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26 outubro 2008

Como nasce o cinema baiano (2)



Domingo passado, dando início à série Como nasce o cinema baiano, prometi para o próximo capítulo (este) falar sobre a diferença entre o Ciclo Baiano de Cinema e a Escola Bahiana de Cinema. É muito simples. Nesta, enquadram-se aquele filmes idealizados pelo grupo de Rex Schindler, que tinha Glauber Rocha como mentor intelectual, Roberto Pires, Braga Neto, David Singer, entre muitos outros. O grupo queria estabelecer, em Salvador, uma infra-estrutura capaz de dotar a Bahia de uma produção cinematográfica constante, com continuidade de produção. São filmes da Escola Bahiana de Cinema: Barravento, A grande feira, Tocaia no asfalto, além de alguns curtas. Mas a idéia que norteou Schindler e seus colegas não deu certo, porque o capital investido não retornou por boicote dos próprios brasileiros, como alguns distribuidores do sul do país. O êxito cinematográfico, que se sustenta no tripé produção/distribuição/exibição, depende muito da circulação do filme para que possa se pagar. O lucro obtido seria, na opinião dos idealizadores da Escola Bahiana de Cinema (que estabelecia, inclusive, um esquema de rodízio para os diretores), investido no filme seguinte.

Fora da Escola Bahiana de Cinema, vários outros produtores, que não Schindler, se aventuraram na produção de filmes genuinamente baianos (O caipora, de Oscar Santana, O grito da terra, de Olney São Paulo, Sol sobre a lama, de Alex Viany/Palma Neto...).

Ja o Ciclo Baiano de Cinema reúne todos os filmes que, entre 1959 e 1964, durante a efervescência que se verificou na Bahia, foram aqui filmados, quer sulinos, quer estrangeiros. Para ficar em poucos exemplos, O tropeiro, de Aécio Andrade, A montanha dos sete ecos, do português Armando Miranda, Três cabras de Lampião, de Aurélio Teixeira, Mandacarú vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, entre outros.

Mas hoje, domingo, dia de eleição, vamos falar de Sol sobre a lama.

João Palma Neto, antigo feirante da Água de Meninos, sindicalista, marinheiro de longo curso, quando vê A grande feira (1961), de Roberto Pires, não gosta da maneira pela qual o filme aborda a questão da gigantesca feira e decide bancar um outro filme como resposta ou réplica. Com o dinheiro de sua poupança (naquela época não há a famigerada captação de recursos), alia-se a Walter Fernandes e Álvaro Queiroz para a produção de Sol sobre a lama. Com eles, funda a Guapira Filmes (Schindller se associa a Iglú, empresa que também faz um cine-jornal, A Bahia na Tela, para poder realizar os filmes da Escola Bahiana de Cinema e há o surgimento, nesta época, de outras empresas - mas assunto para outro tópico). Corre o ano de 1962 e a idéia de Palma é que a fita seja colorida, e com recursos mais sofisticados. Escreve a história, baseada em suas experiências (diz-se que o personagem Valente, interpretado por Geraldo D’El Rey é ele próprio), e confia o roteiro ao carioca Alinor Azevedo (que tem a assinatura nos roteiros de alguns excelentes filmes como Assalto ao trem pagador, e Cidade ameaçada, ambos de Roberto Farias, Um ramo para Luísa, de J.B.Tanko, entre outros. Alinor faz o screenplay de Sol sobre a lama com outro talentoso roteirista, Miguel Torres, que o cinema brasileiro perde, pois morre num desastre automobilístico. Ambicioso, pretensioso, João Palma Neto quer fazer o filme definitivo sobre a Feira de Água de Meninos (que, como numa premonição, é incendiada, um verdadeiro inferno na baixada, em 1964, e seus feirantes se mudam para a Feira de São Joaquim, acanhada, embora hoje imensa, se comparada à de Meninos). Não vê, Palma Neto, nenhum diretor em Salvador capaz de desenvolver as imagens em movimento pré-visualizadas no roteiro de Alinor e Miguel. Também, neste ano, Roberto Pires está a lançar Tocaia no asfalto, e Glauber Rocha está já no Rio, a lançar o Cinema Novo e a preparar a produção de Deus e o diabo na terra do sol.

