais coerente. No caso de Mulligan, o sucesso popular e o prestígio em Hollywood, só veio a acontecer no meio da carreira, com Houve uma vez no verão (Summer Of 42) e A inocente face do terror (The other), ambos de 72, embora ele já tivesse realizado filmes mais notáveis como Fear strikes out (Vencendo o medo - 57), To kill a mockingbird (O Sol é para todos - 63), Baby, the rain must fall (título deslumbrante, burramente "traduzido" como O gênio do mal - 64), Inside daisy clover (À Procura de um destino - 66), Up the down staircase (Subindo por onde se desce - 67) e The pursuit of happiness (uma ode radical ao inconformismo, lançada no Brasil com o título de O caminho da felicidade - 70). É verdade que, após o sucesso com os dois filmes citados acima e o fim de sua parceria com o produtor Alan Pakula - que também se tornou diretor de cinema, mas num estilo mais cool e menos arrojado que Mulligan - sua obra caiu em desgraça. Embora tenha produzido e dirigido o filme mais anticomercial de Hollywood, The nickel ride (Jogos de azar - 74) - um drama chumbo grosso e depressivo sobre viciados em jogo, fotografado inteiramente com iluminação vertical onde mal se vê os olhos do atores - encerrou a carreira com uma péssima adaptação ianque de Dona Flor E Seus Dois Maridos e o chorumela Clara´s heart."
30 novembro 2009
Crepúsculos
1) Apesar dos avanços tecnológicos, a recepção do filme não tem mais o impacto do pretérito, por incrível que isso possa parecer. Via-se, antes, os espetáculos cinematográficos, nas telas grandes dos cinemas e, atualmente, o filme é visto sem a necessária dimensão para se ter uma fruição perfeita. É o caso, por exemplo, das versões em digital que são exibidas no território nacional. Aqui não se respeita os formatos originais e os filmes em versões digitais, além desta desconfiguração, apresentam cópias escuras, um colorido desbotado, etc. O mais interessante nisso tudo é que nos Estados Unidos e na Europa a exibição em digital é perfeita, respeitando-se o formato original e a qualidade da imagem.
2) Por outro lado, ver filme em computador faz com que a obra cinematográfica seja diminuída. Baixa-se da internet a torto e a direito. Tenho um amigo fanático por esta baixaria que adquiriu verdadeira mania. Ontem mesmo me disse que tem, chez home, 1289 filmes baixados da internet. Quantos você já viu?, perguntei-lhe. E ele me disse que "quase 30". Isto significa que 1259 filmes devidamente baixados estão arquivados. Tal uma doença, ele se satisfaz em baixar e não se interessa muito em ver os filmes.
Não seria um caso de tratamento clínico?
3) Numa palestra no Memorial da América Latina, há alguns meses, Nelson Pereira dos Santos disse discordar da inclusão do cinema na expressão audiovisual, que, na verdade, é um saco de gatos a incluir televisão, internet, enfim, tudo que seja imagem e em movimento. Para o cineasta de Vidas secas, quando se fala em cinema o que vem logo à mente são nomes como Eisenstein, Orson Welles, Charles Chaplin, Jean Renoir, Alain Resnais, Visconti, Fellini, etc. Mas o mesmo não se aplica quando se usa o termo audiovisual. Concordo inteiramente com as suas palavras.
4) Formado no tempo das salas escuras do cinema, quando somente podia ver filmes mediante o pagamento de um ingresso, estou a perceber que estamos num processo de transformação. A época da magia cinematográfica dentro dos grandes palácios exibidores já morreu, assim como o cinema dos grandes estúdios. O cinema dos produtores, como Louis B. Mayer, David Selznick, William Fox, Adolph Zukor, entre outros. Os estúdios foram comprados por estrangeiros (Mitsubichi, Coca-Cola, japoneses...) ou por executivos que nada entendem de cinema e que visam, apenas, o chamado lucro indecente. A maior parte da produção oriunda da indústrial cultural de Hollywood é constituída de lixo, puro lixo. Bem diferente, o panorama do pretérito. Tomando como base somente a produção comercial dos estúdios, tínhamos filmes excelentes e a produção média era boa. A vontade que dá é de não se ir mais ao cinema atualmente ou se ser muito seletivo. Mas, antes, nos bons tempos, e estou aqui a constatar fatos, ia-se aos cinemas diariamente e com grande prazer. E a platéia era silenciosa, educada, não se tinha os vândalos atuais, que infernizam aquele que deseja contemplar o filme em paz e sossego.
