Texto do Professor Jorge Moreira (Especial para o Setaro's Blog)
O pacto com o
diabo (Lúcifer, Mefistófeles, Mefisto) tem uma longa história na cultura ocidental, estando
relacionado originalmente com a história bíblica da tentação de Jesus Cristo no
deserto. Conforme o “Evangelho segundo São Mateus” (1), um dos mais confiáveis,
as principais tentações tomam a forma de três incitações diabólicas que são: a
incitação para transformar pedras
em pão; a incitação para saltar do templo e a incitação para reinar sobre o mundo. Biblicamente, Jesus
resiste às tentações, negando-se a fazer o pacto com o diabo. Das três
tentações, a terceira é a que parece ter tido mais influência na história da
literatura e do cinema ocidental.
Nas obras literárias, por exemplo, o tema da tentação
e do pacto com o diabo, têm sido representadas através da elaboração da lenda
(que circulava na Idade Média) sobre a relação de troca entre Fausto e Lúcifer. E a lenda se transformou numa das
formas predominantes (uma espécie de padrão artístico), para a produção artística subsequente. Na literatura, o diabo oferece ao
herói pactário algo que ele deseja desesperadamente - riqueza, poder ou conhecimento -, exigindo em troca a
possessão da alma do herói depois da sua morte.
Uma das primeiras manifestações deste padrão artístico (teatral ou
narrativo) foi apresentada na peça de teatro A
Trágica História do Doutor Fausto escrita
por Christopher Marlowe (2) no século
XVI. Outra das célebres
representações da temática do pacto com o diabo se encontra em Faust, o poema trágico (na
forma de peça de teatro com diálogos rimados) escrito por Johann Wolfgang von Goethe
no século XIX (3). Já no século XX, o escritor alemão, Thomas Mann (filho da
brasileira Julia da Silva Bruhns), prêmio Nobel de literatura, realizou uma
extraordinária variação do tema (o pacto com o demônio) na sua obra Doktor Faustus (Dr. Fausto) de 1947
(4). No Brasil, o
escritor João Guimarães Rosa também realizou uma brilhante variação (as veredas)
da lenda de Fausto, na versão do “suposto” pacto do Riobaldo Tatarana com o
diabo, no seu consagrado romance Grande
Sertão: veredas (5). A historia do pacto é contada pelo próprio Riobaldo
que, alem de protagonista, é o narrador do romance.
Como sabemos, estes reconhecidos textos literários
sobre o pacto diabólico (incluindo a obra teatral de Christopher Marlowe)
foram adaptados para o cinema por escritores e diretores de fama internacional
e do Brasil.
No Brasil, existem duas adaptações visuais de destaque
do romance de Guimarães Rosa: Grande Sertão, o filme de 1965, dirigido pelos irmãos Geraldo e Renato
Santos Pereira, com Maurício do Valle como
Riobaldo Tatarana; e Grande Sertão: Veredas (uma minissérie) da Rede Globo, escrita e dirigida por Walter Avancini contando com Tony Ramos no papel de Riobaldo.
Na historia do cinema, o filme Faust, dirigido por F. W. Murnau, é uma das
primeiras adaptações cinematográficas (1926) bem sucedidas da lenda de Doctor Faustus para sétima arte. Em língua inglesa, existe
uma adaptação cinematográfica de
1967 que teve grande circulação na época devido
às atuações de Richard
Burton e a mulher Elizabeth Taylor, dois ídolos do cinema mundial. O filme,
intitulado Faust, foi dirigido por Burton que também
acumulava o papel protagonista.
Por seu lado, o romance de Thomas
Mann ganhou uma excelente versão cinematográfica intitulada Doktor
Faustus que foi realizada em 1982 pelo diretor alemão Franz Seitz (6).
Um ano antes, o romance Mephisto de Klaus Mann, escritor e
filho alemão de Thomas Mann, ganhou uma magistral versão cinematográfica com o
mesmo título, que foi dirigida pelo húngaro István Szabó em 1981 (7 )
A
mais recente e destacada realização cinematográfica que conheço sobre o pacto
demônico foi realizado em 2011 pelo diretor russo Alexander Sokurov
(8) . Seu filme Faust está baseado numa livre interpretação da
lenda de Fausto e de sua adaptação literária por Goethe e por Thomas Mann.
Modernamente, tanto
no romance Doktor Faustus de Thomas Mann quanto no romance Mephisto do filho Klaus Mann, o mito do
pacto do diabo, foi reinterpretado para funcionar como una metáfora do pacto de
Alemanha com Adolf Hitler.
Mas a relação entre a situação real e a imaginária é
de diferença e não de identidade. Apesar de compartilharem algumas
características comuns, elas não conformam uma relação entre iguais. No
entanto, isso não significa que a realidade imaginária ou simbólica da arte não
possa se refletir, imitar, ter correspondência ou projetar-se no processo da
realidade histórica em que vivemos dado que as situações políticas, sociais,
econômicas e culturais mostram correspondências e paralelismos entre o pacto
demoníaco do texto artístico e o pacto demoníaco dos indivíduos e grupos com o
poder político, econômico e militar real das classes dominantes da nossa
sociedade capitalista.
Nos Estados Unidos, este paralelismo entre a realidade
e o imaginário pacto com o diabo crescem em ritmo acelerado e pode ser também
interpretado como metáfora ou alegoria do pacto dos EUA com o nazifascismo e
suas políticas etnocidas, genocidas e imperialistas.
