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17 outubro 2007

Une femme est une femme



Segundo longa metragem de Jean-Luc Godard, que se sucede a Acossado (A bout de souffle, 1959), que detonou a ‘nouvelle vague’ e traumatizou duramente o cinema francês contemporâneo, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 1961), é um filme menos conhecido do realizador, mas uma de suas películas mais engraçadas, espirituosas, cuja feitura denota o frescor da época, de um existencialismo que se vivia nas ruas de Paris cheias de idealismo e romantismo. Não é um musical, como se anunciou, e como muita gente pensou: é, simplesmente, uma comédia romântica ao avesso, que subverte os clichês do gênero inteligentemente – não como agora em que a subversão do clichê já virou gasto lugar-comum. E tem Anna Karina, que, na época, companheira de Godard, revelava-se uma atriz encantadora.

Une femme est une femme foi exibido em cópia na bitola 16mm pela primeira vez em Salvador quando da mostra Godard, que ocorreu em julho de 2003 na Sala Walter da Silveira. Os filmes do cineasta foram aqui lançados na década de 60, a maioria no cine Capri – que se incendiou em 1980 e ficava no Largo 2 de Julho – e distribuídos pela Franco-Brasileira, mas, não se sabe a razão, Uma mulher é uma mulher permaneceu inédito.A Net/Sky, através do canal Telecine Classic, quando existia e não tinha sido substituído pelo híbrido Cult, ao lado de Pierrot, le fou (chamado, aqui, O demônio das onze horas), Alphaville e Acossado, que, sua estréia no longa, continua sendo o seu melhor filme.

Há uma clara referência ao cinema clássico americano e, numa determinada cena, Anna Karina diz a Jean-Paul Belmondo que gostaria de estar num musical de Vincente Minnelli, ao lado de Gene Kelly e Bob Fosse. O personagem de Belmondo se chama Alfred Lubitsch – referência explícita ao mestre da comédia sofisticada Ernst Lubitsch. E num determinado momento, há uma citação de Tirez sur le pianiste, filme de François Truffaut, colega de Godard na ‘nouvelle vague’ e na revista Cahiers du cinema. O próprio Belmondo, principal intérprete de Acossado, de repente, diz que não tem tempo porque não pode perder Acossado. E Jeanne Moreau, musa da ‘nouvelle vague’, faz uma pequena ponta em pé num bar onde Belmondo toma um drink.

A comédia romântica clássica é subvertida, porém em termos de poesia e metalinguagem. A montagem sincopada, de tomadas rápidas, é repetida aqui. Logo no início, quando Anna Karina se dirige ao cabaré onde é estrela de strip-tease, ela passeia pelas ruas de Paris e a partitura de Michel Legrand – de grande beleza – é retirada e depois recolocada. Godard, também em outros momentos, retira o áudio e faz com que os personagens se dirijam aos espectadores. Quando Belmondo vê-se rejeitado por Karina, ele fala ao público: “Ela não me quer!” Claro que o filme deve ser situado dentro de um contexto histórico-cinematográfico, quando a desmistificação do espetáculo era uma novidade. O cinema perdeu, definitivamente, um certo encanto, uma certa ingenuidade. Wim Wenders, num depoimento para Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho, afirma que o cinema contemporâneo não oferece margem para a imaginação, porque tudo vem muito pronto, com tudo já dito.

Em cinemascope, colorido, a iluminação de Roul Coutard – diretor de fotografia preferencial de Godard – contribui para criar o clima, acentuando tonalidades, ressaltando matizes que se introduzem no tecido dramatúrgico. As seqüências seguem um ritmo sincopado, com repetições de gestos, de movimentos, que seriam uma das marcas registradas do autor. E o que se poderia chamar de história se dilui na mise-en-scène a demonstrar que um filme verdadeiro é a expressão de um estilo, estabelecendo-se pela maneira de o cineasta articular os elementos da linguagem cinematográfica.

Karina é uma strip que mora com Jean-Claude Brialy enquanto Jean-Paul Belmondo lhe faz a corte diária. Ela tem uma idéia fixa: ter um filho, mas seu companheiro parece desinteressado em lhe oferecer o presente. Chateada, vai procurar Belmondo, e, no apartamento deste, dorme com ele. Mas volta à sua morada com Brialy e lhe conta o acontecido. Brialy, então, tem, com ela, uma relação carnal. E o filho de quem será? No final, ele lhe chama de infame, mas ela responde: “Je ne suis pas infame, je suis seulement une femme”. Simples e grandioso.

4 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Um filme marcante.
Aliás, a obra de Godard, causa de tantas polêmicas é de uma importância fundamental para o estudo do cinema.
"Acossado" é para mim uma das mais importantes, mas "Une femme est une femme" tem o seu papel no contexto de seus filmes.
A frase que você transcreve é, como você refere de uma simplicidade comovente, é, na realidade profundamente humana.

Anônimo disse...

Desconfio que esse tal de dizer que o cinema atual acabou não passa de baboseira de gente que não mais consegue um ponto de referencia na contemporaneidade. Obviamente não ha nada de genial em dizer "sou apenas uma mulher". O critico que procura 'empurrar', por assim dizer, seus pontos de vista como verdadeiros absolutos termina por perder-se em devaneios e sem seguidores.

André Setaro disse...

A constatar a enxurrada de lixo que se chama de filme, o cinema acabou mesmo, Caó. Você, talvez muito consciente e sério, não foi capaz de entender a simplicidade e a poética de um momento godardiano. Pior para você. E nunca, mais nunca mais, procura empurrar meus pontos de vista. Dou minha visão das coisas, mas não sou dono de nenhuma verdade.

Jonga Olivieri disse...

Caó. Eu não o conheço, mas, pasmo quanto ao seu comentário no tocante a uma frase tão abrangente dita por uma mulher ao seu parceiro. A simplicidade de um posicionamento consciente de sua própria condição. Analise-a bem, num quadro de machismo (em que ainda vivemos) o que representavam tais palavras há mais de quarenta anos atrás?
Quanto ao cinema, é certo que está passando por uma crise “braba” e profunda. Aponte-me quem tem a genialidade de um Buñuel, um Chaplin, um Visconti, um Bergman... e eu até dar-te-ei razão em sua atitude agressiva quanto ao autor deste blog.
O que vemos aí é uma produção pasteurizada, nivelada por um excesso de efeitos sonoros e computadorizados, que um dia, até poderão somar, mas por enquanto são apenas o deslumbramento de um mundo novo, ainda sem o controle de sua própria identidade. Reflita, conclua, e veja o mundo ao seu redor. Ou será que você vai repetir a frase daquele general das tropas de Franco durante a guerra civil espanhola: “Abajo la inteligência! Viva la muerte!”