5) Dia destes, fui ver um filme numa dessas chamadas salas alternativas nesta soterópolis e achei sua fotografia esverdeada, meio escura, e, finda a sessão, entrei na cabine de projeção, sem pedir a licença necessária, e qual não foi a minha surpresa ao verificar que o filme estava sendo projetado através de um datashow em DVD. Um absurdo! Paga-se um ingresso caro para ver filme em DVD! E desfigurado?
6) A pequenez da recepção de filmes modifica a psicologia do cinéfilo. Se, antes, o filme era fugidio e inacessível, e o espectador era escravo da projeção, hoje, passou, hegelianamente, para a condição de senhor. Se não podia interferir no tempo (salvo se entrasse na cabine e, revólver em punho, ameaçasse o operador), hoje o receptor interfere na temporalidade a seu bel prazer. Pára para beber água, atender o telefone. Avança ou recua. Faz o que bem quiser e entender. Gostava mais de ser escravo do que senhor, por incrível que pareça. O cinema era mágico, inacessível, esmagador. Lembro-me do choque que tomei quando vi pela primeira vez um filme em cinemascope.
7) Achei, au hasard, uma excelente revista eletrônica sobre cinema: Foco(http://focorevistadecinema.com.br/). Há um estudo completíssimo sobre o grande cineasta Samuel Fuller, filme por filme, em textos rigorosos. Também uma homenagem a João Bénard da Costa. Entre seus editores, Sérgio Alpendre e Bruno Andrade. No mesmo número, entre outros artigos sobre Fuller, um especial de Inácio Araújo escrito origanariamente para a Folha de S.Paulo em 1997, quando o realizador de Paixões que alucinam (The shock corridor, 1963) veio a falecer. Para quem quiser entender o estilo fulleriano, magistral, um roteiro completo. A ler obrigatoriamente.
8) Tirante algumas dicas interessantes de pessoas não menos, a maioria das tuitadas no Twitter, a nova moda da internet, é constituída de exercícios ególatras ou mensagens caseiras, domésticas mesmo. "Acordei agorinha. Passei mal a noite", eis um exemplo. Outro: "Ufa! Afinal consegui terminar meu trabalho. He, he, he, he." Mais: "Daqui a pouco vou almoçar uma feijoada". Mais: "Que sono!!!" Pergunto: o que interessa saber se tal pessoa "acordou agorinha" ou vai almoçar uma feijoada? E o verbo Haver parece que está com os dias contados entre os internautas adeptos da msn, twitter, facebook, orkut, sonico, e congêneres. Escreve-se sem o haver: "A poucos dias, visitando o museu, encontrei um amigo". Erradíssimo. O certo seria "Há poucos dias... Analfabetismo?
9) Jose Mojica Marins já proclamou: "O melhor filme de terror que já vi foi O bebê de Rosemary, de Roman Polanski. É realmente uma obra extraordinária que funcionou como um corte longetudinal na tradição do gênero com a introdução do horror na aparente normalidade do real. Revendo O exorcista, do grande William Friedklin, que considero também uma obra fantástica, notei que a cópia posta em circulação em DVD, apesar de seus 11 minutos adicionais em relação à cópia servida nos cinemas de sua época, tem cortado o momento em que Linda Blair enfia várias vezes o crucifixo em sua vagina. É o nefasto politicamente correto a podar os filmes, a restringir a liberdade de ação, a tornar os homens mais tristes com a emergência do certinho. É por a escanteio a loucura do homem na sua expressão maior. É o fim do mundo.
10) Para terminar, um lembrete: a foto que encima este post é de minha namorada Brigitte Bardot. Dê um clique nela, por favor!