As invasões e ocupação de países como Iraque e
Afeganistão e a invasão e ocupação dos territórios palestinos; a permanência
dos campos de concentração e dos centros de torturas como Guantánamo; as
sistemáticas acusações e perseguições efetuadas pelos funcionários do governo
dos Estados Unidos aos “whisleblowers”, seres humanos como Daniel
Elsberg, Julian Assange, Bradley Manning e Edward Snowden, são indicações de
que a corrupção, a mentira, a desonestidade, a hipocrisia, a ilegalidade e o
crime são as moedas correntes (o pão de cada dia) dentro das principais
instituições políticas, militares, econômicas e judiciárias do capitalismo
norteamericano.
Dentro deste contexto, as revelações dos “segredos”
políticos e militares dos EUA, por Daniel Elsberg, Julian Assange, Bradley
Manning e Edward Snowden, poderiam ser caracterizadas simbolicamente como atos
heróicos que tratam de romper ou destruir o pacto dos EUA com o diabo.
Num país verdadeiramente democrático, a sociedade
civil e a administração governamental deveriam estar celebrando a dignidade
ética e politica de indivíduos valentes e íntegros como Daniel Elsberg, Julian
Assange, Bradley Manning e Edward Snowden; a sociedade deveriam estar
orgulhosos desses raros indivíduos que, como eles, sacrificam a vida pessoal e
profissional para revelar documentos secretos das operações clandestinas e
criminais de um governo que aparenta ser democrático, elevando o nível de
consciência do público estadunidense (e mundial) sobre o estado de degeneração
moral, social e humana a que estamos submetidos sob o capitalismo.
Depois das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki,
das guerras dos Estados Unidos da América contra o povo do Vietnã, da Coréia do
Norte, do Iraque, do Afeganistão, do Paquistão e da Palestina, ficou quase
impossível esconder as características nazifascistas do estado autoritário e
ditatorial sob o qual estamos sobrevivendo nos EUA.
Em poucas palavras, as revelações de Edward Snowden e o último escândalo em torno da invasão da
privacidade de milhões de norteamericanos através dos grampos nos telefones
realizados pelas NSA e CIA em alianças com ATT, Verizon, Google, Facebook
e outras parecem demonstrar que estamos sendo aprisionados por um dos
mais hediondos pactos demoníacos já realizados entre autoridades políticas,
militares, judiciais dos EUA e ideologia e a práticas hitleristas
do império do mal.
É quase inacreditável que os desejos e ambições
de poder (e riqueza) dos funcionários públicos dos estados capitalistas a
serviço da classe dominante estejam agigantando o já escandaloso grau de
corrupção individual e social que contribuem para destruir todos os resquícios
de dignidade humana que ainda restavam nos Estados Unidos e no mundo ocidental.
E no entanto sabemos (e ficou ainda mais evidente
durante esta crise estrutural do sistema capitalista) que não existe superação
política, econômica, social, cultural, artística ou cinematográfica possível
para este estado de degeneração ética, moral e legal (para este quase
interminável pacto demoníaco atual) da nossa sociedade, se não formos capazes
de produzir a desejada mudança estrutural deste sistema capitalista
imperialista e não formos capazes de criar um novo modo de produção de
sociedade humana em que se possa viver sem torturas e crimes de guerra.
NOTAS
1) A história do encontro de Jesus com o diabo no
deserto foi adaptada por Pier Paolo Pasolini para o seu belíssimo e
revolucionário filme Il vangelo
secondo Matteo" (O Evangelho Segundo São Mateus) que dirigiu em 1964 para homenagear o
papa João XXIII, o criador do
Conselho Vaticano II, um dos elementos nas origens da Teologia da
Libertação. O filme recebeu vários prêmios importantes, dentre os quais o Prêmio Leão de Prata - Grande Prêmio do Jurado- do Festival Internacional de Veneza em 1964.
2) Christopher Marlowe foi um dramaturgo, poeta e
tradutor inglês que viveu no denominado “Período Elizabetano”. É considerado um
dos maiores renovadores da forma do teatro do período com a introdução dos
versos brancos estrutura que seria empregada por William Shakespeare.
3) O filósofo espanhol Manuel Sacristán tradutor do
poema trágico Faustus (a obra prima de Goethe) oferece uma leitura (uma
interpretação) brilhante e convincente do poema no seu ensaio intitulado
“La veracidad de Goethe”. Veja no livro Panfletos y materiales, IV: Lecturas.
Icaria, Barcelona, 1985.
4) O professor Manuel Sacristán oferece, desde a
perspectiva da “filosofia da ciência”, uma leitura (uma interpretação)
sumamente interessante do romance Doktor Faustus de Thomas Mann no
seu importante ensaio intitulado “Tres grandes libros en la estacada”.
Veja também no livro Panfletos y materiales, IV: Lecturas. Icaria, Barcelona,
1985.
5) Para uma análise ampliada dos elementos formais da
narrativa Roseana, veja o ensaio “O regionalismo de Guimarães Rosa” de Jorge
Vital de Brito Moreira (o autor deste texto) na revista Estudos Sociedade e
Agricultura, 3, novembro 1994, 92-100.
6) O
filme Doktor Faustus de Franz Seitz, conquistou o Prêmio de Prata (Silver Prize) do XIII Festival Internacional de cinema de Moscou em 1983.
7) O
filme Mesphisto de István Szabó conquistou o Oscar dos EUA de melhor
filme estrangeiro (Hungria) em 1982.
8) O
filme Faust de Alexander Sokurov, conquistou o Prêmio Leão de Ouro do 68.ª Festival de Veneza em 2011.
Um comentário:
"Pra variar" uma análise crítica e científica do Professor Jorge Moreira sobre a podridão do capitalismo nos Estados Unidos.
É prazeiroso ler esta postagem!
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