Palma chama o conceituado crítico carioca, e também cineasta (Rua sem sol, Agulha no palheiro) mediano, Alex Viany, que é, nos anos 40, correspondente da revista O Cruzeiro em Hollywood. De volta ao Brasil, adere de corpo e alma ao cinema nacional, a fazer filmes e a escrever nas páginas dos jornais. Um crítico, inclusive, chega a taxá-lo de "inimigo número 1 do cinema made in Hollywood", apesar de, nesta meca, ter permanecido por muito tempo a gozar de suas delícias.

A maior obra de Alex Viany é, sem dúvida, a sua extenuante pesquisa que se transforma, em 1959, no livro Introdução ao Cinema Brasileiro, editado pelo Instituto Nacional do Livro (várias vezes reeditada, uma delas pela Alhambra). Mas como cineasta, apesar de Rua sem sol e Agulha no palheiro estejam sob a influência do neo-realismo italiano, possuindo um certo pioneirismo na abordagem da problemática social brasileira, é fraco, não sustenta bem uma narrativa. O fiasco total, e canto de cisne desesperado, está, muitos anos depois, em A noiva da cidade, cujo roteiro original é de autoria de Humberto Mauro. O filme, no entanto, um anti-musical, é indefensável.

Palma vê Rua sem sol e Agulha no palheiro e acha que Alex Viany é o realizador ideal para o desenvolvimento imagético de Sol sobre a lama. Quando chega a Salvador, Viany, homem genioso, está fascinado pelo cinema japonês, e tenta, no comando direcional, dar um tom nipônico do ponto de vista cinematográfico à baianidade que se requer de Sol sobre a lama. Realizado em 1963, mas somente lançado (em noite de festa) em novembro de 1964 no cine Guarany, o resultado final, contudo, não agrada Palma. A briga com Viany acaba na Justiça. Assim, há duas versões de Sol sobre a lama. A versão do diretor e a versão do produtor.

O argumento gira em torno da tentativa feita por burgueses gananciosos para acabar com a Feira de Água de Meninos. A complicar a situação, e, com isso, apressar o fim da feira, uma draga fecha o seu ancoradouro, a impedir qualquer abastecimento. Os feirantes, desesperados, lutam pela abertura do ancoradouro para fazer voltar o abastecimento. Dois líderes se apresentam para solucionar o problema. Um açougueiro (Roberto Ferreira/Zé Coió, em grande interpretação) propõe a ação violenta (uma espécie de Chico Diabo de A grande feira) dos feirantes para que invadam, na raça, o ancoradouro, reabrindo-o. Outro líder, no entanto, Valente (Geraldo D'El Rey, Rony, o marinheiro sueco de A grande feira, e o Manoel de Deus e o diabo na terra do sol), que vende material de construção, é a favor de acertos conciliatórios com poderosos políticos e a uma campanha na imprensa local em favor da volta à normalidade. Uma ação, portanto, junto aos poderes constituídos para a resolução do conflito.

Jean-Claude Bernardet, em seu clássico estudo sociológico sobre cinema brasileiro intitulado Brasil em tempo de cinema, ensaio que procura entender a sociedade através de alguns filmes nacionais representativos, dá importância na sua análise a Sol sobre a lama e escreve: “Em vez de malhado superficialmente, o filme deveria ter sido discutido mais abertamente, pois condensa toda uma tática errada, premissas sociológicas falsas e idealistas que caracterizam um longo período da vida da sociedade brasileira. Sol sobre a lama pode ser considerado como um dos mais significativos testemunhos de toda uma política que fracassou.”

A fotografia é de Ruy Santos (que dois anos depois viria filmar, em Buraquinho, praia perto de Itapoã, Onde a terra começa, baseado em conto de Máximo Gorki, com Irmã Alvarez). No cast, Othon Bastos, Geraldo D’El Rey, Roberto Ferreira, Dilma Cunha, Milton Gaúcho, Gessy Gesse, Maria Lígia, Alair Liguori, Carlos Lima, Garibaldo Matos, Doris Monteiro (a cantora que trabalha com Viany em Agulha no palheira e, na certa, chamada por ele), Jurema Penna, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Tereza Racquel, Glauce Rocha, Lídio Silva. Com música de Pixinguina e Vinicius de Morais. O teatrólogo João Augusto funciona como diretor da segunda unidade.

