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01 agosto 2007

A escalada do cinema como linguagem



O cinema acabou com a morte simultânea de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. O desaparecimento desses cineastas assina o fim de uma era, o fim de um tempo. Publico aqui um artigo que já foi postado neste blog, mas por falta de tempo de escrever coisa nova o republico no sentido de manter uma constante atualização. Depois de pensar em algum cineasta vivo que possa ser considerado superior, lembrei-me que ainda restam Resnais e Godard. Depois deles, o the end.

Na história do cinema, na sua lenta escalada como linguagem, e, em conseqüência, como atividade artística produtora de sentidos, há duas, por assim dizer, promoções no campo da significação. A primeira promoção remonta a meados dos anos 20 e permite ao cinema passar do escalão servil de reprodução das realidades em movimento para o escalão mais qualificado de linguagem artística baseada na reprodução da realidade. Desde os Lumière que o cinema passa muito tempo sendo visto com desdém pelas pessoas ditas cultas, a princípio até limitado a feiras populares até que consegue atingir e se instalar em salas fixas. Mas, mesmo assim, sofre para se legitimar como uma arte tão nobre como as demais. Portanto, essa primeira promoção que o alça à condição de linguagem artística é muito importante, mas ainda restritiva, incapaz de dar ao cinema o seu verdadeiro status.


De mera reprodução das imagens em movimento para o reconhecimento de ser uma linguagem já se constitui, portanto, na feérie da década de vinte, um primeiro passo, um degrau na escalada.
A segunda promoção, ocorrida em época mais recente, é a que reconhece ao cinema a capacidade não apenas para reproduzir a realidade, mas, também, e se preste aqui muita atenção, para reconstruir a realidade de modo inteiramente original. Deveria ficar bem claro, neste ponto, que o cinema possui uma faculdade única e jamais reconhecida a qualquer outra arte: a de transformar o mundo em discurso servindo-se do próprio mundo. Do próprio mundo e não de sinais arbitrários (como faz a literatura) ou semelhantes (como faz a pintura), sinais estes empregados na substituição do mundo. Ora, se o cinema é capaz de realizar esta transformação, isso significa que possui uma atitude escritural que se vem somar ao seu caráter foto-reprodutor originário. É do aproveitamento consciente de tal atitude que nasce o filme, o que equivale dizer o discurso singular individualizado dentro do sistema de linguagem representado pelo cinema.

Promovido pela primeira vez, o efeito leva o cinema a deixar de ser visto apenas como um espetáculo, passando a sê-lo também, e sobretudo, como uma experiência artística em nada inferior à das outras artes. Quando veio lançar seu último filme, Amém, Costa-Gravas disse, em entrevista, que o cinema sempre é um espetáculo no sentido de que um filme, por implicar na alocação de altos recursos, precisa envolver o espectador, cativando-o, o que contraria uma certa tendência sado-masoquista atual de somente se considerar um bom filme aquele que possua certa sujeira e contenha planos-seqüenciais que exigem do infeliz assistente a ter, no mínimo, uma paciência de Job. Um filme tanto pode ser bom dentro de uma narrativa clássica, in progress, como dentro de um processo de desconstrução. O que importa para a consolidação da artisticidade da obra cinematográfica é o talento do realizador, sua habilidade na manipulação dos elementos da linguagem específica da arte do filme.

Mas voltando ao assunto, a transição do filme entendido como mera técnica foto-reprodutora para o filme entendido como linguagem auto-suficiente já não deveria causar nenhum espanto, principalmente se tivermos em conta a inegável função de matriz da cultura desenvolvida pelo cinema de modo cada vez mais consciente ao longo de sua existência.Ao contrário da prática televisiva, que se limita a reproduzir sentidos previamente organizados, o filme é dotado de uma capacidade significante que lhe permite recriar a realidade sob a forma de uma linguagem recorrendo a uma série de processos de reelaboração poética que o transformam num gênero técnico-formal mais virado para a expressão do que para a comunicação.

2 comentários:

Jonga Olivieri disse...

O cinema, em nosso dias, passa realmente por momentos difíceis.
Algumas mudanças atuais não representam uma evolução, mas sim um retrocesso.
Refiro-me ao que você de forma brilhante qualificou de linguagem de "clip" no cinema.
Sério. Este é o ponto "xis" da questão. Clip é clip, cinema é cinema. Este 'blend' não dá certo.
E o pior: as novas gerações estão assimilando esta linguagem 'fast-food' de cinema.
Aí, o desaparecimento de diretores como Bergman e Antonioni, representam muito nesta derrocada da linguagem.
Veja bem: eles já não tinham uma produção como em outros tempos, mas, a simples presença era muito importante.
É certo que a memória deles vai representar alguma coisa. Talvez até por gerar retrospectivas, possa acender em muitos uma chama. Quem sabe?
Novos e bons cineastas existem, tanto na Europa, como nos EUA ou em outros continentes.
O problema é que à indústria da "mediocridade" não interessa divulgar esses valores.
Hoje, a cultura está se isolando em guetos. Tanto no cinema quanto em outras modalidades artísticas. É uma pena, mas é o que se passa...

André Setaro disse...

Concordo plenamento com o que diz. E acrescento: o cinema foi formando a sua linguagem durante o século passado e atingiu a sua plena maturidade na década de 60, com Antonioni, Godard, Bergman, Resnais, entre outros. A partir desta cristalização, observou-se uma paralisia acompanhada de decadência.