26 novembro 2009
Baianos fazem a festa em Brasília 2009
25 novembro 2009
A Montagem Intelectual ou Ideológica
Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência. Aprende-se, por exemplo, em biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito. Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas (Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação harmoniosa.
A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos acontecimentos diversos.
A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em A Greve (1924), de Eisenstein. As ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).
- os operários diante do patrão
- os manifestantes diante do oficial de polícia
- o patrão com a caneta na mão
- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar
- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações
- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba.
A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um, rugindo e revoltado (em O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política (em Outubro).
O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith, argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo. Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e, incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico. Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque, segundo o autor de A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C, porém, a rigor, A x B = Y. Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia, unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve (Strike), quando Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é uma metáfora.
Em Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma realidade, recorta uma determinada significação. Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.
Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal rendimento da profundidade de campo (vide Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Os melhores anos de nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica, dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro plano - o close up - tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos restrita.
19 novembro 2009
O controverso Anselmo Duarte
Anselmo Duarte, que faleceu recentemente, nunca foi uma unanimidade entre os cineastas brasileiros. Transcrevo aqui dois artigos publicados na imprensa. Eu sempre o respeitei, diga-se de passagem. O que vai escrito abaixo, porém, é de natureza polêmica. E, a rigor, as opiniões neles emitidas não refletem as do bloguista. Mas sempre é bom se ver a discordância, a controvérsia. Porque, como disse o grande Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra.
Conheci Anselmo Duarte, que morreu no último fim de semana aos 89 anos, na véspera de uma das principais homenagens prestadas a ele no fim da vida, com a concessão do Prêmio Oscarito pela carreira no Festival de Gramado de 1992. Vivia-se o ocaso da era Collor, que seria afastado no final daquele ano, e o cinema brasileiro estava em frangalhos. Celebrar o único cineasta nacional vencedor da Palma de Ouro em Cannes, com “O Pagador de Promessas” em 1962, era um gesto de afirmação e resistência. Ninguém melhor do que Anselmo -reconhece-se hoje, após sua longa despedida. Naquele momento, não era tão consensual assim.
O Grande Anselmo Duarte
Ipojuca Pontes
Morreu o grande Anselmo Duarte, de longe a maior personalidade do cinema brasileiro moderno, mesmo considerando a presença do lendário Alberto Cavalcanti. Anselmo era ao mesmo tempo um sujeito sagaz, corajoso, inquieto, engraçado, generoso, mentalmente ágil, com grande experiência de vida real e dotado de qualidade rara para quem pretende dirigir, bem, um filme: discernimento. O diretor paulista, mesmo tendo um argumento precário em mãos, sabia distinguir com clareza e enfrentar com paciência e criatividade os obstáculos técnicos, materiais e humanos encontrados num set de filmagens, e a todos superar – coisa difícil de ver, por exemplo, em qualquer espécime do Cinema Novo - vivo ou morto.
Em outubro, 28, ele dera entrada no Hospital das Clínicas, em São Paulo, vítima de um acidente vascular cerebral hemorrágico, vindo a falecer na madrugada do dia 7, sábado, após dez dias de embate com a morte. Seu coração estava na tipóia, mas o grande Anselmo não queria entregar os pontos. “A morte na cama é burlesca” – gostava de repetir.
Eis o argumento embusteiro do sectário Rocha contra o filme de Duarte: “Ele filma uma realidade de esquerda com a ideologia de direita. Zé do Burro – personagem central de “O Pagador de Promessa” - é um camponês alienado. É bom que a crítica mantenha expectativa em torno de Anselmo Duarte”. Pelo amor de Deus! Que miséria! Mas tal patacoada glauberiana, assimilada porcamente nos meandros da vulgata marxista, pegou como fogo em palha nos anos cavernosos do “tolo útil” Jango Goulart, ao tempo em que o receituário chinfrim do grupo engajado administrava o primitivo (e bárbaro) “Cinco Vezes Favela” – o mais indigente panfleto político jamais concebido na história da alienação (econômica, psiquiátrica ou marxista) cinematográfica.
16.11.2009