6 comentários:

Anônimo disse...

Setaro, a série´bsobre o cinema/ciclo/escola da bahia merece publicação impressa. Sobre o post de hoje só uma observação: Três Cabras de Lampião ( um filme que gostaria de rever), foi feito em 1962 com cenas filmadas em Juazeiro e Santana(BA), o ator é Milton Ribeiro. No ano seguinte, Carlos Coimbra roda, também, na Bahia, Lampão Rei do Cangaço, este sim com Leonardo Vilar no papel título.

Jonga Olivieri disse...

O certo é que Viany, um excelente crítico de cinema, nunca conseguiu uma performance à altura como realizador...

André Setaro disse...

É verdade, Romero, me enganei. Conheço, porém, os dois, tanto '3 cabras de Lampião', de Teixeira, como 'Lampião, rei do cangaço', este não filme baiano, produção, se não me engano, da Cinedistri, com Leonardo Villar. Me atrapalhei e vou procurar consertar no texto.'3 cabras' tem, além de Milton Ribeiro, atores baianos, que Teixeira, 'o homem mau das chanchadas' (sem falar de Lewgoy, claro), 'pegou' por aqui mesmo: Lucy Carvalho (de 'Barravento' e 'Os cafajestes'), Roberto Ferreira, eteceterá.

Stela Borges de Almeida disse...

Considero que a série merece publicação impressa. Estou lendo Alex Viany: Crítico e Historiador, publicado pela editora Perspectiva, 2003. A historiografia dos críticos de cinema pelo viés das "grandes narrativas" parece-me que precisa de reeleitura. A série que se inicia aos domingos tem tudo para realizar esta nova releitura, dizendo basta a todas as formas de xenofobia. Aguardando e torçendo pelo excelente trabalho a ser editado.

André Setaro disse...

Agradeço, com o coração nas mãos, os comentários que procuram me remeter à publicação da "novela" "Como nasce o cinema baiano". Se os capítulos se desenvolverem assim como os dois primeiros que estão, modéstia seja à parte, razoáveis, talvez possam vir a ter, sim, alguma substância. E este agradecimento se faz a dois pesquisadores de mão cheia: a Stela Almeida Borges, cujo "background" nas ciências da sociedade é inegável (vejam ao lado o link para seu blog e cliquem nele), e a Romero Azevedo, professor e crítico de cinema, além de pesquisador, cinéfilo que vai a campo, estabelecido em Campina Grande, Paraíba.

Embora não tenha se manifestado nesse sentido, acredito que João Carlos Olivieri seja da mesma opinião, qual seja a de que devo imprimir, em livro, os capítulos da trajetória do pobre cinema baiano, cujo itinerário é de intenso sofrimento e, poder-se-ia mesmo dizer, um calvário, uma via-crucis.

Devo dizer que a "novela" está sendo escrita aos sábados e publicada aos domingos. Não são textos prontos. As suas possíveis qualidades vão depender do humor do escriba, e de suas constantes instabilidades emocionais. Há, portanto, nos textos, uma flexibilidade "narrativa" que se adapta ao 'espírito' do blog.

Por outro lado, e já dado já à luz, há muitas décadas (e Romero sabe disso) escrevi toscamente um panorama do cinema baiano que se deu a conhecer em maio de 1976, estando, por isso, desatualizado, mas que contém os primórdios, a importância de Alexandre Robatto, e o Ciclo Baiano de Cinema. As traças, no entanto, que são inúmeras, devoraram parte de meu único exemplar, salvo delas, no entanto, por um amigo que teve a paciência do Job bíblico para colocá-lo em microsoft word.

Anônimo disse...

OI como faço pra assistir este filme?

Meu pai fez uma participação nele e gostaria de vê-lo!

Obrigada

Juliana Mattos